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Família e Identidade
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E-book413 páginas9 horas

Família e Identidade

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Sobre este e-book

No século XXI, em que o sentido de pertencimento e de ter um lugar no mundo estão abalados, essa obra traz à sala de psicoterapia nosso paciente "família", seus aspectos sombrios, seus complexos neuróticos, omissões, segredos, permanências e rupturas.
O livro Família e Identidade debruça-se sobre questões de grande relevância para a análise da família contemporânea, cuja arquitetura, marcada pela grande diversidade de configurações aponta para a necessidade de um novo paradigma no manejo de seus conflitos.
As novas formas de parentalidade e de parceria conjugal são destacadas neste livro como natureza íntima do processo de formação da identidade individual, sabendo-se que cada sujeito se estrutura a partir de seu potencial e de seus vínculos.
O sentido de identidade, de reconhecer-se em si mesmo, é fundado pela possibilidade de "tornar real o que é possível" através da abertura à alteridade, "do resgate do Outro em si mesmo". Esse processo envolve escolhas e reconhecimento de limites, tarefa desafiadora ao espírito humano.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de mai. de 2021
ISBN9786555234091
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    Família e Identidade - Celia Brandão

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    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2019 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO PSI

    Agradecimentos

    Então, quando alguém te contar uma história, como eu estou aqui contando, há uma mensagem que diz: você é importante. Essa é a confirmação de que contar histórias e receber histórias é, de fato, um ato de amor.

    – Mia Couto

    Nossos agradecimentos a nossos clientes, que tantas histórias nos contam todos os dias, histórias que aprendemos a entender como porta-vozes de símbolos e de enigmas sobre quem é o outro e sobre quem somos nós.

    Nossos agradecimentos à SBPA, primeira Instituição Junguiana da América Latina.

    Nossos agradecimentos a nossas famílias, cujas histórias ressignificadas nos conferem identidade.

    Nossos agradecimentos aos amigos, integrantes de nossa Família Psicológica, por nós escolhida.

    Nossos agradecimentos a Carl G. Jung pelo conceito de inconsciente coletivo que possibilita um diálogo entre mito e ciência.

    PREFÁCIO

    Enquanto os filósofos se embriagam com suas terminologias, a verdade brinca de roda com as crianças.

    (Migalhas, Paulo Bonfim, 2014).

    Envaidecido, pela escolha do meu nome para prefaciar este livro, Família e Identidade, coordenado pela minha querida amiga Celia Brandão (logo eu que, nestes últimos tempos, andei pensando em tornar-me psicanalista, até mesmo com uma passagem de dois anos pelo Sedes Sapientiae), inicio, lembrando minha família de origem, a famosa família Doriana, conhecendo muitas outras iguais, felizes (aparentemente... e com seus segredos..., conforme aborda meu amigo Alberto Patrício, neste livro).

    Famílias...

    Casei-me por três vezes, tendo três filhos, que vieram da primeira união, que me deram três netos, fora os enteados das duas outras. Hoje vivo com quatro netos de minha mulher, criados por nós. Penso em adotá-los, aos 69 anos…

    Famílias...

    Tenho um filho alcoólatra, o mais velho dos três. Com minha primeira mulher, mãe dele, já, há muito, separados, íamos juntos às reuniões do AA, sessões de terapia, e às ruas, para recolhermos o filho caído. Hoje, faço isso com minha atual esposa, madrasta do rapaz.

    Famílias...

    Volto minha memória para 1969, quando, no primeiro ano de Direito, com nove colegas de classe, comecei a trabalhar com famílias na favela do Bororé, com um foco maior nas crianças e nos adolescentes. Já formado, continuei com aquele povo por mais alguns anos. Foi quando comecei a cuidar, como advogado, das graves questões familiares daquelas pessoas. Famílias do incesto. Casais que não podiam se separar, em face da extrema pobreza em que viviam. A perda do pátrio poder (hoje poder familiar), perante as Varas de Menores (hoje da Infância e da Juventude), diante do alcoolismo e ou da prostituição dos pais. Crianças e mulheres espancadas. Crianças que iam para as ruas e não voltavam mais. Famílias que, apesar da miséria reinante, viviam mais ou menos bem... Aparentemente.

    Famílias...

    Mais ou menos nessa época, fui para as ruas, com uma determinada organização religiosa, onde fiquei por uns 15 anos. Logo quando lá cheguei encontrei um comandante de aviação que não queria voltar para casa. Contou-me que perdera um filho de 5 anos. Após o enterro do garoto, foi para as ruas e lá ficou. De repente, desapareceu... Quem sabe se não voltou para sua família.

    Famílias...

    Tive, também, no início desses trabalhos, contato com um professor húngaro, já idoso, que tinha vindo do Paraná. Falava oito idiomas, inclusive latim. Entendia de física, química, matemática, filosofia e literatura. Enfim: falava sobre tudo, menos sobre sua família. Quando eu insistia no assunto, ficava bravo. Também, de um dia para o outro, desapareceu...

    Famílias...

    Felipe, um menino de 11 anos, que já tinha matado aos 9. Falando com ele, várias vezes, veio a confirmação daquilo. Contou-me que, desde os 6 anos, era violentado, na favela onde vivia, pelos meninos maiores. Aos 9, sem pai, com uma mãe que se prostituía e, portanto, sem tempo para ele, resolveu o problema cortando o pescoço de um daqueles moleques, que morreu. Daí, jurado de morte, fugiu para as ruas do Centro da Cidade. Tive uma ideia, que contei para ele. Eu iria até onde sua mãe morava, mudando-a de residência, para um lugar distante. Assim, ele poderia voltar a morar com sua mãe, o que lhe restava como família. Ao me ouvir, sorriu e me disse: Tio, minha família não está lá. Minha família está aqui. Retruquei, afirmando que ali não havia família alguma e sim outras crianças e adolescentes, naquela mesma condição de rua. Ainda sorrindo, disse-me: Pois é tio... esta é a minha família....

    Morreu aos 14 anos, baleado em plena Praça da Sé.

    Famílias...

    Meninas adolescentes, exploradas sexualmente, nas imediações da Praça da República. Quase todas elas com uma história comum: tinham sido molestadas sexualmente, dentro de casa, pelos homens que lá moravam (o vovô, o irmão mais velho, o primo, o tio etc.). E os campeões desse torneio macabro eram os pais e padrastos. Tinham muita raiva deles. Mas, também, das mães, que muitas vezes, cientes do que ocorria, silenciavam-se.

    Famílias...

    Encontrei nas ruas, para meu susto, um colega de turma. Esquizofrênico, ouvia vozes. Sua família não aguentou a barra e o soltou ao Deus dará.... Morreu, em uma noite fria e chuvosa, na frente da faculdade onde estudamos, deitado no Território livre do Largo de São Francisco.

    Famílias...

    Adotei afetivamente, no final dos anos 70, um menino de 15 anos, viciado em drogas, que se tornara um trombadão para poder se sustentar, uma vez que tinha sido expulso de casa pelo seu pai, engenheiro, e pela sua mãe, professora. Foi trabalhar comigo, em meu escritório. Tratou-se no H.C., voltou a morar com os pais, voltou a estudar e, de repente, teve uma recaída. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete recaídas. E eu, sempre indo buscá-lo nas ruas, pacientemente. No oitavo resgate, disse para ele algo que eu já não lembrava mais (ele recordou-me do que eu disse, quando veio trabalhar comigo na Cracolândia, em 2011): Cara, você é um ‘pé no saco’. Você é muito chato. Eu não aguento mais você, mas, passado esse tempo todo, eu passei a amar você como um filho. E de filho, a gente não desiste. Vamos embora, de novo. Dessa vez, ele saiu e não voltou mais para as ruas. É, hoje, um professor universitário, um admirável administrador hospitalar e desenvolve um trabalho maravilhoso com crianças e adolescentes em situação de rua e drogadição, no Rio de Janeiro.

    Famílias...

    Abandonei meu voluntariado nas ruas na metade dos anos 80, quando perdi um funcionário que morreu de pneumonia, por ter Aids. Conversando com o médico dele, fui conhecer aqueles primeiros doentes com Aids. Sem remédios, drogas, coquetéis, o sofrimento deles era inacreditável. E suas famílias, na maior parte das vezes, não estavam com eles. Quem os visitava eram, às vezes, os seus namorados.

    Famílias...

    Resolvi voluntariar-me para trabalhar com eles, no Hospital Emílio Ribas, saindo das ruas (acabei voltando somente em 2011, para tarefas na Cracolândia). E uma passagem, em uma enfermaria, levou-me à minha dissertação de mestrado (que eu nunca tive tempo para transformar em livro): A timidez do legislador constituinte ao definir família – A família formada pelo afeto. Em uma tarde, mais de uma vez, encontrei-me com um jovem cantor de 25 anos, que estava morrendo. Pediu que eu cantasse com ele. Fiz isso, mas logo parei, porque na porta da enfermaria havia uma senhora chorando. Fui socorrê-la e ela me disse que era a mãe daquele rapaz. Assim, contraditoriamente, estava sofrendo, por ver seu filho naquela situação deplorável, mas, por outro lado, negando-se a estar ao lado do jovem, por não poder perdoá-lo, uma vez que, quando ele tinha 15 anos, expulsou-o de casa, por ter descoberto que ele era homossexual. Enquanto eu conversava com ela, tentando fazer que mudasse de atitude, passa por mim um rapaz, dirigindo-se ao leito do doente. Logo o beija na testa. Senta-se ao lado dele, apanha sua mão direita e começa a cantar aquela mesma música, escolhida pelo doente, que logo morre. E morre com um bonito sorriso. Nesse momento, olhando para a mulher, concluí que apesar de ela ser biologicamente mãe do falecido, não era família dele. Quem era a família daquele jovem era o namorado dele.

    Famílias...

    Advoguei na área de família por 20 anos. Muitas conciliações (algumas reconciliações também). No início, desquites. Depois, separações. Geralmente consensuais. Mas, por vezes, grandes litígios, com separações e divórcios intermináveis. Investigações de paternidade (de maternidade, uma só), mas, também, muitos reconhecimentos voluntários, principalmente após a última Constituição Federal. Milhões de ações de alimentos. Disputa pela guarda de crianças e adolescentes. Profeticamente, criei, nos anos 70, a guarda compartilhada, sem chamá-la por esse título. É que meus regimes de visitas eram tão quantitativos (e qualitativos, também), que pareciam ser aquela atual modalidade. Afastamento dos filhos, por quem detinha a guarda, da outra parte. Síndrome de alienação parental, que sempre existiu, sem ter esse nome. Acusação de abusos sexuais, geralmente nos dias de visitas. Por vezes verdadeiras, mas, muitas vezes, alegações que vinham por vingança ou, até mesmo, por histeria. Brigas entre familiares nos inventários, por patrimônios, até mesmo pequenos. Testamentos surpreendentes, indicando filhos tidos fora do casamento...

    Famílias...

    Já como coordenador da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça, tendo como companheiro o meu querido amigo Ademir Benedito, que nos brinda com um excelente capítulo neste livro) fui um dos primeiros Magistrados a incentivar adoções de crianças por casais homoafetivos (aliás, no geral, ótimos pais e mães). Adoções inter-raciais. Adoções de crianças mais velhas (geralmente os adotantes querem bebês por não terem passado), de meninos e meninas com deficiências (mentais, bem mais difíceis de serem aceitos). Adoções de grupos de irmãos. Quando estava no Sedes, inventamos as adoções compartilhadas. Se eu só posso, financeiramente, adotar um deles, outros adotarão os demais. Mas, para isso, muitas reuniões, lá no Sedes, aos sábados à tarde, para criarmos vínculo entre os adotantes, para que os irmãos não se separassem, por completo. Adoções internacionais (até hoje, faço parte da Comissão do TJ que cuida disso), com uma certeza: os estrangeiros são melhores (sem amarras, mais livres, cabeças abertas, corações grandes etc.) do que nós. Crianças destituídas do poder familiar (por violência sexual, ou por tortura, com requintes de velhos campos de concentração). Crianças e jovens que nunca sairão dos abrigos. A felicidade de se ter uma família extensa. O início da família acolhedora. O apadrinhamento. Crianças que nascem nas ruas. Crianças que já nascem viciadas em crack. Adolescentes grávidas, andando, como zumbis, por aí. Para uma delas, perguntei quem era o pai. Ela sorriu e me disse: Tio: eu nem sabia que eu tinha transado....

    Famílias...

    O que eu sempre sonhei seria ver todas as crianças na companhia de seus pais de origem. Mas isso não é possível. Então é o que eu digo: A adoção é um ato de amor, como gentilmente lembrou Iraci Galiás, em seu magnífico capítulo.

    Isso tudo não é nada perto do que os maravilhosos autores deste livro conhecem sobre o tema.

    Parabéns a todos!

    Aviso aos navegantes: tirando este chato prefácio, o restante é uma leitura imperdível!

    Antonio Carlos Malheiros

    Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Advogou por 20 anos na área de família. Trabalhou com famílias, na favela do Bororé, por 10 anos. Trabalhou com famílias, nas ruas, por 15 anos. Voluntário no Hospital Emílio Ribas, trabalhou com doentes com Aids (pacientes adultos, crianças e suas famílias) por 22 anos. É professor universitário, lecionando Direito de Família e Infância e Juventude em duas faculdades, palestrando sobre essas matérias, por todo o estado de São Paulo, pela OAB/SP. É consultor do Tribunal de Justiça de S. P. em Infância e Juventude.

    APRESENTAÇÃO

    TUDO COMEÇOU BEM ANTES

    Com surpresa e gosto aceitei o convite que me fez Celia Brandão para apresentar este livro, escrito por um time bastante representativo de companheiros de jornada em nosso ofício de analistas junguianos – e lá se vão mais de quatro décadas recheadas de realizações – ao lado de um eminente colega (porque assim nos sentimos) jurista. Pertencem quase todos os autores – exceto dois muito benvindos – à primeira sociedade de psicologia analítica fundada no Brasil, nos idos de 1978, por dois pioneiros, Iraci Galiás e Nairo de Souza Vargas, ao lado de outros analistas naquela ocasião. Fui convidado a integrar o corpo inicial de associados quando completei minha formação no Instituto C. G. Jung de Zurique, em 1981, mas preferi seguir um caminho independente – o que de forma alguma impediu que mantivéssemos atualizadas nossas afinidades e que tantas vezes participássemos juntos de congressos internacionais, palestras e encontros com tantos colegas estrangeiros que nos visitavam. E mais do que tudo, reuníamo-nos naqueles animados fins de semana anualmente promovidos pela SBPA desde seus primórdios em Campos do Jordão, conhecidos pelo nome tupi de Moitará, encontros interdisciplinares inspirados no ritual alto-xinguano de trocas intertribais. Sinto, portanto, reafirmados nesta oportunidade os laços originais que nos uniam, servindo-me deste prefácio para celebrá-los.

    A leitura que fiz dos 11 capítulos que compõem a obra coletiva que ora apresento fez-me perceber que não se trata de mais um livro sobre a família, esta bendita e famigerada instituição que, parodiando Winston Churchill quando certa vez referiu-se à defesa da democracia, certamente é a pior forma de administração e vivência do parentesco, com exceção de todas as demais. Ou, mais popularmente, é ruim ter que conviver com a família, mas sem ela talvez seja pior. Há os que reclamam por tê-la, como há quem não a tem e sente falta, especialmente no natal! Quantos de nós terapeutas já não ouvimos a voz baixa de pacientes aflitos confessando o desejo de se unir a alguém que lhes trouxesse, à guisa de dote, uma família inteira para poder chamar de sua, ou aqueles que protestam, alegando que se casaram apenas com a pessoa amada, e não com a família desta pendurada a tiracolo. Tanto já se escreveu sobre o tema, desde tratados histórico-sociológicos a manuais de autoajuda, de fundamentos teológicos a libelos acusatórios ou defesas fundamentalistas, não fosse a análise da trágica família de Édipo canonizada por Sigmund Freud a pedra fundamental de uma torrente de teorias, análises, desconstruções, ataques virulentos, propostas reformistas, aconselhamentos e oferecimento de ajuda profissional das mais variadas orientações. Ora a boa família cristã é tida como a solução dos mais graves problemas sociais, como violência, anomia, criminalidade, decadência e deturpação dos supostos mais elevados valores ocidentais, ora a família disfuncional é vista como causadora dos exatos mesmos problemas. O fato é que a história da lenta e obscura história da origem dessa duradoura criação sociocultural chamada família se perde nas neblinas do tempo anterior ao alvorecer da consciência, da imaginação e da memória.

    Este conjunto de ensaios, unidos pelo mesmo fio e pela mesma visão construtiva, almeja pôr em evidência um estilo de pensamento analítico e crítico capaz de partir o gesso que enrijeceu a abordagem costumeira desse tema, cuja discussão costuma ser delimitada por categóricos imperativos legais, religiosos e conservadores. A falta de independência e audácia reflexiva do tanto que se escreveu, falou e publicou sobre essa tão reverenciada célula mater da sociedade, alegadamente criada pelos céus junto ao casamento indissolúvel, acabou por alçar a família ao status de sacralidade, de tabu, de tema discutível apenas se respeitados os parâmetros da prática discursiva de uma pseudo-intelligentsia temerosa de mudanças socias. O pensamento obsequioso, em tempos regressivos e sombrios como os atuais, acaba por ressacralizar a instituição originalmente profana da família, de modo assustadoramente hipócrita, autoritário e demagógico, pondo na boca da divindade a condenação aos infernos ou à extinção todos aqueles que ousam viver os laços familiares como produtos do tempo e da história que flui. Já o estilo de problematização do tema que geraram este livro é bem diverso, pois visa explicitar a plasticidade arquitetônica da instituição familiar e suas possíveis reinvenções.

    Sim, é bom sempre lembrar, há uma dimensão anímica que engendra, como construção social, vínculos afetivos que nos ajudem a viver, e que facilitem a nossa progressiva adaptação às cambiantes condições da existência humana. Família é aquilo que nos integra à vida. Família é o que nos resgata da solidão fria oriunda do desprovimento de apoios recíprocos. Família é o que sentimos como família, em todas as suas formas e nomes, contanto que em todas elas, sejam quais forem, encontremos aconchego, companhia, proteção, apoio, encorajamento, escuta, colaboração, solidariedade, compreensão e empatia, compartilhamento de memórias, união de forças, bem-estar, prazer, capacidade de educar e amar os menores, nossos filhos ou não, com ou sem papéis assinados, com ou sem consanguinidade, com ou sem direitos sucessórios, com ou sem foto no porta-retratos. Família pode ser apenas destino biológico, ou um imperativo civil e teológico, mas é melhor que seja uma construção consensual, um entrelaçamento mais ou menos organizado de afinidades eletivas – para lembrar a inesquecível expressão de Goethe.

    Nosso colega italiano Luigi Zoja, que por várias vezes esteve por aqui conosco, enviou-me em 2002 o manuscrito de um livro que veio anos depois a ser publicado no Brasil com o título de O Pai – História e psicologia de uma espécie em extinção (ZOJA, 2005). Para chegar à sua belíssima análise dos três modelos clássicos de figura paterna na cultura ocidental, Heitor, Ulisses e Enéias, Zoja volta à pré-história, apoiando-se para tanto nas mais inovadoras descobertas arqueológicas então disponíveis para entender o surgimento da paternidade. Essa leitura abriu-me novos horizontes, pois em minha formação esse tema nunca fora abordado, razão pela qual considero importante ter sempre em vista os mais recentes achados paleontológicos. Nesse retorno às origens, Luigi Zoja pondera que o pai é uma construção da cultura, um artifício: diferentemente da mãe, que preserva no campo humano uma posição consolidada e onipresente no que diz respeito à vida animal. E prossegue: no limite entre natureza e cultura surge o pai como programa, intencionalidade, vontade, autoimposição. Dada sua aparição recente, e a despeito das aparências impostas pela cultura patriarcal, quando comparado à mãe, o pai é muito mais inseguro a respeito de sua própria condição (ZOJA, 2005, p. 22). Lembra ainda o autor que se toda paternidade é uma decisão, toda paternidade requer uma adoção. (ZOJA, 2005, p. 23). Duas páginas adiante, ainda em sua Introdução, Zoja comenta, com a força característica de sua escrita: para a mãe, a criança é a mesma que estava em sua barriga; para o pai, o esperma e o filho são duas coisas muito diferentes. Notando o quanto se tem escrito sobre o pai patológico, arremata mais adiante: é muito mais fácil o macho ser antipaternal do que a mãe ser antimaternal. Fico tentado, dada a qualidade de seu estudo, a ir reproduzindo muito do que disse para detalhar essa fascinante história de família, mas nada será melhor do que ler seu livro. Retomo a seguir alguns tópicos provenientes de outros textos da pré-história (LEWIS-WILLIAMS, 2007).

    Lembremos que as primeiras linhagens de primatas surgiram há 70 milhões de anos, e deram origem a mais de 6 mil espécies, a maioria extinta. A família dos antropoides inclui quatro gêneros: o dos gorilas, o dos chimpanzés e bonobos, o dos orangotangos e o gênero dos hominídeos, com vários subgrupos, no interior dos quais surgiram várias espécies, como a nossa, a do Homo Sapiens. A provável datação de seu surgimento por meio do processo de evolução e seleção é calculada em 250-200 mil anos atrás. Esses nossos ancestrais desenvolveram um tipo de inteligência igual à nossa, em que quatro modalidades cognitivas se fundiram numa mesma matriz no Paleolítico Superior, sendo elas a inteligência naturalista, que corresponde à função Sensação de Jung; uma inteligência social (função Sentimento), outra técnica (função Pensamento) e a quarta, uma função simbólica, criadora de linguagem, mito, religião e arte (função Intuição). O Homo Sapiens absorveu todas as invenções de outras espécies, como os instrumentos de pedra, a construção de cabanas, os rudimentos de linguagem e o enterramento ritual dos mortos, e foi além: pintava imagens na pedra, fazia incisões, esculpia, cozinhava, ritualizava, simbolizava, e se espalhou por todo o planeta (MITHEN, 2002).

    O papel paterno, não a função de reprodutor, levou quase três milhões de anos para despontar no seio da grande família dos hominídeos como percepção distintiva da consciência, lentamente adquirindo a configuração cultural adequada a um comportamento inovador. A fêmea animal, e a da família dos hominídeos em especial, sabe que é mãe porque reconhece o que pariu, assim como sua prole sabe quem é a criatura que a gerou, alimenta e protege – seja entre o gêneros dos gorilas, dos chimpanzés e bonobos, dos orangotangos ou das várias espécies humanas. Na história da evolução da ordem dos primatas, e de nossa família humana em particular, a vida em bandos itinerantes era a forma mais adaptativa e garantidora da preservação darwiniana da espécie, muito mais do que o isolamento, que não passava no teste da seleção natural (RIBEIRO, 2019). Uma fêmea sadia de qualquer das várias espécies de Homo, fosse Neandertal, Erectus, Faber, Ludens ou Sapiens, teria reduzidíssimas chances de sobreviver sem a proteção e a provisão de víveres realizadas pelos machos do grupo, sendo a caça praticada exclusivamente por estes e a coleta de raízes, insetos, frutas, folhagens, mel, carniça e ossos cheios de tutano também pelas fêmeas desobrigadas da amamentação ou de cuidados permanentes com a prole. Para uma nossa ancestral pré-histórica, recém parida, solitária e isolada, cuidar de sua frágil cria, procurar alimento e defender-se de predadores era uma soma demasiado pesada de tarefas. A sobrevivência e ulterior supremacia predatória que veio a caracterizar nossa espécie só foi possível graças ao agrupamento colaborativo e à criação, certamente produto do instinto de autopreservação, de laços de solidariedade e apego facilitadores da vida. Essa proto-família, há milênios como até hoje, serve basicamente para que se sobreviva.

    Os arqueólogos contemporâneos já acumularam suficientes evidências fósseis para que imaginemos uma cena, em torno de 2 milhões de anos atrás, quando ocorre a evolução do gênero Homo na África Oriental e surgem as primeiras ferramentas de pedra, em que um bando nômade de uns 30 indivíduos mantinha sua associação. Sua vida sexual deveria por certo ser promíscua, lutando agressivamente entre si os machos pela posse intermitente das fêmeas, que diferentemente deles tinham seu apetite sexual regulado pelo ciclo menstrual. Portanto não há base empírica alguma para se pensar numa família pré-histórica baseada no clássico triângulo formado pelo casal progenitor e sua prole, mas sim na existência de um padrão de vinculação por apoio mútuo entre os membros de uma horda composta por várias mães e seus filhos, avós talvez, talvez o reconhecimento primevo da irmandade, mas certamente sem a figura do pai. Como diz Yuval Noah Harari (2016, p. 24), é necessária uma tribo para criar um ser humano. A evolução favoreceu aqueles capazes de formar fortes laços sociais. Já podemos então visualizar aquilo que viríamos chamar de família, milênios depois, sendo gestado no útero do tempo.

    Não nos é dado saber, e talvez nunca seja, qual teria sido a data do atestado de nascimento do pai, mas o que bem conduzidas pesquisas sugerem é que o lar surge antes do pai: criação feminina por excelência, consiste na reunião vespertina do bando num abrigo, ao redor do fogo, por necessidade de calor, de proximidade física para proteger o sono e afugentar predadores, e pela revolucionária novidade que foi a comida quente moqueada, e bem mais tarde cozida. A evidência fóssil que nos permite visualizar essa cena fundante é a datação por termoluminescência de pedras dispostas circularmente em torno de carvão petrificado. Sabemos hoje que o uso cotidiano do fogo, que teve início há cerca de 300 mil anos (HARARI, 2016, p. 7), gradualmente permitiu o abrasamento da carne (e com a invenção da cerâmica, a fervura da água e o cozimento) e o amolecimento de raízes duras, sementes, grãos, tubérculos, folhas e animais de pequeno porte. Essa conquista cultural abreviou o tempo e a dificuldade da mastigação, alterou o formato da dentição (os grandes dentes caninos foram aos poucos perdendo sua função original) e diversificou as fontes nutricionais, beneficiando a evolução neuro-cognitiva. Essa nova prática, moldada por longuíssimas durações de tempo com as quais não estamos familiarizados em nossas hipóteses imaginativas, pode ser considerada como o grau zero da cultura humana complexa, ao lado do enterramento dos mortos adornados e acompanhados de certos artefatos, da fabricação de utensílios especializados de pedra, osso, madeira ou argila, e da invenção do beabá da linguagem, do simbolismo, da tecnologia, de mitos, religião e arte. Sobre a proibição do incesto, que Lévi-Strauss elegeu como um dos três marcos do início da cultura, ao lado da circulação de mulheres promovida por machos de diferentes bandos e do controle do fogo, que tanto pano pra manga nos deu na década de sessenta (líamos em grupo seu O Cru e o Cozido, 1964), é preciso reconhecer que não há evidências fósseis a embasar essa proposta teórica.

    Fazendo parte do primitivo bando familiar que se reunia diariamente ao redor do fogo naquele espaço protegido e íntimo que denominamos lar, palavra esta associada ao local onde se acende o fogo e da qual lareira é um derivado, havia é claro machos que saíam em busca de caça e coleta. A partir de um impreciso marco temporal passaram eles a depositar o fruto de suas buscas no local onde tudo seria abrasado e compartilhado. Pois bem, machos é claro sempre houve, mas não pais. Inexistiu por um tempo incalculável a percepção de que era o esperma o que fertilizava a fêmea, e sabe-se lá o que se pensava a respeito, pois, como ocorre entre os mamíferos superiores e especialmente entre os antropoides, já podiam todos, nesses primórdios, observar que vários machos cobriam a mesma fêmea no período do cio. Essa antiga gente nossa tudo observava e conhecia, mas demorou para se saber qual era a causa exata de reprodução sexuada, muito menos o causador individual da fertilização. Seriam eles muitos, seriam vários, ou não seria ninguém – no fim das contas o mito

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