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Gird: O quarto mago
Gird: O quarto mago
Gird: O quarto mago
E-book195 páginas4 horas

Gird: O quarto mago

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Sobre este e-book

O Irã, país hoje situado no primeiro plano do cenário mundial, aparece neste livro em sua forma clássica e ancestral: a Pérsia. Por volta do ano 30 d.C., esse império é ameaçado por um misterioso enfraquecimento do fogo, que representa a divindade. Os magos Gaspar, Melquior e Baltasar encarregam um jovem eunuco de repetir a viagem que eles haviam feito à Judeia três décadas antes. A missão de Gird Vastar é convencer o nazareno a salvar a Pérsia por meio de um milagre. Para isso, porém, exige que os magos assumam a culpa por terem causado a matança dos inocentes por Herodes.
O romance Gird narra as peripécias do jovem persa nessa difícil viagem de inverno. Ele tem de ultrapassar a cordilheira Zagros, a planície da Mesopotâmia, o deserto da Arábia e o muro romano que corta a Palestina em duas partes, numa alusão à polêmica situação existente hoje em Israel. Na Judeia, Gird aproxima-se do apóstolo Tomé, convive com personagens bíblicos e toma parte nos eventos decisivos da paixão de Cristo.
O livro é uma narrativa de viagem, em tom de aventura, e ao mesmo tempo uma reflexão sobre a culpa como caminho para a salvação humana. Faz uma imersão na vida cotidiana da Judeia à época do Novo Testamento. Retrata também a cultura da antiga Pérsia, o atual Irã, onde então imperava o zoroastrismo, cujos preceitos de preservação da natureza a tornariam a primeira "religião ecológica" do planeta.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de abr. de 2021
ISBN9786586396065
Gird: O quarto mago

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    Gird - Renato Modernell

    Gird - Renato Modernellrosto

    "Se queres acreditar em milagres

    começa por fazê-los tu mesmo."

    Beethoven

    Sumário

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 14

    Capítulo 15

    Capítulo 16

    Capítulo 17

    Capítulo 18

    Capítulo 19

    Capítulo 20

    Capítulo 21

    Capítulo 22

    Capítulo 23

    Capítulo 24

    Capítulo 25

    Capítulo 26

    Capítulo 27

    Epílogo

    Sobre o autor

    Mapa de 1860 destaca o núcleo do antigo império persa, no atual Irã.

    1

    Esta história se passa há mais de dois mil anos, na Pérsia. Nesse país que, para nós, já é quase uma lenda, ocorreu algo que nem o poeta mais delirante poderia ter imaginado: o fogo enfraqueceu. Isso mesmo. O fogo. Essa entidade soberana, que parece ter sido sempre assim em todos os tempos e lugares, lá, na antiga Pérsia, perdeu sua capacidade de aquecer e queimar.

    Em qualquer parte deste mundo, e talvez de outros, isso por si só já seria um enorme problema. Na Pérsia, então, nem se fala. Os persas, vale recordar, identificavam o fogo com o deus Ahura Masda. Veneravam as labaredas. Cuidavam da chama assim como o mais devoto cristão seria capaz de zelar pela cruz do salvador, se ela estivesse num museu.

    Para alguns estudiosos, o enfraquecimento do fogo na Pérsia teria sido um fenômeno progressivo, imperceptível à maioria das pessoas. Um lento anoitecer. Situam seu ponto de partida no momento em que o grande império de Ciro e Dario começou a declinar e a ceder terreno. Para outros, no entanto, tratou-se de algo drástico, pontual, como uma ponte que de repente se parte. Numa manhã qualquer, o ferreiro de uma aldeia qualquer se irrita por não conseguir moldar uma ferradura de cavalo. Ouvimos seu grito:

    < O fogo está podre!

    Seria difícil para nós, tanto tempo depois, apurar o modo como as coisas se passaram. O que de fato sabemos, sem sombra de dúvida, é que a certa altura o problema ganhou relevância em todo o reino. Mas isso não ficou claro para todos ao mesmo tempo. Os magos foram os primeiros a observar algo estranho no comportamento do fogo. Eles sempre tiveram uma sensibilidade especial para essas coisas.

    Na fértil cidade de Esfahan, com pomares banhados pelas águas do Zayandeh, Melquior notou que a combustão travava, regredia, como se a lenha estivesse úmida, mesmo quando não estava. Não muito distante dali, em Yazd, cuja aridez acentuada pela densa poeira sempre constituíra uma nutritiva placenta para o fogo, Gaspar sobressaltou-se ao constatar que as fagulhas débeis, efêmeras, tombavam no chão como respingos de água. Já não deslizavam no ar, como os vagalumes; só piscavam, como os relâmpagos, para sumir antes que o olho pudesse detectar a sua trajetória. Na distante Shiraz, a cidade das rosas e dos rouxinóis, Baltasar custou a acreditar no que via. A chama empalidecera. Em vez da habitual cor alaranjada da haste tremulante, um amarelo pálido, enfermiço, da cor da bile, emoldurava o espaço vazio. Era como se um buraco de fechadura surgisse onde outrora cintilava o cerne azul da labareda.

    Mas não só os magos detectaram o fenômeno. Os homens práticos e até os rústicos, a certa altura, também se deram conta de que o fogo já não era o mesmo de antes. Nas noites de inverno, os pastores tremiam de frio e assopravam as brasas na vã esperança de atiçá-las. Os que trabalhavam na fabricação de moedas e espadas praguejavam por não conseguir cumprir os prazos estabelecidos pelo governo, o que bem podia lhes acarretar uma sessão de chibatadas. Os homens encarregados de transmitir mensagens lançavam aos ares sinais de fumaça truncados e que só poderiam parecer garranchos se por acaso chegassem aos olhos do destinatário. Em contrapartida, pelejavam para decifrar as informações erráticas como tossidos que viam surgir no horizonte do deserto. O reino da Pérsia parecia descambar no caos.

    Nesse quadro, como se pode imaginar, os dramas pessoais se multiplicaram. Um dos mais significativos foi o de Gird Vastar. Esse jovem magricela, mas de olhar sólido, vivia em uma aldeia perto da localidade de Marv, a noroeste de Yazd. A água das montanhas chegava a essa região por canais de trajetória incerta, incrustados na terra, mas acima do chão as labaredas costumavam se alçar com a precisão das serpentes. Isso, antes. Bons tempos. Porque depois tudo mudou. No dia mais traumático de sua vida, Gird teria de sofrer mais ainda por conta da apatia do fogo. Como se verá adiante, ele jamais haveria de esquecer o brilho daquela faca recurva e afiada como um dente de javali. E o estrago que essa faca causou: um jorro de sangue, a carne rompida em suas últimas membranas, onde o corpo e a alma se misturam.

    Não muitos dias antes desse instante terrível, Gird pressentira algo estranho. Era uma noite de lua. Os olhos escuros de Hadda Nalpata brilhavam como as uvas. A pele dela exalava perfume de alecrim – o orvalho do mar, diziam os antigos da aldeia, embora poucos deles houvessem cruzado o deserto para ver a espuma das ondas.

    Com delicadeza madura, Hadda Nalpata esfregou urina de vaca no corpo de Gird para tirar as impurezas externas, as que grudam na pele. Depois examinou o chão da cabana para se certificar de que não havia ali lascas de unhas, fios de cabelo nem quaisquer outros resíduos humanos. Sorriu, ressaltando as rugas incipientes. Mandou Gird tirar a roupa e deitar ao seu lado no piso de barro. Conduziu-lhe a mão ao seu próprio púbis. Disse:

    < É hora de entrar por onde saíste.

    E assim foi. Quando tudo se consumava, Gird sentiu uma força externa sugar-lhe o líquido. Um asterisco estalou na forma de pensamento:

    * Vou morrer!

    Não morreu. O esguicho reviveu nele a vertigem infantil do dia em que caíra do galho de uma figueira.

    * Mas é bom morrer!

    A sensação de queda se alongou como um fio de saliva, até se partir. Quando deu por si, ele viu Hadda Nalpata, ainda arfante, estendida ao lado. De olhos fechados, fazia uma prece. Pedia a Ahura Masda que o caprichoso esperma lhe aderisse às mucosas lasseadas pelos anos. Ao terminar, sorriu de um modo como Gird jamais tinha visto antes. Deu a ele duas bolinhas de gude. Uma bege como o pão, a outra escura como o vinho tinto. Os dois se afastaram da cabana.

    No dia seguinte houve comemoração na casa. Arrancaram da parede uma folha de palmeira com furos feitos a ponta de faca. Esse calendário, calculado por um homem quase cego que sabia de cor os movimentos celestes, correlacionava as fases da lua aos dias férteis de Hadda Nalpata. Ao final da manhã, ouviram três batidas na aldrava reservada aos homens. Um primo de Gird foi atender a porta. O sacerdote chegava de Marv trazendo uma cópia dos Gathas em uma das mãos, e na outra um ramo da planta da fertilidade. Saudou a matriarca lembrando que seu nome prestava homenagem àquela erva. Depois se pôs a entoar hinos diante do altar. Um músico se aproximou com uma cítara de setenta e duas cordas. Atraídos pelo emaranhado de sons, os vizinhos vieram desejar boa sorte. Como de costume, estenderam a visita até a próxima refeição.

    As lentilhas estavam um pouco duras, mas ninguém reclamou. Nessa região da Pérsia já se notava certa resignação com a fraqueza do fogo, incapaz de cozinhar os grãos até o ponto ideal. Mesmo assim, insistiram que Gird comesse bastante. Precisava recompor as forças para o caso de vir a perder muito sangue em Yazd.

    camelo

    2

    Nos primeiros dias da lua nova, Hadda Nalpata viu um redemoinho no deserto. Achou que estava grávida. Fez uma pequena provisão de pistaches, pegou uma bolsa de couro, montou num jumento e disse para Gird acompanhá-la, a pé. Tomaram a estrada pedregosa de Marv, que depois infletia para Yazd.

    De repente, viram-se dentro de uma pequena nuvem de poeira. Mal conseguiram divisar o vulto escuro de um funcionário do correio que galopava em sentido contrário. Gird ficou maravilhado. Aqueles eram os homens mais velozes do mundo. Montados em cavalos armênios, eram capazes de percorrer toda aquela estrada antes de chegarem a consumir um punhado de pistaches. Eles, porém, levaram a manhã inteira para vencer uma distância que nem chegava a três parasangas. No caminho, Hadda Nalpata contou coisas muito antigas sobre Dario, que havia trabalhado no correio antes de se tornar imperador da Pérsia.

    Perto de Yazd, eles divisaram a encosta ressecada de uma colina. Uma estrada precária serpenteava até o topo, onde a inclinação tênue se punha a prumo, convertendo-se em uma fortaleza de adobe de formato amplo e circular, como um enorme mamilo. Estavam próximos a uma das torres de silêncio. Cheiro de carniça. Lá em cima da colina, os cadáveres eram destrinchados pelos bicos das aves de rapina, explicou Hadda Nalpata. Só um rei, ao morrer, podia ser enterrado. Os corpos dos súditos, no alto das torres de silêncio, aguardavam a chegada dos corvos, águias e abutres. Se as aves estivessem famintas, o serviço de picotagem era rápido. Em três dias, só restavam ossos. Gird tinha o olhar fixo na torre. Hadda Nalpata adivinhou-lhe o pensamento. Confirmou:

    < Ali colocamos Pourushaspa.

    Com o sol a pino, os dois entraram pelo portão norte de Yazd. Gird estivera ali uma vez, quando pequeno. Não tinha noção exata do tamanho das coisas. Só agora, anos depois, conseguia avaliar o quanto Yazd era maior que Marv.

    Atravessaram o ruidoso mercado. Hadda Nalpata comprou uma romã, um punhado de nozes e pequenas porções de iogurte e mel. Dirigiram-se ao palácio do governador da província. O edifício, com fachada de pedras e guarnecido por ciprestes, ostentava cúpulas resplandecentes. A água fresca jorrava em diversas fontes. Gird intimidou-se diante da construção suntuosa que servia de moradia ao sátrapa. No portão principal, admirou as altas colunas encimadas por cabeças de touro.

    Os funcionários do palácio os fizeram adentrar um salão octogonal. As paredes de mármore exibiam incrustações de pedras provenientes de diversas regiões do reino, com colorações que variavam do cinza ao marrom escuro. Sob a cúpula esférica, no centro do salão, o olhar desolado de um sacerdote vigiava a pira sagrada, na qual a chama drapejava como uma bandeirola esfarrapada.

    Hadda Nalpata postou-se a nove passos do fogo. Fez uma prece a Ahura Masda e mandou Gird repetir suas palavras. Só então permitiu que os funcionários encaminhassem o rapaz à enfermaria do palácio. Mas não saiu de perto dele, acompanhando os preparativos. Gird tremia de medo.

    * Gente esquisita, essa.

    Um dos enfermeiros fez Gird entornar dois cálices de uma beberagem diurética. Depois, mais uns goles de outra, escura e amarga, cuja função era aplacar a dor, conforme explicaram a Hadda Nalpata. Era uma precaução necessária. O fogo já não tinha a força necessária para esquentar o líquido anestésico.

    Gird começou a ficar tonto. Sentiu o odor das rédeas do jumento: era Hadda Nalpata a lhe acariciar o rosto suado. Depois a mesma mão calosa a manusear o seu órgão genital. Estava claro que Gird não seria capaz de fazê-lo por si só. Bamboleava diante da vasilha de cobre que os enfermeiros haviam colocado na sua frente. Mandaram o rapaz urinar tudo o que pudesse. E depois segurar uma em cada mão, bem forte, suas bolinhas de gude.

    O enfermeiro corpulento abraçou Gird pela cintura para imobilizá-lo. Dois outros separaram suas pernas e as agarraram com força. Com olhos arregalados, o rapaz viu irromper diante dele um quarto personagem. Um homem forte como um gorila, e também muito gordo, com um avental ensanguentado a lhe pender do quadril. Era o castrador chinês. Sua faca curta e arqueada brilhou na penumbra da enfermaria. Hadda Nalpata desviou os olhos para não ver o golpe. Nem precisaria. Ninguém viu nada, de tão rápido. Como no salto de um réptil, a mão balofa que empunhava a faca deu um talho preciso rente à parte inferior do abdome de Gird, arrancando tudo o que se projetava da virilha. Foi uma enxurrada de sangue. O grito do rapaz ecoou nos corredores do palácio. Ele ainda viu seus testículos rolarem no piso, mas aí desmaiou. Antes que o castrador tivesse tempo de se apossar das partes amputadas – diziam que as fritava para comer – Hadda Nalpata apanhou-as do chão num gesto furtivo. Besuntou-as de iogurte e mel e acondicionou-as na bolsa para lhes dar a destinação estabelecida nos preceitos.

    Gird foi voltando a si. A primeira coisa que enxergou foram duas uvas viçosas: os olhos de Hadda Nalpata. Ele percebeu então que ataduras grossas cobriam uma ampla área em torno da sua cintura, até um palmo abaixo do umbigo, envolvendo inclusive a parte superior das coxas.

    Hadda Nalpata pediu permissão para dar a Gird a romã e as nozes trazidas do mercado. O enfermeiro concordou, mas advertiu que o rapaz não deveria ingerir líquidos até o fim da lua nova, quando lhe retirariam o tampão uretral.

    * E se eu não conseguir urinar?

    Gird não ousou

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