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TransVERgente: o desafio de ver além do megaempreendimento da transposição do São Francisco
TransVERgente: o desafio de ver além do megaempreendimento da transposição do São Francisco
TransVERgente: o desafio de ver além do megaempreendimento da transposição do São Francisco
E-book270 páginas3 horas

TransVERgente: o desafio de ver além do megaempreendimento da transposição do São Francisco

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Sobre este e-book

A lógica desenvolvimentista na América Latina tem provocado diversos processos de vulnerabilizações que repercutem de maneira particular nos territórios. No Brasil, essa lógica tem se manifestado através da construção de grandes empreendimentos que instauram verdadeiros cenários de injustiças sociais e ambientais em nome do progresso. Este livro, fruto do programa de extensão universitária e pesquisa intitulado TransVERgente, e da união de professoras/es e pesquisadoras/es de diferentes áreas e instituições, problematiza e revela vulnerabilizações decorrentes da transposição do São Francisco.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento23 de jul. de 2021
ISBN9786525200613
TransVERgente: o desafio de ver além do megaempreendimento da transposição do São Francisco

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    TransVERgente - Suely Emilia de Barros Santos

    TERRITÓRIOS TUTELADOS E PROCESSOS DE VULNERABILIZAÇÃO: HISTÓRIA SOCIAL DA TRANSPOSIÇÃO

    André Monteiro Costa

    Paulo Cesar O. Diniz

    INTRODUÇÃO

    A ideia de fazer uma transposição de águas do rio São Francisco para parte do Nordeste setentrional é antiga e remonta ao período imperial, mas foi ganhando força nas últimas décadas do século XX para, enfim, tornar-se realidade no início do século XXI. Inaugurada em 2017, de forma festiva por políticos nacionais e regionais, a obra foi celebrada por parte dos meios de comunicação e da sociedade brasileira como a solução definitiva para essa região que tanto sofre com a seca. Nesse ímpeto de festividades, velhos discursos são revitalizados, colocando o projeto como a redenção da população frente aos históricos e repetitivos efeitos das secas. A história agora será contada antes e depois da transposição, eram os discursos políticos: (…) a chegada das águas vai ser a redenção da cidade que terá condições de atrair mais indústrias, proporcionar a criação de novas empresas e, principalmente, e aumentar a produção na agricultura¹.

    É fato que a região hidrográfica² receptora das águas transpostas tem quase a totalidade de sua área pertencente ao Semiárido que, por sua vez, caracteriza-se por apresentar períodos críticos de estiagens prolongadas, resultado de baixa pluviosidade e alta evaporação. Nesse sentido, ela se enquadra como uma região com vulnerabilidade hídrica, chegando, em alguns anos, a registrar taxas negativas em termos de balanço hídrico, como foram os anos de 2012 e 2013, por exemplo (ANA, 2015, p. 54-55).

    A questão sobre vulnerabilidade hídrica de determinadas regiões pode ser analisada em termos de qualidade e quantidade de água. Essa análise se expressa no quanto o ser humano necessita de água potável para viver com dignidade, isto é, para viver com segurança hídrica³. Segundo Bolson e Haonat (2016), mesmo com o avanço da Política Nacional dos Recursos Hídricos (Lei No 9.433/1997) e todos os instrumentos pensados nela, a busca pela segurança hídrica continua a ser um dos grandes desafios da governança da água nos tempos atuais (p. 233). Nesse sentido, a segurança hídrica pode ser definida como a capacidade de oferecer água em quantidade e qualidade à população, garantindo a oferta de água para o abastecimento humano e também para as atividades produtivas. Não é demais lembrar que a ausência de água compromete a saúde humana e a segurança alimentar, além de interferir no próprio ciclo natural da vida, seja ela humana ou não humana, concluem Bolson e Haonat (2016). No semiárido, pode-se dizer que o acesso à água e, portanto, a segurança hídrica, está intimamente ligada à questão da segurança alimentar. O desafio de promover a segurança alimentar e nutricional, nesse território, segue em paralelo ao desafio inicial da promoção da segurança hídrica para a diversidade das populações no semiárido. A segurança hídrica está relacionada, sobretudo, aos conflitos de interesse no consumo de água. A irrigação é o setor que mais consome água, cerca de 72% no Brasil, preterindo em muitas situações o consumo humano, que é o prioritário. Esse contexto é produtor de injustiça hídrica, decorrente da captura da água pelo agronegócio.

    O discurso oficial do governo brasileiro diz que o objetivo da transposição é levar água para 12 milhões de pessoas de 390 municípios, nos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. Composto por quase 500 quilômetros de extensão, a obra é formada por dois eixos de adução de água pelos canais: Norte (em fase de conclusão) e Leste. Foi exatamente este último a ser inaugurado em 2017 e mesmo em pré-operação, abastece 1,4 milhão de pessoas em 46 municípios (12 em Pernambuco e 34 na Paraíba). Foi a água proveniente da transposição, canalizada pelo Eixo Leste que evitou que a cidade paraibana de Campina Grande entrasse em colapso hídrico à época em função da maior seca já registrada nos últimos 102 anos⁴.

    Para além desses resultados iniciais, de modo geral, na plena operação do projeto, a transposição prevê o atendimento das seguintes demandas hídricas: atendimento às áreas urbanas dos municípios beneficiados, aos distritos industriais e perímetros de irrigação, rios perenizados por açudes que receberão águas e atendimento aos usos difusos ao longo dos canais, que se referem às comunidades que devem vir a ser atendidas, de acordo com Castro (2009).

    Ainda segundo Castro (2009), o benefício para a população dispersa no interior da região semiárida, será possivelmente a melhoria no abastecimento rural com água de boa qualidade, uma vez que o projeto prevê a construção de chafarizes públicos em 400 localidades urbanas do sertão inseridas na região do projeto que não possuem sistema de abastecimento adequado (p. 74).

    Contudo, sabe-se que a instalação de chafariz nas comunidades é um paliativo, pois não são soluções adequadas para o acesso seguro e perene à água. Aliás, uma crítica fundamental ao projeto da transposição é justamente por concentrar água em algumas regiões. A construção de adutoras, a partir das grandes barragens da região, por exemplo, é defendida pelo estudioso do tema, Guimarães Jr. (2007, p. 115-6). Para este autor, essa possibilidade tem se mostrado como solução mais viável para o abastecimento das cidades e comunidades rurais nos períodos de estiagem: daí a necessidade de soluções regionais integradas de abastecimento rural e urbano. A integração de barragens existentes, águas de aquíferos e uma malha de adutoras integradas é, para Guimarães Jr. (2007), uma solução sistêmica para atender cidades e povoados. O projeto da transposição é concentrador de água no entorno e ao longo dos dois canais, deixando as demais áreas sem acesso.

    Com essas justificativas, discursos e propagandas institucionais fazem parte da história oficial da transposição, destacando os feitos grandiosos da obra e sua relativa importância para as populações urbanas, como ponto fundamental e finalidade central da obra hídrica.

    É exatamente sobre o atendimento aos usos difusos o foco desse texto, isto é, a relação entre o projeto de transposição e as populações locais e comunidades tradicionais dispersas ao longo dos canais construídos para levar água do rio São Francisco ao Nordeste setentrional sem água. Pode-se dizer que esse projeto não tem centralidade no abastecimento humano e sim na irrigação - 70% da água a ser aduzida é para irrigação, 19% para consumo humano e 11% para indústria (RIMA, 2004). Por isso, o objetivo aqui é refletir sobre a história social da transposição, revelando processos conflituosos desencadeados com a chegada e execução das obras, bem como suas consequências para as populações rurais e comunitárias que foram atingidas/vulnerabilizadas pelo projeto - em sua grande maioria invisibilizadas. Consequências que serão consideradas nesse texto como processos de desterritorialização das comunidades tradicionais e vulnerabilização das populações atingidas que passaram a viver tuteladas pelo Estado.

    HISTÓRIA SOCIAL COMO FORMA DE VISIBILIZAÇÃO DOS INVISÍVEIS

    A história social mostra-se como um campo aberto a inúmeras possibilidades e, conforme Barros (2005), um de seus traços centrais é um intenso diálogo e interdisciplinaridade com todas as Ciências Sociais. Nesse sentido, uma das características mais importantes para a história social é estudo dos ‘processos’ (industrialização, modernização, colonização, ou quaisquer outros, inclusive as revoluções, que aparecem incluídas na rubrica ‘movimentos sociais’), e não apenas modos de organização ou estruturas, pois caso contrário a história social poderia ser vista como uma História estática, e não dinâmica (p. 247).

    Por um lado, a história social tem uma especificidade no que se refere ao trato de questões (sejam elas políticas ou econômicas, dentre outras) e como podem ser trabalhadas socialmente, ou seja, um modo específico como a história social encara os fatos políticos e econômicos para determinados grupos sociais específicos, de acordo com Barros (2005, p. 248). Por outro lado, ela pode abandonar o seu caráter mais específico sobre grupos sociais na medida em que eles se autoconstituem de certo modo em totalidades (p. 248), como no caso de estudo de ‘comunidades’ (rurais e urbanas) e o estudo das ‘populações’ como um todo. O que Barros (2005) afirma é que a história social encarrega-se, nesses casos, de realizar uma síntese da diversidade de dimensões e enfoques pertinentes ao estudo de uma determinada comunidade ou formação social e, portanto, criando as devidas conexões entre os campos político, econômico, mental e outros (p. 249), tomando as comunidades rurais (e/ou urbanas) como centros de referência nos estudos. Apesar da crítica geral à pretensão de exercitar a totalidade em diversas ciências, que também recai sobre a história social, a partir da década de 1960, diz Barros (2005), ela – história social – continuou sempre aberta a muitas possibilidades de sentidos (p. 249).

    Para Fenelon (1993), foi a partir da história social que os temas malditos, que tratam basicamente de excluídos sociais, encontraram guarida (p. 76). Para isso, uma variedade de fontes de pesquisa foram colocadas em evidência, dentre elas merecem destaque as fontes que buscam a construção de uma documentação oral (FENELON, 1993, p. 78), como entrevistas, depoimentos, etc. A documentação oral, enfim, é muito utilizada para, dentre outros objetivos, uma melhor aproximação com grupos ou movimentos sociais, onde a tônica de sua prática não é a escrita e o analfabetismo é uma constante (p. 78).

    A atração pelo uso da história social vem do compromisso com uma história vista de baixo (FENELON, 1993, p. 80), tratando as experiências e/ou vivências muito mais que os eventos sensacionais e estabelecendo uma relação intimista com os sujeitos históricos, conclui Fenelon (1993, p. 80).

    Como a história social caracteriza-se aqui como uma dimensão da vida social, segundo Barros (2005, p. 250), buscando dar voz e sentido lógico a grupos sociais marginalizados economicamente e invisibilizados em suas formas de organização e modos de vida, como ocorreu com a implantação do projeto de transposição das águas do rio São Francisco, convém estabelecer a relação entre a dimensão da vida social e a razão histórica dos territórios sociais, conforme diz Little (2003, p. 259): entendendo território como o ordenamento organizativo e cooperativo tradicional centrado numa cosmografia própria, definida, grosso modo, como os saberes ambientais, ideologias e identidades – coletivamente criados e historicamente situados – que um grupo social utiliza para estabelecer e manter seu território (LITTLE, 2003, p. 254).

    A implantação do projeto de transposição desorganizou a vida social e as vivências coletivas daquelas pessoas ao longo das obras, produzindo processos de vulnerabilização (MENDES e TAVARES, 2011) nas populações locais e comunidades atingidas, situação que pode ser entendida como um processo de desterritorialização. A desterritorialização, segundo Little (2003), é caracterizada por uma razão instrumental que passa a exercer o controle sobre essas populações e comunidades, perdendo sua autonomia e protagonismo em estabelecer seus modos de vida com base num território social. A consequência é a estruturação de um amplo mecanismo de tutela governamental sobre esses territórios (COSTA, 2004), impactando direta e indiretamente as populações e comunidades nesses territórios.

    A ANUNCIAÇÃO DA TRANSPOSIÇÃO

    As famílias vulnerabilizadas pela transposição não acreditavam que a obra realmente fosse se tornar uma realidade, embora relataram que já haviam escutado alguma história do projeto, como diz uma pessoa que cresceu ouvindo a avó contar que havia um projeto para levar a água do rio São Francisco até a região⁵. A descrença começou a mudar quando chegaram pessoas estranhas nas comunidades dizendo que estavam fazendo medições para a vinda da transposição do rio São Francisco, a partir de 2007. Cada mês a intensidade dessas pessoas aumentava e com elas a dura realidade da notícia para as famílias de que teriam que deixar suas vidas para trás pois a transposição tomaria seus lugares.

    Com o veredito de que a saída era compulsória (BRASIL, 2005) para aquelas que estavam no caminho da transposição, surgem os primeiros conflitos, decorrentes de discordâncias sobre valores definidos para as indenizações aos proprietários atingidos. Segundo os relatos, muitos disseram que as propostas foram abaixo dos valores reais e, portanto, reivindicavam um valor maior. Todavia, nenhum processo de diálogo foi estabelecido para negociar os valores, segundo relatam os proprietários; apenas ameaças dos técnicos da transposição que diziam: é essa a proposta ou é procurar um advogado e entrar na justiça. A insatisfação em relação às indenizações ainda é algo presente na vida das famílias: se eu soubesse que seria desse jeito, não teria aceitado (a desapropriação), desabafa um camponês⁶.

    Num segundo momento, esses proprietários que não aceitaram os valores da indenização, começaram a receber visitas dos técnicos da transposição acompanhados de escolta policial, demonstrando claramente uma forma de intimidação das pessoas que estavam reivindicando seus direitos. Como não havia saída – as famílias diziam isso – então aceitaram as condições impostas pelos técnicos da transposição. Nesse ínterim, entre receber o valor da indenização e se estabelecer em um novo local, famílias denunciaram que suas casas foram destruídas antes mesmo de serem desocupadas totalmente. O depoimento de um agricultor que saiu de sua casa para levar parte de sua mobília para à cidade e, quando voltou para buscar o restante, foi surpreendido: ...enquanto eu fui levar minhas coisas na rua, aquela máquina, grandona...ela juntou tudo, como um mói de papel, ela juntou tudo e jogou tudo na caçamba … quando eu cheguei da rua, minha pressão foi para 20, quase eu morro⁷. Enfim, o descaso com o outro, de forma desrespeitosa e violenta, produziu enorme sofrimento mental e Seu Lídio (que fez depoimento acima), desde então, toma remédio controlado por conta da situação.

    Este caso ilustra a forma como as famílias foram arrancadas, desenraizadas abruptamente de suas propriedades e de seus territórios, demonstrando a impotência nessa relação assimétrica entre os técnicos da transposição e as populações locais. Um elemento a destacar é a relação individualizada que se estabelece entre o técnico e o camponês, aquele desempenhando o papel de agente do Estado e imbuído de uma razão instrumental, como diz Little (2003). O território é visto como uma coleção de terras privadas (na relação com seu oposto de terras públicas) e as tratativas são de caráter privado, individual e, no máximo, familiar. A polaridade entre os conceitos de privado e público (faces da mesma moeda de razão instrumental), afirma Little (2003, p. 259), mantém as sociedades presas a esquemas que não correspondem às necessidades de seus diversos membros, nem à sua realidade quotidiana, como ocorreu com as comunidades atingidas pelas obras da transposição.

    Nesse caso, para romper com essa instrumentalização dominadora nos territórios, Little (2003) lança mão da ideia de razão histórica que incorpora, por sua vez, a dimensão de bens coletivos, embora muitas vezes considerados como públicos, (…) que não são tutelados pelo Estado; ou seja, (…) coletividades que funcionam em um nível inferior no plano do Estado-nação. (p. 259). Veremos a seguir, então, como as populações se organizavam coletivamente e compartilhavam do uso de bens comuns ordenadamente em seus territórios.

    O MODO DE VIDA COMUNITÁRIO: O TERRITÓRIO

    As desapropriações realizadas para as obras da transposição tiveram um caráter privado, da propriedade individual e familiar, mas em vários casos, como o das famílias que foram para as VPR’s, elas não eram proprietárias e sim, meeiras, isto é, trabalhavam em terras de outrem e ficavam com metade do que produziam. Mas, a dinâmica das comunidades tradicionais, mesmo com relações desiguais, têm dimensões coletivas e colaborativas muito intensas. As áreas de uso comum como várzeas, aluviões e leitos de riachos, para ficar nesses espaços, são fundamentais para a gestão comunitária, ordenamento territorial e reprodução social da vida.

    A água e suas fontes disponíveis nessas comunidades, por exemplo, mesmo que algumas estejam localizadas em áreas familiares (privadas), são consideradas um bem comum à toda população local. São fontes de água que se destinam a vários usos: consumo humano e uso doméstico (fontes com água de melhor qualidade); dessedentação animal (fontes inadequadas ao uso doméstico); uso produtivo (fontes usadas para pequenas irrigações ou vazantes); uso para lazer e recreação (fontes geralmente temporárias, aproveitando as

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