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Patrimônio Cultural: Direito e Processo
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Patrimônio Cultural: Direito e Processo
E-book348 páginas4 horas

Patrimônio Cultural: Direito e Processo

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Sobre este e-book

O patrimônio histórico e cultural, de forma habitual definido como um dos aspectos do meio ambiente, transita entre o material e o imaterial, une o visível ao invisível e, pela memória que guarda em si, possibilita um sentimento de pertencimento e de identidade que são essenciais a qualquer Estado e a qualquer povo.
O processo de tombamento, sob o viés participativo, é instrumento adequado a concretizar esse direito fundamental, transformando-se em local de debate e de construção participada do mérito, numa caminhada coletiva rumo a uma decisão mais próxima do povo, titular do direito, que deve ocupar o centro do debate como protagonista do processo de preservação patrimonial e desenvolvimento sustentável.
Longe de entregar uma solução para as controversas e calorosas discussões acerca do patrimônio cultural e sua preservação, o que se buscou com esta obra foi demonstrar que ele não é fruto de um conceito predeterminado e verticalizado, mas que deve se abrir para o discurso participativo na construção de uma realidade que faça sentido para as gerações presentes e futuras, sem desconsiderar a necessidade de se rememorar o passado.
O patrimônio cultural conta uma história e, dentro do Estado Democrático de Direito, essa história deve ser multidisciplinar, representativa de todas as vozes que construíram aquele acervo, para não se transformar em narrativa única que reflete o poder daqueles que monopolizam o discurso e esvaziam a capacidade de eficácia da decisão tomada.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de jul. de 2021
ISBN9786525209265
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    Patrimônio Cultural - Stella de Oliveira Saraiva

    1. O PATRIMÔNIO HISTÓRICO E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

    Ao iniciar o estudo sobre patrimônio cultural, é necessário que façamos uma breve análise do locus jurídico desse direito, dentro do ordenamento jurídico.

    A proteção do patrimônio cultural é, pois, um direito fundamental que se apoia na essência da vida do povo. Mais que o simples existir, viver pressupõe o conviver e daí a importância da história da comunidade em que se vive, dos caminhos por ela percorridos e da história por ela construída.

    A história de um povo revela muito mais do que um simples aspecto registral, permite entender as razões pelas quais a vida é desenhada de determinada forma. Aspectos corriqueiros que dizem muito sobre o ser, como vestuário, comportamento, alimentação, trabalho, formas de expressão e cultura, princípios, leis, religiosidade, dentre outros.

    A preservação do patrimônio histórico não se restringe à simples manutenção, para as próximas gerações, de monumentos e prédios pelo fato de serem notáveis do ponto de vista estético ou por se referirem a momentos singulares da história, mas parte do pressuposto de que as raízes de um povo só podem ser contadas se se conhecer o ambiente no qual elas foram forjadas.

    Nas palavras de Pires¹, não se trata exclusivamente de culto ao passado, mas de garantir à posteridade a compreensão da história de seus ancestrais. A Constituição da República de 1.988 garantiu essa proteção em seu art. 216 estatuindo que:

    Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

    I - as formas de expressão;

    II - os modos de criar, fazer e viver;

    III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

    IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

    V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. –g.n.-

    Além disso, ao dispor sobre as competências dos entes da federação, quis o constituinte garantir que a responsabilidade pela proteção desse patrimônio não ficasse restrita a um determinado ente, distribuindo-a a todos de igual maneira.

    Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: [...]

    III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;

    IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural. –g.n.-

    Com a Constituição de 1.988, a proteção do patrimônio histórico e cultural ganhou relevo e se firmou não somente como um direito constitucionalmente protegido, mas como um direito fundamental.

    Afinal, assim, como o conceitua Ferrajoli, "são direitos fundamentais todos aqueles direitos subjetivos que dizem respeito universalmente a todos os seres humanos enquanto dotados do status de pessoa, ou de cidadão ou de pessoa capaz de agir".²

    O tratamento dispensado pela Constituição de 1.988, a esse direito fundamental, adotando nomenclatura nova - patrimônio cultural -, trouxe uma abrangência antes não observada no direito brasileiro. Muito embora a nomenclatura já viesse sendo utilizada nos documentos internacionais, a utilização do termo bem cultural pela Constituição permitiu que, a partir de então, não só o histórico e artístico singulares, mas todo produto da cultura coletiva fosse preservado pelo simples fato de ser pertença de um povo.

    A Constituição previu, portanto, mecanismos de proteção do bem cultural, os quais estão enumerados no seu artigo 216, §1º (inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação)³, mas deixou aberto o rol para outras formas de acautelamento e preservação que possam surgir e ser utilizadas.

    Não há como negar a importância do tratamento constitucional dado ao tema, motivo pelo qual, neste capítulo, tratar-se-á do assunto de forma a averiguar suas nuances e relevância para o contexto patrimonial brasileiro.

    1.1 Historicidade dos direitos fundamentais

    O marco legal da positivação dos direitos fundamentais foi, sem dúvida, a edição da Magna Charta Libertatum inglesa (em 1.215). Não significa que antes os direitos fundamentais não viessem sendo conquistados, mas, sem dúvida, a Magna Carta foi o marco do reconhecimento formal, o primeiro diploma a consagrar direitos fundamentais de forma positivada.

    A evolução dos direitos fundamentais pode ser descrita em uma visão política dos sucessivos períodos de evolução da sociedade e do Estado.

    a) A primeira se dá no plano da distinção entre liberdade dos antigos e liberdade dos modernos, pois, na Antiguidade, a liberdade era, antes de tudo, a participação na vida da Cidade, enquanto para os modernos a própria realização da vida pessoal; b) a segunda diz respeito à proteção dos direitos na Idade Média e no Estado Estamental e à proteção dos direitos no Estado Constitucional – enquanto naquele havia direitos materializados em privilégios, imunidades, regalias de grupos, corporações, categorias, no Estado Constitucional surgem os direitos comuns ou universais, entendidos como direitos do ser humano, do cidadão, que se ligam a uma relação imediata com o Estado; c) plano da terceira contraposição se daria entre direitos, liberdades e garantias e direitos sociais, relacionados com grandes questões políticas e ideológicas dos séculos XIX e XX, considerando que, nesse caso, haveria homogeneidade no plano do Estado Liberal, enquanto o Estado Social seria coberto por concretizações e regimes diversos; d) a quarta contraposição liga-se à proteção interna e à proteção internacional dos direitos humanos, no sentido de que, até há pouco mais de 50 (cinquenta) anos, os direitos fundamentais podiam ser assegurados somente diante ou por meio do Estado, enquanto, em décadas mais recentes, passaram a ser assegurados por intermédio de instâncias internacionais.

    Ou, conforme preferiu Karel Vasak, em 1.979, utilizando outra proposta para o estudo da historicidade dos direitos fundamentais, por uma divisão geracional dos direitos fundamentais, em que se fez uma analogia entre o lema da Revolução Francesa - Liberdade, Igualdade e Fraternidade - e a história da conquista dos direitos fundamentais. Assim, os direitos de liberdade seriam os da primeira geração; os de igualdade, os da segunda e os de fraternidade, da terceira.

    Embora objeto de críticas, a divisão geracional tem sido adotada, desde então, por boa parte dos autores, dentre os quais se pode mencionar Paulo Bonavides⁶, que acrescenta, ainda, uma quarta geração.

    Os direitos de primeira geração - de liberdade -, são os que primeiro constaram dos textos constitucionais e podem ser identificados como os direitos civis e políticos, garantem ao indivíduo a não intervenção estatal na sua esfera privada. Estão classificados nessa geração, o direito de locomoção, de reunião, de associação, de propriedade, de nacionalidade, etc.

    Na segunda geração, são classificados os direitos de igualdade, que começaram a ser sentidos a partir do século XX, com a introdução do constitucionalismo social e da exigência de uma prestação positiva por parte do Estado. São os direitos econômicos, sociais e culturais.

    Os direitos de terceira geração - de fraternidade - são os direitos ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade.

    Conforme adverte Almeida⁷, a partir da terceira geração é possível encontrar certa divergência, no que tange à classificação dos direitos fundamentais. Parte dos autores defende, em interpretação mais abrangente, que os direitos de fraternidade seriam os direitos ao desenvolvimento, à paz, à autodeterminação dos povos, qualidade de vida, ambiente sadio, comunicação etc. Ao passo que a outra, numa interpretação mais restritiva, insere aqui os direitos coletivos e difusos, com relevância para os direitos do consumidor e do meio ambiente.

    Acredita-se, contudo, que ambas as posições são similares, ocorrendo apenas uma mudança no enfoque. Na verdade, adotando uma ou outra classificação, é possível observar que nesta geração se situam os direitos transindividuais, cuja titularidade ultrapassa a esfera do indivíduo, atingindo uma coletividade de pessoas.

    Como dito, Bonavides⁸ acrescenta ainda uma quarta geração e aponta os direitos de solidariedade como aqueles resultantes do fenômeno da globalização dos direitos fundamentais, tais como o direito à democracia, à informação, ao pluralismo.

    Já Mazzuoli⁹ defende a existência, também, de uma quinta geração, voltada para o futuro da humanidade, no mesmo sentido do registro de Almeida¹⁰, de uma geração voltada aos direitos da tecnologia da informação, que possuem como características: complexidade, artificialidade, carência de regulamentação normativa, cuja necessidade de regulamentação é uma realidade presente nos dias atuais, em especial, diante da demanda de formas próprias e adequadas tutelas jurídicas.

    Críticos ao modelo geracional argumentam que a historicidade dos direitos fundamentais não encontra correspondência numa visão fracionada e sugerem que a ideia de gerações criaria a indevida aparência de superposição geracional, da nova geração que substitui a anterior. Para Martins¹¹, por exemplo, o modelo geracional não seria ideal, visto que a conquista dos direitos fundamentais não se deu de maneira uniforme ou progressiva. Ao contrário, constata-se que, em diversos locais, há o reconhecimento de direitos de segunda geração, enquanto os direitos de primeira geração ainda não se fazem presentes; ou mesmo, locais onde foram conquistados apenas parte dos direitos de primeira geração, mas já se verificam direitos de segunda ou terceira geração, plenamente executados.

    Dissertando sobre a temática, Norberto Bobbio¹² observa que para Kant o aspecto positivo da Revolução Francesa foi o fato de o povo poder decidir seu próprio destino, concretizando a liberdade em uma de suas acepções mais importantes: como autodeterminação, autonomia e capacidade de legislar para si mesmo, em antítese à toda forma de poder patriarcal: A liberdade jurídica é a faculdade de só obedecer a leis externas às quais pude dar o meu assentimento¹³.

    De tudo, o que se conclui é que a evolução histórica dos direitos fundamentais coincidiu com as demandas da sociedade e com as lutas em prol de sua concretização e a Revolução Francesa funcionou como o marco dessa luta, mostrando uma verdadeira mudança de rota no curso da história.

    Como o homem é um ser que se torna, se estende e se amplia em sua dimensão pessoal, também os direitos, uma de suas principais projeções, dota-se de igual natureza: a formalização daqueles direitos não estancou a febre que estimula à conquista do novo e traduz maior e melhor possibilidade de realização dos homens. A constatação de que a dicção jurídica declaratória dos direitos fundamentais era necessária, conquanto não suficiente, e de que o próprio elenco daqueles que se haviam declarado ampliava-se nas novas conquistas sociais, conduziu a outros movimentos que conduziram a novas formulações jurídicas: surgem os direitos sociais, culturais e econômicos, havidos como os de segunda geração, a se acrescerem e mesmo a redimensionarem o sentido daqueles que compunham os de primeira geração. As declarações cresceram e viram-se a tocar um homem antes não contemplado: encontra-se na fábrica, no trabalho, no parque, na praça, come, dorme e sonha o mesmo sonho de todos sem perder-se de seus próprios e únicos devaneios. Mas não apenas os direitos foram acrescidos nas declarações que projetaram e expressaram os direitos fundamentais ditos de segunda geração, senão as normas que os contemplaram traziam mensagens jurídicas novas para o Estado e para os outros homens, de tal maneira que a sociedade estatal passou a ser concebida com um diferente fundamento e uma forma inédita: os direitos sociais reconheceram o homem em sua dimensão criadora de trabalhos, projetos juntamente com os outros: a praça fez-se Direito e o Estado fez-se Social de Direito. Os direitos sociais fecundaram a Justiça social e o bem estar fez-se nome próprio do Estado. Superou-se o homem isolado em seu individualismo egoísta, vigiado policialesca e timidamente pelo Estado Liberal. O homem fez-se também o outro. O Estado fez-se a sociedade incontida, diversa, colorida espalhada na festa, no fisco, na fé.¹⁴

    E, assim como outrora, em razão dinamicidade da sociedade, os direitos fundamentais tendem a se adaptar sempre aos novos tempos, os direitos de ontem não são os de hoje e não serão os de amanhã, portanto, novas gerações sempre surgirão diante das novas necessidades abraçadas pela sociedade: o Direito é fruto dessa necessidade de normatividade, que emana do contexto social e das relações entre os seus agentes.

    No Brasil, a Constituição do Império foi a responsável por introduzir a positivação dos direitos fundamentais, à época, apenas aqueles atinentes à denominada primeira geração. Sendo certo que, a ausência de uma listagem detalhada dos direitos fundamentais na Constituição Imperial, não impedia o reconhecimento de outros que daqueles fossem decorrentes.

    Eis o que já lecionava Pimenta Bueno, em comentário da época sobre o texto constitucional imperial:

    [...] os principais direitos individuais são, como o art. 179, da Constituição e seus parágrafos reconhecem, os de liberdade, igualdade, propriedade e segurança, mas não só cada um deles se divide em diversos ramos, mas também eles se combinam entre si, e formam outros direitos igualmente essenciais.¹⁵ –g.n.-

    Posteriormente, com a proclamação da República foi introduzido um novo texto constitucional (de 1.891), o qual apesar de conter expressamente direitos fundamentais, acabou subvertido pelo coronelismo que se instaurou na República Velha. E, assim, sucessivamente, durante a história brasileira, textos democráticos, ou a tentativa de introdução deles, foram sendo substituídos por outros nem tanto, mas que atendiam aos interesses dos governos que tomavam o poder. Foi o que ocorreu com a Constituição de 1.934, logo substituída pela ditatorial de 1.937; e, depois, com a Constituição de 1.946, arruinada pelo golpe de 1.964 e atos institucionais emitidos pelo governo militar.

    E foi somente com o texto constitucional de 1.988 que se reinseriram, de forma definitiva, os direitos fundamentais no contexto do Estado brasileiro e que se trouxe o cidadão para o local que precisa ser por ele ocupado: o de construtor e beneficiário da democracia brasileira.

    A Constituição de 1.988, sem dúvida alguma, tem o mérito de trazer ao Estado brasileiro um sentimento de cidadania até então não experimentado pelo povo. Promulgada, após um processo de redemocratização do país, que incluiu uma eleição indireta para Presidente da República, a campanha das Diretas Já e a formação da Assembleia Constituinte para a elaboração de uma nova constituição, a Constituição da República de 1.988 é o marco que separa um regime militar ditatorial de duas décadas do novo regime democrático baseado nos direitos fundamentais.

    Conquanto o regime democrático esteja baseado no exercício dos direitos civis e políticos, em especial, na garantia de escolha de representantes pelo voto universal, direto, secreto e periódico e de mecanismos de democracia direta, os direitos fundamentais sociais acabam por influenciar no exercício dos primeiros, justificando e condicionando a democracia experimentada.

    Um cidadão que exerça regularmente seus direitos civis e políticos só contribui efetivamente para a democracia vigente se sua participação for qualificada. Ou seja, a participação do cidadão só se torna democraticamente relevante se a ele também forem disponibilizados direitos outros, tais como de educação, cultura e liberdade de expressão, visto que apenas o exercício regular e efetivo de tais direitos possibilitará ao cidadão o real exercício dos seus direitos políticos. Eis que os direitos fundamentais são todos decorrentes uns dos outros, interdependentes, não sendo possível que a um indivíduo seja deferido um direito fundamental em detrimento dos demais.

    O Direito, assim como a sociedade, caminha rumo aos novos tempos e na marcha das demandas sociais. Por este motivo, o direito de liberdade, antes visto como o simples direito de ir e vir, passa a ser entendido como um conjunto de garantias que permitem ao indivíduo o direito de ser, pensar, estar e viver, segundo seus próprios interesses e vontades.

    Acredita-se que a visão adequada dos direitos fundamentais é, portanto, a interdependência e universalidade, em que uma geração se integra à outra, agregando novos direitos. Até porque os direitos fundamentais são uma resposta normativa a toda forma de opressão e violação da dignidade humana e o reconhecimento de que todos os membros da sociedade são livres e iguais e de que a eles será garantida a justiça e a paz, além de poder viver segundo suas próprias convicções, princípios e cultura.

    1.2 Os direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1.988

    O modelo de Estado eleito pelo artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988 é o Estado Democrático de Direito. E, a partir dessa opção constitucional, os direitos fundamentais não podem ser uma mera promessa para o povo, mas uma realidade experimentada no dia a dia da população.

    Para tanto, são necessários, além de uma política de concretização dos direitos fundamentais, que existam instrumentos aptos ao controle dos poderes pelo povo. José Alfredo de Oliveira Baracho, em importante trabalho sobre o constitucionalismo, defende tal ideia, argumentando que os instrumentos protetores dos direitos humanos são essenciais à promoção do Estado Democrático de Direito, vez que a atualidade não mais admite o Estado de Direito formal.

    Os instrumentos protetores dos direitos humanos adquirem particular importância no Estado Constitucional Democrático que deve promover, através de um sistema de princípios e regras processuais, o aperfeiçoamento da ordem jurídica, com o limite e controle do poder estatal. Tal perspectiva não se contenta com um Estado de Direito formal, que pode aceitar apenas o império das leis, em um Estado legalista, que garante as formas de atuação estatal. Em sentido material, o Estado de Direito assegura a liberdade do indivíduo, através de um conjunto de direitos individuais, sendo primordialmente direitos de defesa frente ao Estado, assim como barreiras e diretrizes para que ocorra limitação da sua atuação.¹⁶

    Sobre esse Estado democrático formal, esclarece Ferrajoli, que a democracia apenas adquirirá características verdadeiras quando o princípio da soberania popular estiver na base daquele Estado e, para tanto, são necessárias muitas outras condições além do direito de votar e ser votado, em especial, o direito de exercer, de forma plena, os demais direitos fundamentais.¹⁷

    Desta forma, se o Estado de Direito é definido como aquele em que se vive sobre o império das leis, não é menos verdade que o Estado Democrático de Direito acrescenta um grau nesta definição, determinando que o Direito, estabelecido por meio da Lei, se faça concreto no contexto do Estado em todas as suas formas.

    Nas palavras de Tomaz, o que transforma uma sociedade em Estado é a existência de um ordenamento jurídico efetivo incidindo sobre a vida do grupo, que elegerá valores a serem buscados como seu objetivo final. Para Tomaz, haverá ‘Estado de direito’ quando a ordem for justa [...], mas se, por outro lado, a ordem deixa de realizar um daqueles valores, deixaria de ser ‘Estado de Direito’¹⁸.

    Para a compreensão do que se configura como o Estado de Direito, a exposição de Dworkin se faz relevante:

    Há, na verdade, duas concepções muito diferentes do Estado de Direito, cada qual com seus partidários. A primeira é a que chamarei de concepção centrada no texto legal. Ela insiste em que, tanto quanto possível, o poder do Estado nunca deve ser exercido contra os cidadãos individuais, a não ser em conformidade com regras explicitamente especificadas num conjunto de normas públicas à disposição de todos. O governo, assim como os cidadãos comuns, deve agir segundo essas regras públicas até que elas sejam mudadas, em conformidade com regras adicionais sobre como elas devem ser mudadas, que também são especificadas em conjunto das normas. A concepção centrada no texto jurídico e, a meu ver, muito restrita porque não estipula nada a respeito do conteúdo das regras que podem ser colocadas no texto jurídico. Enfatiza que, sejam quais forem as regras colocadas no livro de regras, elas devem ser seguidas até serem modificadas. Os que têm essa concepção do Estado de Direito realmente se importam com o conteúdo das normas jurídicas, mas dizem que isso é uma questão de justiça substantiva e que a justiça substantiva é um ideal diverso que não é, em nenhum sentido, parte do ideal do Estado de Direito. Chamarei a segunda concepção do Estado de Direito de concepção centrada nos direitos. De muitas maneiras, é mais ambiciosa que a concepção centrada no livro de regras. Ela pressupõe que os cidadãos tem direitos e deveres morais entre si e direitos políticos perante o Estado como um todo. Insiste em que esses direitos morais e políticos sejam reconhecidos no Direito positivo, para que possam ser impostos quando da exigência de cidadãos individuais por meio de tribunais e outras instituições judiciais do tipo conhecido, na medida em que isso seja praticável. O Estado de Direito dessa concepção é o ideal de governo por meio de uma concepção pública precisa dos direitos individuais. Não distingue, como faz a concepção centrada no texto legal, entre o Estado de Direito e a justiça substantiva; pelo contrário, exige, como parte do ideal do Direito, que o texto legal retrate os direitos morais e os aplique.¹⁹

    O Estado Democrático de Direito exige que os direitos não apenas estejam previstos no ordenamento jurídico de um Estado, mas que eles de fato sejam entregues aos cidadãos, os quais possuirão também, à sua disposição, mecanismos de garantia desses mesmos direitos.

    No Estado Liberal, a liberdade se sagrou como princípio base do Estado e o indivíduo passou a ter autonomia em relação à vontade estatal, estabelecendo um direito à não intervenção em sua vida privada. Nesse modelo de Estado, o governo não assumia grandes responsabilidades prestacionais, ao contrário, sua obrigação maior era deixar que o povo vivesse segundo seus próprios interesses.

    Nesse contexto, as prestações estatais, embora pudessem ser verificadas em alguns locais, não eram uma obrigação estatal, mas meramente caritativas, visto que sequer condiziam com o vigente modelo econômico do liberalismo.

    Entretanto, com a chegada do Estado Social, impulsionado pela crescente demanda social, os direitos a prestações do Estado começaram a fazer parte do rol de direitos previstos nas Constituições dos Estados, sendo dois dos primeiros exemplos, as sempre citadas Constituição Mexicana de 1.917 e Constituição Alemã de 1.919 (Weimar). Nesse momento os direitos sociais

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