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Amputação Afetiva de Nós
Amputação Afetiva de Nós
Amputação Afetiva de Nós
E-book144 páginas1 hora

Amputação Afetiva de Nós

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Sobre este e-book

Uma distopia subdesenvolvida, um realismo fantástico subnutrido, uma novela confessional desalentada. Uma periferia da ficção construída na periferia de um país periférico e cada vez mais isolado da civilização. De civilização. Uma pré-história, porque, mesmo com algum passo avante, retrocedemos. Aniquilamos a história. Sem culpa ou memória, livres para repetirmos todos os erros que cometemos e fazemos questão de não lembrar, porém, com as bençãos de um anacronismo descarregado, tecnologia e (é) barbárie. Amputamos (queremos acreditar que nos amputaram) o afeto de nós. Logo o afeto, um órgão vital. Que bom que essa história não é sobre mim ou sobre você, é, sim (por que não?) sobre uma mística ilha, paraíso da democracia e da liberdade, ínsula soberana, chamada Hy-Brasil.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de mai. de 2021
ISBN9786599125638
Amputação Afetiva de Nós

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    Pré-visualização do livro

    Amputação Afetiva de Nós - Leonardo Triandopolis Vieira

    BRILHOU SANGUE

    NO CÉU POLUTO DA

    PÁTRIA ARMADA

    NAQUELE INSTANTE

    Oque você quer? Olá, bom dia. Diga logo. Desculpe incomodar o senhor logo cedo assim, mas é que eu não sou morador de rua. Quero que o senhor fique sabendo disso. Eu moro no interior. E vim aqui pra Capital pra arrumar consulta médica. Acontece que todo o dinheiro que me sobrava pra voltar pra casa eu tive que gastar com remédio, porque não tinha no posto de doação de medicamentos vencidos e a minha doença, senhor, ficou mais difícil de tratar, pois que demorou mais de oito dias pro médico do plano de saúde me atender. Queria que o senhor também soubesse que não sou ladrão. Sou trabalhador, por isso gostaria de me oferecer pra aparar a grama da casa do senhor. Como ela já está alta eu posso realizar esse serviço, e não precisa nem abrir seu portão e nem de ferramenta alguma. Eu faço na mão mesmo, mas faço o serviço bem feito, direitinho, como se fosse feito na máquina de aparar mesmo, em troca de qualquer trocado ou doação espontânea que o senhor possa me oferecer. Não sou ladrão, sou trabalhador. Sou honesto. O senhor pode confiar. Preciso voltar pra casa, pra minha família, mulher e seis crianças que estão esperando meu retorno. Lá eu trabalho na roça, limpo as máquinas que plantam e colhem a soja, com muito suor e honestidade, senhor. Não tenho como voltar a pé. Preciso pegar a condução. E a condução, como o senhor bem sabe, custa dinheiro, mesmo a condução disponibilizada pelo governo, senhor. Custa dinheiro. Qual é o seu nome? Meu nome, senhor? Meu nome é Jesus Maria Nazareno dos Doze Apóstolos. Tá aqui minha identidade pra comprovar pro senhor. Eu já fui rebatizado pelo governo, sou da reserva, esteja certo disso. Olha, Jesus. Aqui em casa eu não tenho o costume de pegar serviço de estranhos não. E o meu jardineiro já ficou de vir esta semana pra aparar a grama da calçada. Sabe, não posso me queimar com ele. Combinado é combinado. Também não tenho nenhum trocado pra ajudar você. Só uso cartão e criptomoeda, pra não deixar dinheiro em casa, sabe. Com esses tempos, a crise, o crime, você sabe do que eu estou falando. Por acaso, você não tem maquininha de cartão com você aí ou um código de pagamento eletrônico, não tem não? Hoje em dia até vendedor de rua tem. Não tenho não, senhor. Então você me desculpe, mas não tenho como ajudar você. O morador da casa número CALIBRE trinta e oito, sentindo-se pouco protegido pelo portão de ferro da sua garagem com capacidade para até três camionetes com cabines estendidas, trancou a porta da residência, onde se encontrava a uma distância segura para atender aquele desconhecido, e ativou o alarme de segurança residencial. Desbloqueou a tela do celular e abriu o aplicativo, que garantia acesso às imagens das dez câmeras de segurança estrategicamente posicionadas por todo o domicílio. Assistiu ao mendicante, que parecia falar alguma coisa sozinho, e esperou ansiosamente para que o mesmo se afastasse dos limites do seu endereço. Obrigado pela atenção, senhor. Fique com Deus e o presidente… Jesus enxugou o suor que escorria da sua testa e precipitava sobre seus olhos. Mais uma porta fechada, mais um reservista que ignorava seu pedido de ajuda. Respirou fundo e caminhou em direção a próxima casa. Castigado sob aquela fulgência de sangue, que rasgava o céu esfumaçado, puro mormaço, um calor avassalador, Jesus sentiu uma dor em seu peito. Uma dor que só quem já esteve à beira do PRECIPÍCIO era capaz de traduzir. Não com palavras. Nem com digressões. Apenas com rupturas na pele. Indecisões compulsórias aplicadas por um poder executivo acima de tudo e uma divindade medieval acima de todos. O morador da casa CALIBRE trinta e oito, após fechar a porta e confirmar (mais de uma vez) o alarme e, através das câmeras de segurança, o distanciamento do pedinte, sentouse no sofá e diminuiu a temperatura do ar condicionado. Quem era, querido? – perguntou a esposa, uma mulher de meia idade, código de barras impresso no rosto identificava a empresa que realizara seu lifting facial. Ao lado do sofá, ela praticava algumas posições de ioga, orientada pela instrutora durante uma videochamada transmitida por uma rede social chamada InsBrahman, para aqueles que buscam a iluminação. Ninguém – ele respondeu, enquanto terminava de ajustar a temperatura do ar. Entrecenas y entresastres: É claro que você também é gente! Je suis un chien! Cachorro é o seu pet, o Toby. Je suis un papillon. Un animale! Bateu asas para fora do casulo projetado por um Niemeyer-cadáver-cadáver-Niemeyer. Quase voou. Ça va? – o pai perguntou. Yo soy la mierda de tu hijo! Tu eres mi hijo amado. Number one! Tu es un fou! Esferas alopáticas, no sentido de serem diferentes do outro (ἄλλος + πα ϑος), orbitavam a incompletude de um cubo etéreo sobre um país em chamas. Chamas encobertas por declarações disparatadas e tolas – propositais. Fumaça para desviar olhos, ainda que atentos, do mundo que existia para além das telas dos aparelhos eletrônicos guarnecidos com internet de fibra ótica ou sem fio, cinco gê, onerosa, e com apenas quarenta por cento da taxa da velocidade contratada, quando não eram míseros dez por cento disponibilizados. Estava na lei. Era permitido pelo Estado. O não jornal, caderno de cultura: uma prosa poética a nove mm parabellum de dois mil e vinte e tantos. As entranhas do povo seguem sendo devoradas, repetidas vezes, vezes sem contar os reveses, contratempo, contra (mesmo!), de lábios brutos, em carne viva, mutiladores de carne e osso, a mandar incompreensíveis fantasmas ficcionais para a ponta da praia. Fala por um celular para o gado na fazenda. Transmite, ao vivo, pela rede social ROSTOLIVRO, para digerir almas. Objetos não identificados rompem com a inércia do tabuleiro. Incongruente, a mão que balança o berço esplêndido derruba as peças do jogo e declara a metástase de um crepúsculo concreto. O fim da democracia? ¿Ha vuelto el dictador? Il est temps de couper les têtes! Fecha a edição. Não imprime. Manda por zap. Vozes, que antes trocavam cócegas de esperanças por mundos melhores, teciam teias de desconfiança dentro das redes sociais. I deny everything – respondeu ao senado estadunidense o dúbio androborgue Mark 2.0. A antirrevolução que nos amputaria da prodigalidade havia começado antes mesmo de nossos filhos chegarem ao mundo. Um mundo que desaprendeu a viver desconectado. Desorientado. Na casa número CALIBRE trinta e oito. Pai. Diga, minha filha. Me dá trezentinho pra eu c’as amigas mandarmos um personal shopper ao shopping? – disse a filha, com um sorriso de clareamento dental estampado no rosto. Claro! Pega a minha carteira digital pra eu transferir as criptomoedas pra você. Tá lá na mesa do home OFFICE. A filha beijou o pai. As peles vagamente brancas, escondendo no código genético antepassados liquidados de suas árvores genealógicas. Amputações étnicas pregressas, trituradas e processadas por bocas de silício eurocêntricas e norte-americanas. Lá fora fazia trinta e oito graus. No interior da casa número CALIBRE trinta e oito fazia vinte. Às vezes dezessete. Querida – disse o homem, enquanto aumentava o volume da televisão por um aplicativo em seu celular. Esse tal de Mark está sendo massacrado pelos esquerdofrênicos. Quem vive hoje em dia sem a rede social que ele criou ou as que ele comprou? Desculpe, querido – respondeu a esposa, terminando de enrolar com uma das mãos o tapete da sua prática de ioga e com a outra manuseando o aparelho celular. Falou comigo? Você não escutou o que eu disse? Não, estava pedindo nosso almoço pelo Cativos Sobre Rodas Food. Ah.

    DESAFIA O NOSSO

    PEITO FURADO DE BALAS

    CALIBRE 38

    A PRÓPRIA MORTE

    Cauã atirou a pedra como se arremessasse uma flor. No silêncio de seus espinhos esperou que o perfume de sua ira ofuscasse as transformações radicais que se realizavam em abismos incorpóreos do seu pensamento. Um gesto, uma atitude. Os pelos de um gato defenestrados pela língua

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