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Uma Questão de País
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E-book395 páginas5 horas

Uma Questão de País

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Sobre este e-book

Na véspera de Natal de 1969, uma carta da Australia House, Londres, traz notícias agradáveis para os recém-casados Anna e Joseph Fletcher.


Jovem e idealista, Anna se apaixona intensamente por sua terra adotada. Mas logo, um acontecimento inesperado faz com que sua vida siga um rumo dramático.


Em desespero, Anna se retira para um mundo fictício que ela criou. Mas quando um novo desafio se apresenta, será que ela correrá o risco - ou se refugiará na fantasia?

IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de jan. de 2023
Uma Questão de País

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    Uma Questão de País - Sue Parritt

    Uma Questão de País

    UMA QUESTÃO DE PAÍS

    SUE PARRITT

    TRADUZIDO POR

    JULIANA CHIAVATTI GRADE

    Direitos autorais (C) 2020 Sue Parritt

    Design de layout e direitos autorais (C) 2023 por Next Chapter

    Publicado em 2023 por Next Chapter

    Arte da capa por CoverMint

    Este livro é um trabalho de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes são produtos da imaginação da autora ou são usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com eventos, locais ou pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência.

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou por qualquer sistema de armazenamento e recuperação de informações, sem a permissão da autora.

    CONTEÚDOS

    A Carta

    Sem Volta

    Aprendendo Maneiras Australianas

    O Bom Fim de Semana

    Bush, o Escândalo e os Caprichos da Linguagem

    Almoço e um Desenvolvimento Inesperado

    Dia de Natal Estilo Australiano

    Tempo Selvagem

    Comemoração de Ano Novo

    O Choque do Fim de Verão

    Aflições no Meio do Inverno

    Horizontes Esperançosos

    Os Melhores Planos…

    … Muitas Vezes Dão Errado

    Um Retorno Surreal

    Provações e Outras Tribulações

    Os Perigos da Eficiência

    Harrow Street

    Choques em Shangri-La

    Ressurgimento

    Rejeição

    Lutar ou Fugir

    Aceitação

    Consolidação

    Choques Suburbanos

    Um Meio Para o Fim

    Uma Temporada Limitada

    Nova Década, Nova Direção

    Mudança de Cenário, Mudança de Ritmo

    Progresso Lento

    Sucesso e Complicações

    Tempo Mutável

    As Consequências das Mudanças Climáticas

    Desmoronando

    Refúgio

    Intrusão

    Caro leitor

    Agradecimentos

    Sobre a Autora

    Para Mark, amado marido por mais de cinquenta anos (novembro de 1969-) e companheiro de migração (julho de 1970)

    A CARTA

    Anna lembrou-se de chegar em casa naquele dia de dezembro com toda a claridade cristalina de um vidro recém-lavado, detalhes daquelas horas de longa data embebidos em seu sangue e osso. Eles marcaram o nascimento de uma relação tempestuosa que, após cinquenta anos, ainda daria cor para sua vida.

    Uma pilha de correspondências de Natal cumprimentou seus sapatos encharcados de neve, precipitando uma dança desajeitada do capacho novo para o carpete puído. Depois de depositar a bolsa e a sacola de compras no balcão do hall, ela pegou as cartas e folheou os pequenos envelopes, sorrindo para o endereço ainda desconhecido escrito por amigos e parentes. No final da pilha, um envelope de papel pardo chamou sua atenção e seu sorriso se alargou quando ela notou os detalhes da entrega datilografados e o carimbo postal de Londres. Segurando o envelope entre os dedos enluvados, ela não fez nenhuma tentativa de recuperar os cartões de Boas Festas que caíam como flocos de neve gigantes sobre o tapete floral desbotado. Uma corrente de ar da porta aberta provocou uma ação rápida de seu pé direito, enquanto sua mão esquerda alcançou o interruptor de luz, posicionado por algum motivo desconhecido a pelo menos um metro da porta. De braços abertos, ela deslizou sobre o cartão de Natal da tia Maud, borrando a caligrafia em caneta-tinteiro, depois se inclinou em direção ao suporte do corredor. Grata pela pesada mobília vitoriana, ela agarrou a borda polida para evitar uma queda. Leve como um pássaro, o envelope marrom flutuava para baixo para se juntar a variedades mais pálidas no tapete.

    Com o equilíbrio restaurado, Anna tirou os sapatos e se abaixou para pegar as cartas espalhadas. Parecia não haver sentido em segurar o envelope pardo contra a luz; a sala estava muito escura para ver qualquer coisa útil àquela hora da tarde de inverno. Além disso, concordaram que um não deveria saber antes do outro; eles devem abri-lo juntos, compartilhar as notícias boas ou indesejadas. Infelizmente, ela sabia que Joseph chegaria tarde em casa, pois a visita mensal de seu gerente de área terminaria com drinques no bar na sexta-feira antes do Natal.

    Duas horas e dez minutos depois, com o jantar pronto e a cozinha aconchegante com o fogão a gás e do fogão a lenha, ela ainda esperava para cortar o grosso papel pardo. Apoiado na bancada da cozinha ao lado do sal e pimenta, o envelope parecia zombar de sua ocupação deliberada, sua aba colada e conteúdo desconhecido nunca longe do pensamento ou do olho.

    De repente, ela ouviu a porta da frente bater na parede com um baque. Um segundo baque e passos no corredor estreito confirmaram a chegada de Joseph.

    — Cheguei, querida, — ele disse como sempre, entrando na sala.

    Da porta da cozinha Anna o viu jogando seu casaco em uma poltrona e atravessando o linóleo de cozinha rachado espalhando folhas molhadas. Lábios gelados beijados, hálito de uísque aquecido, cabelos molhados pingando sobre seu avental listrado de doces.

    — O que tem para o jantar? — ele perguntou, soltando-a e caminhando até o fogão.

    — Chegou, — ela respondeu sem fôlego, afastando-o das panelas e frigideiras.

    — O quê? — ele perguntou, então notou o envelope.

    Lado a lado, eles se empoleiraram nos banquinhos amarelos da cozinha que ele havia feito algumas semanas antes, as cabeças juntas, a carta esticada entre os dedos pálidos pelo inverno.

    — Sim! — ele gritou.

    — Sim, — ela repetiu.

    Ele a ergueu levemente, girando-a para longe da claustrofobia da cozinha. Animados, eles dançaram pelo salão pouco mobiliado e pelo corredor estreito até o quarto bagunçado. Na cozinha, batatas cozidas esfriadas, feijões cozidos congelados, linguiças grudadas em alumínio brilhante. A carta da Australia House estava abandonada na bancada da cozinha.

    SEM VOLTA

    Um táxi transportou o jovem casal da estação para as docas, deixando-os em frente a uma série de galpões de lata que se apoiavam uns nos outros. Anna mal conseguiu distinguir a palavra Alfândega na placa descascada acima de uma porta entreaberta. Depois de descarregar as duas malas, o motorista desejou-lhes boa sorte e acelerou em meio a uma nuvem de fumaça negra.

    Atrás do galpão da alfândega, o navio agigantava-se contra um céu nebuloso de verão, suas elegantes linhas brancas perfuradas por vigias. Anna notou o funil amarelo, os botes salva-vidas pendurados como lanternas ao longo do convés de estibordo, e teve que desviar o olhar, não por arrependimento por estar deixando sua terra natal, família e amigos, mas para restaurar sua identidade. O navio a dominou, pegando sua vida insignificante, todos os seus sonhos e medos reduzidos a números digitados em um contrato de transporte azul. Nervosismo de última hora, ela presumiu, lembrando-se das lágrimas mal disfarçadas de seus pais na estação, seus sorrisos forçados enquanto o trem se afastava da plataforma. Eles haviam recusado uma despedida no cais, seu pai afirmando que seria muito perturbador para sua mãe.

    Os pais de Joseph moravam a mais de 160 quilômetros do porto e não tinham carro, então vir para as docas de Southampton não era uma opção. A despedida dos sogros havia sido feita semanas antes, no final de um fim de semana difícil, apertado em uma pequena casa geminada junto com os três irmãos de Joseph e um cachorro fedorento. Desde o noivado, um ano antes, Anna tentou fazer amizade com Alan e Stella, mas foi uma batalha difícil, principalmente sua sogra não escondendo o fato de que desaprovava a escolha de Joseph.

    A princípio, Anna ficou irritada com os comentários sarcásticos sobre sua falta de estilo, sua propensão para a leitura de literatura séria, o metodismo de seus pais, mas, à medida que o dia do casamento se aproximava, ela se refugiou no compromisso clandestino marcado para o segundo dia de sua breve lua de mel em Londres. Um casamento no final de novembro oferecia locais limitados para recém-casados interessados em preservar suas economias, então eles reservaram três noites em um modesto hotel de Londres, com o objetivo principal de facilitar a viagem para a Australia House na Strand. Meses antes, eles haviam preenchido os formulários de emigração na privacidade do quarto de Joseph – ele dividia um apartamento com dois amigos – e, após uma resposta rápida da Australia House, compareceram a um consultório médico específico para exames médicos. Uma carta informando que ambos atendiam aos padrões de saúde australianos veio logo depois. Em meados de outubro, os aspirantes a migrantes haviam progredido para o último obstáculo, de acordo com o jovem alegre com quem Joseph havia conversado ao telefone ao marcar a entrevista obrigatória para coincidir com a lua de mel.

    Anna antecipou uma atmosfera formal, funcionários públicos enfadonhos sentados atrás de uma mesa disparando perguntas, mas os dois oficiais da imigração – jovens e geniais – passaram a maior parte do tempo entusiasmados com a vida no país sortudo, seu discurso salpicado de descrições atraentes de praias e matas. As perguntas de Joseph sobre as perspectivas de trabalho foram respondidas com um casual: — Não se preocupe, cara, tem muito trabalho para aqueles dispostos a trabalhar duro, — seguido por um conselho amigável para aprender os costumes australianos rapidamente e não reclamar. Ouvindo o diálogo subsequente, Anna concluiu que os britânicos chorões eram uma raça desprezada, destinada ao ostracismo em eventos sociais e no local de trabalho.

    — Apenas lembrem-se, comparar a Austrália com a Grã-Bretanha é um exercício inútil, — declarou o oficial mais jovem no final da entrevista. — Na minha opinião, os dois países representam extremos opostos do espectro. A Grã-Bretanha é uma nação velha e superlotada que já teve seus dias. Império em frangalhos, alto desemprego, indústria em declínio, pessoas de rosto sombrio lutando para sobreviver. A Austrália, por outro lado, está subindo rapidamente na escada das conquistas, uma nova e vibrante nação destinada à grandeza.

    Embora Anna admirasse seu patriotismo entusiástico, ela não podia deixar de sentir que suas opiniões eram um tanto tendenciosas. Milhares de britânicos podem estar procurando uma vida em outro lugar, mas cinquenta e cinco milhões permaneceram. Prudentemente, ela permaneceu em silêncio, desempenhando o papel de nova esposa complacente que os oficiais pareciam exigir. Haveria tempo depois, na privacidade de seu quarto de hotel, para mastigar a entrevista, rir da linguagem exagerada e, se necessário, expressar opiniões feministas de longa data. A pergunta final quase provou sua ruína e custou imenso esforço para permanecer serena e responder ao que ela considerava uma impertinência absoluta.

    — Quantos filhos você pretende ter? — o homem mais velho perguntou, inclinando-se para ela.

    Anna e Joseph trocaram olhares. Os bebês não estavam em seus planos para agora. Eles haviam conversado sobre filhos, mas concordaram que começar uma família poderia esperar alguns anos, com Anna tendo apenas vinte e dois anos e Joseph vinte e quatro no próximo aniversário.

    — Três, pelo menos — respondeu Anna, no que esperava ser um tom convincente.

    — Mais rapidamente possível? — Um sorriso arrogante surgiu nos lábios finos do oficial. — Povoar ou perecer, sabe.

    — Dê-nos uma chance, — retorquiu Joseph. — Estamos casados há apenas dois dias!

    Esperando na fila da alfândega, Anna lembrou-se das risadas dos funcionários e pensou nos pacotes de pílulas anticoncepcionais guardados com segurança em sua espaçosa bolsa de ombro. Na semana anterior, uma visita ao médico local garantiu uma receita para três meses de suprimentos, para cobrir o período de viagem e dar a ela tempo para se registrar em um clínico geral australiano. Não haveria gravidez não planejada na casa dos Fletcher.

    A fila avançava, uma mala ocasional era aberta para inspeção, passaportes examinados ou, em alguns casos, os documentos de identidade fornecidos pela Australia House sem nenhum custo para aqueles sem passaporte. Passagem só de ida, Anna refletiu enquanto Joseph entregava o documento, com os detalhes escritos à mão e dois rostos carrancudos colados dentro de caixas com bordas pretas na parte inferior. Anna precisou de várias tentativas para conseguir fotografias adequadas. Apertada em uma cabine de fotos, sua expressão sombria se dissolveu duas vezes em risos quando a câmera disparou. — O que diabos você está fazendo aí? — Joseph tinha perguntado, parado do outro lado da cortina segurando sua tira de quatro fotos aceitáveis.

    — Vá para o navio agora — instruiu o funcionário da alfândega, indicando uma porta à sua esquerda.

    Joseph pegou a mão dela. — É isso, minha garota.

    Anna sorriu. — Sem volta agora, estamos assinados e carimbados.

    Uma vez a bordo, eles se arrastaram por corredores estreitos e lotados, procurando portas idênticas para suas cabines designadas. O convés B continha principalmente cabines de quatro camas; as famílias foram alojadas nos conveses inferiores. Casais sem filhos eram segregados, quatro esposas em uma cabine, quatro maridos na seguinte. Uma passagem que deveria ser paga não atendia ao apetite dos recém-casados. Nos dias inebriantes da migração em massa, era um caso de amontoar o máximo possível. Todas as semanas, um navio que transportava centenas de emigrantes esperançosos partia de Southampton para a longa viagem para o sul.

    Eles não se demoravam para encontrar companheiros de cabine, preferindo estar no convés quando o navio partia. De acordo com a muito viajada tia Maud de Anna, a partida traria cerimônia e celebração. Serpentinas, uma banda de metais, a buzina do navio ressoando, multidões no cais acenando, gritos irrompendo no momento em que um cabo rijo começou a rebocar o enorme navio para longe do cais.

    Um marinheiro colocou uma serpentina colorida na mão livre de Anna enquanto Joseph a puxava pelo convés. Uma fila ininterrupta de passageiros permanecia na amurada esperando o sinal para lançar. Anna teria que jogar sua flâmula para o alto e torcer para que o vento a levasse até o cais, não para os cabelos penteados para trás de algum estranho.

    — Aqui! — Joseph gritou, empurrando-a por uma pequena brecha.

    Ela agarrou o corrimão e olhou para os rostos erguidos reunidos para a despedida. Graças a Deus, seus pais decidiram não vir se despedir deles. Desinibida, ela poderia saborear o momento, socar o ar em triunfo, pular de alegria, gritar até que seus pulmões estivessem prestes a explodir. — Tchau, tchau! Adeus ao velho, bem-vindo o novo, Austrália, aqui vamos nós!

    Os iates compartilhavam a passagem do transatlântico pela Southampton Water, indo para a Ilha de Wight ou para o Canal para uma corrida ao longo da costa. A ilha passou; campos de colcha de retalhos margeados por altas falésias brancas. A partir de agora mar aberto, primeiro porto de escala as Ilhas Canárias, manchas de rocha no vasto Atlântico. Nenhum cruzeiro pelo Mediterrâneo para seu lote de migrantes, já que o Canal de Suez estava fechado para navegação desde a Guerra Árabe-Israelense de 1967. Hoje em dia, a viagem para a Austrália durava cinco semanas em vez das quatro como era antes à guerra, descendo a costa oeste da África, contornando o Cabo da Boa Esperança e atravessando o Oceano Índico, com apenas duas paradas antes de chegar ao porto de Fremantle, no oeste da Austrália.

    Os primeiros dias transcorreram sob um brilho de sol, as horas entre as refeições ocupadas com nadar na piscina, jogos no convés e explorar o navio. Durante a breve visita a Tenerife, a maior das sete Ilhas Canárias, Anna e Joseph, junto com outros do navio, aproveitaram um passeio de ônibus barato para ver o Teide, o terceiro maior vulcão do mundo. Outros passageiros optaram por caminhar pelas ruas de Santa Cruz de Tenerife, admirando edifícios coloniais bem preservados.

    Uma semana após o início da longa viagem, muitos passageiros continuaram aflitos com enjoo e, em várias ocasiões, Anna e Joseph sentaram-se sozinhos em sua seção da sala de jantar, para grande decepção dos garçons que tentavam transferir cinco pratos. Pela primeira vez em suas vidas, eles comeram um bife grelhado, saboreando cada suculenta garfada. Joseph engoliu quatro pedaços em uma refeição, deliciando o garçom italiano. — Troppo sottile, — disse ele, indicando o braço magro de Joseph. — Comam, comam!

    A travessia do Equador trouxe diversão e celebração, Anna se ofereceu para ser uma das meias dúzias de jovens mulheres vestidas com saias de grama, biquínis e guirlandas de flores, saltitando no convés para a cerimônia de cruzamento da linha. Sua recompensa foi um certificado ornamentado escrito em latim, com Netuno montado em um cavalo, tridente na mão.

    Mas três dias depois no Hemisfério Sul, o Senhor do Mar balançou sua lança de três pontas, espalhando os passageiros para a segurança do bar e do café. A chuva fria açoitava os conveses vazios e o sol e as estrelas recuavam para trás das nuvens escuras de tempestade enquanto o navio navegava por mares imensos.

    Barreiras surgiram ao redor das mesas de jantar conforme o navio se aproximava do Cabo da Boa Esperança, mas a comida, principalmente a sopa, ainda precisava ser consumida rapidamente para evitar derramar. Mais uma vez, o magrelo Joseph desfrutou de grandes porções.

    O porto da Cidade do Cabo proporcionou dois dias de descanso dos mares agitados, mas para Anna, a majestosa Montanha da Mesa e a bela paisagem costeira foram prejudicadas pela sempre presente injustiça do apartheid. Desde o momento em que ela pisou em solo sul-africano, as consequências da segregação racial a sufocaram como uma nuvem malévola. Vinte e dois anos morando em uma próspera cidade litorânea não a prepararam para a visão de crianças pedindo esmola nas ruas.

    Na porta de uma grande loja de departamentos, uma jovem negra vestida com um vestido esfarrapado estava sentada no chão, segurando um bebê minúsculo envolto em pano de saco. Atrás da mulher, luzes fluorescentes iluminavam prateleira atrás de prateleira de casacos sob medida, elegantes vestidos jersey e chapéus alegres. Chocada, Anna ficou olhando, incapaz de levantar os olhos do rosto enrugado da criança. O vento soprava na rua vindo do porto, levantando o véu de sua ingenuidade juvenil, jogando-o alto nas nuvens de carvão que encobriam a cidade e o topo plano da montanha.

    — Esta loja não, — disse Joseph, sem perceber a angústia dela. — Precisamos de um supermercado para o sabão em pó.

    Ainda focada na extrema pobreza, ela permitiu que ele a conduzisse pela rua, lembrando-se tarde demais de seu fracasso em aumentar as poucas moedas na tigela da mulher.

    No supermercado, levou algum tempo para localizar os produtos de lavanderia, pois a primeira compradora que Anna se aproximou murmurou: — Não falo com mulher branca, — antes de sair correndo. Joseph disse que talvez a mulher não tivesse entendido a pergunta, mas Anna achou isso improvável.

    De volta a bordo para o almoço, o jovem casal do condado de York, de quem haviam feito amizade, não parecia compartilhar o horror e a perplexidade de Anna. Garotos mendigando na rua mais incomodaram do que chatearam Clive e Janette, assim como a placa na agência postal, que os impediu de entrar na fila mais curta de Somente Negros.

    Mais tarde naquela noite, a ausência de um sinal semelhante causou ainda mais irritação quando os dois casais tentaram entrar em uma boate da cidade e foram impedidos de entrar por um porteiro carrancudo de proporções gigantescas. Através das janelas, multidões de pessoas vestidas com cores vivas podiam ser vistas dançando ao som de uma banda de jazz. — Que pena, — comentou Joseph enquanto eles se retiravam, — a música parecia fabulosa.

    — Malditas regras estúpidas, — retorquiu Clive. — Graças a Deus não estamos nos mudando para cá.

    Janette deu um tapa em seu pulso. — Fale baixo, não queremos aborrecê-los.

    Em contraste, o local Somente Brancos ficava mais adiante na estrada onde tocavam músicas gravadas – uma seleção ruim, consideraram os casais ingleses, tendo crescido ouvindo os Beatles e os Rolling Stones. Entediados, eles saíram depois de uma hora e decidiram voltar a pé para o navio, em vez de pegar um táxi.

    À medida que se aproximavam do cais, a distância entre os postes de luz aumentava, o tráfego diminuía e as vitrines das lojas se tornavam formas cinzentas sob o luar fraco. Eles caminhavam rapidamente, as golas das jaquetas levantadas contra o ar frio da noite. Não muito longe do navio, um grupo de jovens conversava e fumava na entrada de uma loja às escuras. O quarteto inglês passou sem dar uma segunda olhada, meia dúzia de jovens reunidos em uma noite de sábado sendo uma visão comum em suas respectivas cidades natais. Passos apressados atrás deles eram quase imperceptíveis acima da conversa amigável; em poucos minutos, eles estavam cercados.

    Os homens eram altos e magros, rostos escuros e roupas fundindo-se com a rua sombreada. Mãos negras agarraram as lapelas dos homens brancos, separaram-nas, enfiaram fundo nos bolsos internos. Anna viu Clive ficar tenso em antecipação a um golpe que nunca veio; Joseph ficou imóvel, seu rosto uma máscara de estoicismo. Palavrões cortaram o céu noturno quando mãos surgiram vazias de moedas ou notas. Anna ficou de lado, olhando para a frente, a bolsa contendo o dinheiro e o documento de identidade pendurado no peito. Os xingamentos se intensificaram, tornando-se descrições vívidas do que os homens queriam fazer com os corpos das mulheres brancas. Apenas palavras, Anna disse a si mesma, deixando-as flutuar sobre sua cabeça. Ao lado dela, Janette empalideceu, o medo inundando seus olhos azuis como lágrimas quentes.

    Ainda xingando, os jovens recuaram, deixando os quatro migrantes britânicos abalados, mas ilesos. Mais tarde, encostada no parapeito do navio, contemplando o céu estrelado e as luzes cintilantes da cidade, Anna achou difícil conciliar a beleza do lugar com a feiura do preconceito e do privilégio criados pelo homem. Mas maior que o medo, o choque ou a tristeza foi o sentimento de indignação que experimentou durante uma viagem de ônibus pela cidade no dia seguinte. No meio do passeio, o ônibus diminuiu a velocidade para permitir aos turistas uma boa visão do Hospital Groot Sur, onde o Dr. Christian Barnard realizou as primeiras operações de transplante de coração. Depois de olhar para o monólito branco por alguns momentos, uma mulher de meia-idade sentada no assento do corredor oposto a Anna fez várias perguntas ao motorista sobre o prognóstico de longo prazo para pacientes transplantados. O motorista forneceu apenas respostas vagas, relutante ou incapaz de se desviar de seu discurso definido.

    O ônibus passou por grandes casas cercadas por altos muros encimados por arame farpado, depois desceu uma colina íngreme até um grupo de prédios que lembravam os galpões da alfândega nas docas de Southampton. Reduzindo um pouco a velocidade, o motorista explicou com orgulho: — Este é o hospital que fornecemos para os negros.

    A mulher do outro lado ficou de pé. — É um barraco de lata dilapidado! Você deveria ter vergonha de si mesmo. Como pode tolerar este terrível apartheid?

    — Vocês ingleses não entendem a situação aqui, — retorquiu o motorista, pisando fundo no acelerador.

    A mulher começou a falar novamente, mas desta vez o homem ao lado dela colocou as mãos firmemente em seus ombros e, empurrando-a para trás no assento, disse suavemente: — Agora não é hora de ser uma boa puritana, Ruth.

    Outras palavras queimaram na boca de Anna. Ela queria pular e parabenizar a mulher por dizer o que certamente estava em todas as suas mentes, mas algo a impediu. Não era o medo do motorista relatar comentários inapropriados às autoridades, ou arriscar um acidente ao voar em curvas fechadas, mas sim o constrangimento de se destacar e causar uma cena. Então, em vez disso, ela pegou a mão de Joseph, apertou-a e engoliu em seco para desalojar as palavras impotentes presas em sua garganta.

    Discutindo o incidente mais tarde durante o café em um bar no convés, Joseph observou que, embora houvesse necessidade de ação, também havia a necessidade de saber o momento certo para agir. Anna concordou, sem saber que suas palavras voltariam para assombrá-la no mundo pós-apartheid dos anos noventa.

    O tédio se instalou após o interlúdio da Cidade do Cabo, com o vasto Oceano Índico precisando ser cruzado antes de chegarem à terra. Tiveram de suportar duas semanas de mau tempo, a piscina fechada, os passeios pelo convés reduzidos a breves incursões ao vento. Sozinha à noite em seu beliche estreito, Anna ansiava pelos braços de Joseph, beijos demorados, dedos acariciando os seios macios.

    Uma noite, eles puxaram conversa com um casal australiano que estava voltando para casa depois de um ano trabalhando na Inglaterra. Após as habituais amenidades e discussões sobre o regime do apartheid na África do Sul, a conversa voltou-se para o navio em geral e as acomodações em cabines em particular. Como passageiros pagantes, os australianos tinham uma cabine só para eles e se ofereceram para emprestá-la por uma ou duas horas, seguindo o comentário de Joseph sobre a separação a bordo. Ele aceitou a oferta incomum sem hesitar, forçando a corada Anna a fugir para o banheiro mais próximo.

    Nus no beliche de cima – eles não gostavam de usar os beliches de baixo habitados pelos australianos – Anna e Joseph riam como adolescentes fazendo sexo pelas costas dos pais ausentes. Os membros ficaram emaranhados, os pés de Joseph batiam na parede da cabana e Anna não conseguia se sentir confortável. Não foi uma total perda de tempo, mas decidiram não solicitar a cabine novamente. Fazer amor por encomenda nos confins apertados de um beliche superior carecia de apelo.

    Na manhã seguinte, o casal australiano os abordou no convés. — Teve um bom dia, cara? — perguntou o marido, cutucando Joseph nas costelas.

    Mortificada, Anna olhou para os próprios pés, desejando que o vento levasse para longe a resposta de Joseph.

    O porto de Fremantle forneceu aos migrantes o primeiro vislumbre da Austrália. Cais movimentados, armazéns feios, gaivotas grasnando; poderia ser as docas de Southampton novamente, exceto pelo céu azul de um brilho raramente experimentado durante o verão inglês, muito menos no inverno.

    Juntamente com vários outros passageiros, Anna e Joseph pegaram um trem para Perth, passando por bolsões de indústrias e casas degradadas até o centro da cidade. As lojas eram semelhantes às que haviam deixado para trás, embora Anna tenha ficado confusa ao descobrir que Manchester significava lençóis e toalhas. Em Kings Park, eles se sentaram em um banco comendo sanduíches de ovo e alface no almoço, a refeição simples agradável depois de semanas de ricas refeições a bordo. Admirar a flora tropical ocupou o resto da tarde, Anna deleitando-se com a folhagem exuberante. Tolamente, ela ignorou os caminhos de cascalho, manchando seus sapatos de lona branca enquanto corria pelos gramados recém-regados.

    De volta ao espaço confinado do navio, Anna desejou que eles tivessem desembarcado definitivamente, como os passageiros que observaram parados no cais com as malas aos pés. Impaciente, ela queria abraçar a vida australiana sem demora. — Mais duas paradas antes de começarmos nossa nova vida, — ela lamentou para Joseph, enquanto eles percorriam o convés. — Por que os dias no mar passam tão devagar?

    — Paciência é uma virtude, — começou ele, recitando a primeira linha de um poema que Anna certa vez citou para ele. — Além disso, no que me diz respeito, nossa nova vida começou no momento em que embarcamos.

    — Podíamos ter vindo de avião, — ela murmurou, lembrando que Joseph tinha insistido que viajar de navio seria a melhor opção porque eles poderiam trazer todos os seus pertences, em vez de uma mala cada. Não que eles possuíssem muito. A primeira casa deles estava totalmente mobiliada, com um conjunto de bancos de cozinha amarelos sendo a única adição.

    — E deixar nossos presentes de casamento para trás? — ele rebateu.

    Ela pensou no hediondo jogo de jantar que Stella lhes deu no Natal: porcelana grossa, cores berrantes, xícaras e tigelas de formatos estranhos. — Fico feliz por podermos trazer aquela mesinha linda que seu tio fez, — disse ela, preferindo o tato à crítica. — Mesmo assim, ficarei feliz em chegar ao nosso destino final.

    — Eu também. — Joseph diminuiu o passo. — Minha principal preocupação é o emprego. Nossas economias não vão durar muito se não encontrarmos trabalho rapidamente.

    Anna pegou a mão dele. — Não se preocupe, tenho certeza de que conseguiremos algo dentro de algumas semanas. Havia muitas vagas listadas naquele jornal que lemos esta manhã. — Durante o café da manhã, o comissário anunciou que jornais australianos de vários estados estavam disponíveis no saguão principal e aconselhou os passageiros a lerem a publicação relevante.

    Joseph olhou por cima da cabeça dela para a água azul interminável. — Eu sei, mas não posso me candidatar a um emprego no meio do oceano.

    Anna quase citou o poema de paciência, pensou melhor e disse, em vez disso: — Não se esqueça que aquele sujeito atrás do balcão da Australia House disse que Brisbane é uma cidade em movimento.

    Joseph apertou a mão dela. — Eu amo o seu otimismo alegre, querida.

    Brisbane, localizada no meio da costa leste da Austrália, foi escolhida como a nova casa dos Fletchers não pelo clima ou pelas perspectivas de emprego, mas

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