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E-book324 páginas4 horas

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Sobre este e-book

Uma vista sombria sobre o mar pouco importa a Julia, enquanto o ferry a transporta para uma ilha galesa isolada para participar num curso de Desenvolvimento Espiritual.

Em breve, Julia estaria rodeada de novos amigos e perguntas. À medida que as suas relações se aprofundam, cresce também a sensação de Julia de que algo crucial está em falta na sua vida.

Quando a paixão acende e segredos bem enterrados emergem, Julia enfrenta escolhas que vão alterar para sempre a direção da sua vida. Mas a que preço?

IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de dez. de 2020
ISBN9781393324485
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    Re-Navegação - Sue Parritt

    Dedicação

    À minha querida amiga Sue Heward, presente na conceção deste romance.

    Agradecimentos

    Muito obrigada a Miika Hannila e aos colaboradores da Creativia por terem fé na minha escrita.

    Capítulo 1

    Uma lugubridade interminável envolvia o ferry de passageiros enquanto este navegava em direção à ilha. O mar picado e cinzento fundia-se com o céu nublado e até a sua espuma parecia suja a olhos acostumados às águas turquesa de Queensland.

    A atmosfera sombria pressistia dentro da cabine. Tudo o que eu conseguia ver era uma série de caras pálidas e carregadas pela bruma duradora e invernosa. Uma cacofonia de vento uivante e maquinaria ruidosa tornava as conversas impossíveis, por isso encostei as costas ao assento e esperei pacientemente pelo final da viagem.

    O ferry encimou uma onda, depois desceu por uma vala funda, arrancando gritos de alarme de muitos dos passageiros. Ao meu lado, uma jovem agarrava o seu estômago fazendo-me sentir grata por ter velejado toda a vida. Mesmo em criança, nunca sucumbira ao enjoo marítimo nem mesmo na rara ocasião em que o pai previra mal o tempo e fomos apanhados por uma tempestade ao largo da baía de Moreton.

    — Olhem para a vossa esquerda e verão a ilha — gritou Martin, o jovem docente do Centro de Estudos de Éden.

    Conheci Martin nessa manhã na pequena vila de Prembrokeshire adjacente à marina onde alguns de nós tinham pernoitado depois de chegar de Heathrow. Espreitei pelas janelas salpicadas e reparei numa figura cinzenta envolta em névoa.

    — É pena o tempo — continuou. — É uma vista gloriosa num dia de sol.

    — Têm dias de sol na Grã-Bretanha? — a minha vizinha enjoada tinha um sotaque europeu cerrado.

    Sorri e não tentei responder-lhe. As variações do clima britânico não afectavam esta etapa da minha viagem pessoal. Três meses de liberdade estendiam-se diante de mim — uma interrupção bem-vinda à pressão de conciliar trabalho e casa, as exigências de marido e filhos. «Estudante» seria o meu no papel no Centro de Estudos.

    ***

    Quase deitei fora a brochura do Centro. Recebiamos tanta correspondência indesejada na livraria suburbana de Brisbane, onde trabalhava como gerente, que a maioria era descartada para o cesto de papéis sem olharmos duas vezes. O que prendeu o meu olhar naquele dia foi a fotografia de uma antiga igreja de pedra no meio da capa roxa, como uma pregadeira oval presa em veludo.

    Intrigada, abri a brochura e li o anúncio a um curso residencial de Desenvolvimento Espiritual de doze semanas a ser realizado no Centro de Estudos de Éden. Era um instituto ecuménico situado numa pequena ilha ao largo da costa do País de Gales. O conteúdo era atraente — temas estimulantes intercetados por fotografias de uma paisagem varrida pelo vento e estudantes a cantar. Fora de questão, pensei. E atirei com a brochura para o cesto.

    Enquanto processava faturas, lembrei-me das férias prolongadas que se avizinhavam. Tinha pensado em levar os meus filhos adolescentes, o Stephen e a Penny, à Europa durante as férias de Natal, convencida de que beneficiariam de uma lição prática de história. Mas quando mencionei a ideia ao meu marido, Brian, ele realçou como era absurdo viajar durante o inverno europeu. Como residentes de uma cidade subtropical, não possuíamos roupa quente, as crianças queixar-se-iam constantemente do tempo e metade dos hotéis estariam fechados.

    Com os planos europeus descartados, decidi adiar as minhas férias até que a Penny acabasse a escola no fim de noventa e quatro. Por essa altura, o Brian, gerente sénior num departamento do governo estatal, poderia requerer o seu segundo período de férias prolongadas. O problema do destino de viagem presistia. O Brian preferia navegar pelas Ilhas do Pacífico vizinhas, enquanto eu envisionava caminhar pelas ruas de Paris, Roma e Londres - passávamos sempre férias no barco.

    A minha mão escapou para o cesto de papéis enquanto imaginava doze semanas longe de clientes exigentes, de adolescentes com alterações de humor e da vida suburbana entediante. Quem me dera, entretive, alcançando, ao invés, mais uma fatura.

    Na minha hora de almoço, caminhei para longe da agitação de Estrada de Brighton, em direção à orla do mar, onde me sentei num banco a ler a brochura amarrotada do príncipio ao fim. Sabia que o Brian não oporia a que eu passasse três meses fora. Homem calado e discreto, nunca intreferira com a minha vida espiritual. Embora não fosse à igreja ou professase fé de qualquer espécie, dava apoio tomando conta das crianças quando eu tinha reuniões na igreja, fazendo o jantar todos os Domingos para me poupar o trabalho depois da oração da noite e participando em actividades sociais que, estou certa, achara entediantes. E quanto ao Stephen e à Penny, de dezoito e dezasseis anos, estavam mais que na idade de e tomar conta de si próprios.

    Quando chegou a hora de voltar ao trabalho, fiquei por um momento a ver as ondinhas salpicar a lama e as algas, a encher e vazar, encher e vazar... O movimento contínuo apagava o padrão do ontem. Nesta baía, nesta ilha-continente a que eu chamava casa, estava contida há quarenta anos, mas agora uma outra ilha clamava. Era tempo de me aventurar por mares desconhecidos.

    ***

    Borrifos de sal decoravam o meu cabelo quando desci do ferry para uma pequeno cais de madeira. As tábuas antigas chiavam; roles de cabos molhados estavam caídos na base de postes robustos; as defensas embatiam contra o ferry e o cais. Ao lado de outros, ajudei Martin a descarregar a bagagem e a amontoá-la sobre uma estranha estrutura semelhante a carrinho que puxámos sobre carris metálicos cravados nas tábuas do cais. Pela altura em que chegámos à orla costeira, já uma velha camioneta se materializara, surgida do nevoeiro, que nós rodeámos para acomodar de novo as nossas malas.

    — Este é o único veículo da ilha — informou o jovem condutor, descendo da cabine de um salto — Aqui, no Centro de Éden, fazemos a nossa parte para reduzir as emissões poluentes.

    Contornou a camioneta para abrir as portas traseiras.

    — Então, e um trator ou um corta-relva a motor? — perguntou um senhor de idade com sotaque americano — Percebi que o Centro cultivava a maior parte da sua própria comida.

    Martin sorriu.

    — Certo, mas usamos cavalos para arar os campos e um corta-relva manual para manter os relvados. A camioneta só é usada para transportar bagagem e pessoas mais idosas para a casa.

    O senhor sorriu abertamente e subiu para o lugar do passageiro, enquanto eu suspirei ao ponderar uma longa caminhada com sapatos inadequados.

    Arrumadas as malas, Martin guiou-nos para longe das pedras da praia e dos arbustos vergados pelo vento até a um bosque de árvores altas. Seguiamos em fila sobre um caminho de gravilha manchado por folhas molhadas. Troncos escuros e humedecidos inclinavam-se para o caminho; gotas de chuva caíam dos ramos acima sobre cabelos e casacos. Ao tentar escutar o cantar de algum pássaro, ouvi apenas o vento a mover-se pesaroso por entre as árvores. A ausência de luz do sol perturbava e as árvores húmidas pareciam estreitar-se, comprimindo a minha carne. Ao olhar para os meus sapatos ensopados, senti um arrepio de frio. Então, de repente, estávamos fora das árvores e andar sobre um relvado frondoso salpicado por narcisos dourados.

    — Uau! Olhem para aquelas flores — exclamou uma voz americana atrás de mim.

    Virei a cara e sorri a uma senhora alta afro-americana.

    — Sim, são maravilhosas. Nunca tinha visto narcisos a crescer.

    Ajustei o passo ao seu. Ela devolveu o sorriso.

    — Olá, sou Donna Jones da cidade de Nova Iorque. Não se vêem muitas flores de onde eu venho.

    — Prazer em conhecê-la, Donna. Eu sou Julia Mitchell da Austrália. É assustador ali atrás no bosque, não acha?

    Estremeci embora a brisa tivesse diminuido.

    — Não posso dizer que me tenha perturbado. Estava apenas agradecida por ter saído daquele barco. Por várias vezes pensei que o fim estava perto.

    — Decerto que não. Não foi assim tão mau...

    — Bem, ficarei seriamente feliz por ficar em terra seca pelos próximos três meses.

    — Eu não. Adorava explorar esta costa. Martin disse que há falésias de um lado da ilha e pequenas enseadas do outro. Talvez possa pedir um barco emprestado...

    — Não me parece que os docentes deixem um estudante usar um dos seus barcos.

    — Porque não? Sou uma velejadora experiente.

    — Bem, eu não contaria com isso. Lembre-se do que dizia na última página do formulário da candidatura.

    Tentei recordar detalhes da resma de papel que preenchera havia vários meses.

    — Nós alistámo-nos por três meses — continuou Donna. — Mais ou menos como no exército, mas aqui Deus é o comandante. Só podemos sair da ilha numa emergência.

    Donna atirou a cabeças para trás e riu-se, travessa.

    — Estamos aqui até ao fim, Julia: cativos do Senhor.

    — Sim, agora lembro-me. Dizia «três meses longe do mundo.»

    — «Santuário longe de uma sociedade fora de controlo» — continuou, agora, séria.

    Tornámos a andar a um passo prazeroso até a uma grande residência semelhante às mansões vitorianas que tinha visto em documentários da BBC. Três filas de janelas de madeira posicionadas a intervalos regulares aliviavam a monotonia dos tijolos castanho-avermelhados. Chaminés robustas erguiam-se como sentinelas do telhado acinzentado pontilhado por gaivotas, enquanto ao nível do chão, canteiros de jardim repletos de arbustos verde-primavera ladeavam a extensão da entrada pavimentada. Os estudantes congregaram em torno das portas de madeira abertas.

    — Venham as duas — chamou Martin da ombreira. — Haverá muito tempo para ver o jardim. Estamos à espera de servir o almoço.

    — Já vamos! — gritou Donna em resposta e começou a correr.

    Um vento frio varreu o relvado, agitando os narcisos dourados. Tremendo, corri atrás dela para o abrigo da solidez do tijolo.

    No hall de entrada, havia letreiros que nos dirigiam para a sala de jantar — um espaço cheio de mesas e bancos rústicos de madeira. Um vaso de narcisos decorava cada mesa e o brilho da madeira antiga e das flores amarelas criava uma atmosfera morna e amistosa, refletida nas caras dos que já estavam sentados. Donna gesticulou na direção dos lugares vagos junto à janela e apressámos o passo ao atravessar a sala com aromas deliciosos a passar pelos nossos narizes. Ao deslizarmos pelo banco, senti uma necessidade urgente de comida — parecia que tinham passado dias desde a minha última refeição.

    A conversa parou abruptamente e eu levantei o olhar para ver Martin de pé, perto do balcão de serviço, com os braços elevados acima da sua cabeça.

    — Irmãos e irmãs — começou, enquanto esticava completamente os braços, como se abraçasse todo o grupo. — Bem-vindos ao Centro de Estudos de Éden. Tenham uma estada frutífera e lembrem-se que a semente da fé cresce forte em solo fértil. Neste lugar especial, afastado do mundo, têm uma oportunidade única para oferecerem a vossa vida a Deus. E desse modo, ficarão abertos ao que quer que sejam chamados a fazer quando partirem desta ilha — fez uma pausa. — Agora demos graças pela nossa travessia segura e pela comida que estamos prestes a ingerir.

    De cabeça baixa, fiz o meu próprio pedido e pensei momentaneamente em casa e no lugar vazio à mesa de pinho encostada ao canto da nossa cozinha.

    A sopa fumegante servida com pão escuro de côdea seguido de queijo e fruta saciou a minha fome, mas durante a refeição comi como se estivesse sozinha à mesa, mal levantando a vista da minha tigela e prato. Em meu redor a conversa murmurava melódica e incessantemente. Estranhos passavam a ser colegas e futuras amizades nasciam, mas eu conseguia apenas escutar e observar. Havia demasiados nomes para absorver, demasiadas vozes, demasiados rostos. Queria tempo para assimilar, tempo para saborear cada pequeno pormenor e deixar que os meus olhos e ouvidos se sintonizassem com o ambiente diferente.

    — Então, Julia. Está bem? — perguntou Donna, alcançando a minha mão para a apertar. — Mal disse uma palavra.

    — Estou ligeiramente cansada; é só. Acho que o jet-lag está finalmente a chegar a mim.

    — Porque não faz uma sesta esta tarde?

    — Adorava, mas tenho de me tentar manter acordada. É melhor dormir na altura certa depois de um voo longo; ajuda a regular o relógio interno.

    — Bom, eu vou dormir a sesta. Desfaço a mala mais tarde. Não imagino que haja muito planeado para hoje.

    — Não se esqueçam da oração da noite — disse uma senhora de meia-idade do outro lado. — Depois do jantar na sala principal. É uma oração especial para dar as boas-vindas aos novos alunos. Martin arranjou música distinta para a ocasião.

    — Obrigada. Lá estarei — respondi reparando na identificação pregada no bolso da sua camisa. — A identificação é uma boa ideia. Sou péssima para fixar nomes.

    A senhora sorriu amavelmente.

    — Encontrará uma no seu quarto. Sugerimos que a usem na primeira semana. Sou a May Gordon, professora do Novo Testamento.

    — Prazer em conhecê-la. Não percebi que era professora.

    — Pense em mim como outra pessoa à procura. Aqui, todos caminhamos na mesma estrada.

    ***

    O meu quarto estava situado no terceiro andar ao fim de um longo corredor. Tinha duas janelas: uma para um pequeno lago e outra para um prado com árvores altas. Por vários minutos, fiquei a olhar para os patos e juncos a desejar que o quarto fosse no lado oposto da casa, onde o mar podia ser visto a embater contra as arribas rochosas. Toda a minha vida morei ao pé do mar. Adorava o som das ondas a rebentar, as gaivotas a guinchar, o vento marítimo a cantar nas árvores.

    O lago brilhou sob um raio de sol e o coro da nascente ali perto cantou. Não, decidi, este quarto é o certo.

    Apesar dos limites de peso da companhia aérea, as minhas roupas encheram o pequeno armário de madeira. Fora de moda e tosco, tinha um tampo arredondado, o que me forçava a arrumar a mala debaixo da cama.

    Tudo o que faltava desembalar era a minha nova mochila — um presente do Brian. Levantando-a para cima da secretária de madeira antiga de fronte para uma grande janela, abri os seus inúmeros bolsos para extrair canetas, lápis, cadernos, livros, o livro de orações e a bíblia. Num bolso lateral, descobri um pequeno coala que a Penny me tinha dado no aeroporto.

    — Para te lembrar de casa, mãe — dissera roçando o boneco de pelúcia contra a minha face.

    Sorrindo à memória, pousei o coala no centro da secretária, mas caía sempre para frente, por isso encostei-o à bíblia.

    Um bolso interior continha um pequeno envelope de fotografias de família que eu tinha incluído para me recordar de casa. Com cuidado, coloquei as imagens na secretária: o Brian no barco, o Stephen a brincar com colegas da escola, a Penny num elegante vestido azul que lhe comprei para o baile da escola, o meu pai a abrir presentes de Natal. Um embate de saudades de casa atingiu quando peguei na fotografia mais próxima e a virei para a pregar no quadro de cortiça adjacente à secretária.

    Uma vez bem ordenadas fotografias a cores, abri a carteira e retirei uma impressão a preto e branco desbotada que eu trazia sempre: a minha mãe de faces ocas e com os seus braços magros cruzados sobre o vestido claro de verão. Nunca conheceu o Brian e nunca segurou os meus bebés nos seus braços. Preguei a sua fotografia ao lado das outras e dispensei rapidamente as minhas mágoas antigas.

    ***

    Foi um batimento à porta que me fez acordar abruptamente e questionar por um momento porque estava deitada completamente vestida numa cama desconhecida.

    — Julia, é Donna. Vai descer para o jantar?

    — Entre. Não está trancada.

    Afundei a cabeça de novo no travesseiro. Ela entrou no quarto de repente.

    — Levante-se, dorminhoca, ou vai passar fome.

    — Não queria dormir. Estava só a experimentar a cama. Agora vou demorar a eternidade a voltar ao normal.

    — Espere uns dias e ficará bem.

    Donna olhou para o meu quadro de cortiça.

    — É família?

    — Sim, é o meu marido, Brian, no nosso barco.

    Ela acenou e começou a estudar as outras fotografias.

    — Quatro crianças... deve estar exausta.

    — Quatro? Ah, não. O meu Stephen é o do meio. Os outros são amigos dele.

    — Um rapaz bonito!

    Eu também achava que sim e aceitei o elogio com um sorriso.

    — Tem filhos, Donna?

    — Sim, dois diabretes gémeos de doze anos, Robbie e Jamie. Tiram-me do sério.

    — Deve ser difícil deixá-las por três meses.

    — A minha mãe percebeu. Ela tem jeito e os meninos adoram estar na casa dela. Estraga-os com montes de guloseimas e bolachas caseiras.

    — O seu marido importa-se que vá embora?

    — Não o vejo há dez anos.

    — Sinto muito.

    — Não sinta. Ele não valia a pena.

    — Deve ser difícil ser mãe solteira...

    — Ah, não é assim tão mau. Além disso, não me lembro de nada diferente. De qualquer forma, tenho a minha mãe e muita ajuda das pessoas da igreja. Há muitos que passam pior.

    — Diria que sim.

    Uma campainha tocou no corredor.

    — A campainha do jantar — clamou Donna, agarrando o meu braço. — É tal e qual como na escola. Venha, Julia, vamos comer.

    ***

    A sesta tinha banido a minha reticência. Agora, estava desejosa por meter conversa e assumir o meu lugar na comunidade da ilha. Passando os olhos pela sala, encontrei uma mesa ampla, com oito lugares, seis dos quais já estavam ocupados.

    — Aqui parece bem, Donna.

    Gesticulei em direção à mesa.

    — Certo. Lidere o caminho.

    Depois de nos apresentarmos, tomámos os lugares vazios de lados opostos da mesa — posições ideais para ficarmos a conhecer os outros estudantes. Uma taça de massa embebida num molho rico de tomate apareceu à minha frente seguida de outra de salada. Sorrindo em agradecimento, enchi o prato e deitei água no copo. Os outros já iam a meio da refeição, mas tiveram o cuidado de me incluir a mim e a Donna na conversa. Entre garfadas, e escutando o diálogo amistoso, conheci Sabine, Hannah, Marie-Claire, Hans, Benjamin e Ruth da Alemanha, Zâmbia, Bélgica, Suíça, Quénia e Escócia. No espaço de uma hora, as fronteiras do meu mundo expandiram para lá de todas as minhas expectativas e a minha boca doía de tanto sorrir. A um nível mais profundo, rejubilava por estar perto de outros crentes e antecipava ansiosamente a nossa adoração e estudo coletivo.

    Depois do jantar, ajudei Ruth a levantar a mesa e depois segui para a sala principal — um espaço amplo de teto alto com paredes em azul-claro e uma carpete cinzenta. Inúmeras filas de cadeiras forradas estavam dispostas em semicírculo diante de um piano e de um ambão. De pé na periferia, procurei um rosto conhecido. Reparei em Donna sentada na primeira fila com uma cadeira vaga ao seu lado. Por norma, prefiro sentar-me mais para trás quando encaro uma sala cheia de gente mas, ainda assim, fui até à dianteira.

    — Importa-se que me junte a si, Donna?

    — Claro que não.

    — Olá, sou Marceline do Ruanda — disse uma jovem à minha direita enquanto me sentava.

    — Julia, da Austrália.

    Nos seus olhos castanhos brilhava a amizade; os seus dentes brancos reluziam.

    — Muito prazer em conhecê-la, Marceline.

    O seu vestido pelo tornozelo roçava-se enquanto ela se encostava no assento.

    Fiz uma nota mental para procurar um atlas na biblioteca do centro. Sabia que o Ruanda era um país Africano, mas não fazia ideia de onde estava localizado nesse vasto continente.

    Sentada entre duas mulheres que usavam roupas coloridas (Donna mudara de indumentária para uma saia vermelha e uma blusa branca deslumbrante), senti-me tão sumida como as cadeiras desgastadas com as minhas calças de ganga desbotadas e camisa azul-clara. Ao longo das paredes pendiam as bandeiras das nossas muitas nações pregadas ao friso. Um enorme crucifixo de papel crepe multicolor refletia a pálida luz do fim da tarde sobre a lareira de pedra cinza. Arco-íris giraram diante dos meus olhos e eu quis pular da cadeira, dançar pelo chão e mergulhar os meus dedos num pote de ouro irradiante.

    A música intercetou os pensamentos absurdos. De mãos postas no colo, ouvi acordes bem conhecidos de um hino favorito. Martin tocava sem música com a cara inclinada para o lado, como se recebesse as notes de um outro lugar. Pensei nas suas palavras de boas-vindas antes do almoço, na sua exortação a sermos frutíferos de entregarmos a nossa vida a Deus. Claramente, a semente da fé florescia nele, mas não podia deixar de me perguntar como um jovem aguentava dia após dia uma existência insular. Talvez preferisse um ambiente recatado, a intimidade próxima comunidade?

    O hino concluiu e notei que May Gordon deixara o seu assento na ponta da fila da frente e estava de pé por trás do ambão.

    — Conseguem todos ouvir-me? — perguntou ajustando o microfone.

    — Sim — respondemos em coro.

    À sua direita, no canto mais distante da sala, reparei num homem que não tinha visto antes sentado por trás de dois grandes tambores africanos. De cabeça baixa e cara na sombra, apenas um círculo de cabelo preto encaracolado era visível na luz que esvanecente. Esperava que fosse esta a «música distinta» que May Gordon mencionara ao almoço.

    Martin levantou-se do banco do piano e avançou. Erguendo os braços, curvou as mãos, aproximando-nos tal como tinha feito algumas horas antes na sala de refeições. Obediente, fechei os olhos, e direcionei os pensamentos interiormente. O silêncio reforçou a minha expectativa. Passaram minutos e sentia-me desesperada por ar como se tivesse mergulhado profundamente e a pressão me apertasse os pulmões. Um tossido empurrou-me para cima e abri os olhos assim que o nosso respirar coletivo de repercutiu contra a superfície.

    — Esta noite celebramos a nossa fé em Deus com música — exclamou May englobando a sala toda com o seu olhar. — Mas não esperem melodias ou ritmos conhecidos. A nossa música será alta e exuberante e agitará mesmo as nossas almas. Esta

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