O papel do Tribunal de Contas da União no ciclo de políticas públicas: um estudo sobre o Programa Universidade para Todos (ProUni)
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O papel do Tribunal de Contas da União no ciclo de políticas públicas - Fernanda Leoni
1. INTRODUÇÃO
Embora o estudo das políticas públicas como um campo científico próprio, ainda que não autônomo, não seja algo recente, o atual contexto sociopolítico, principalmente no período compreendido entre o pós-segunda guerra mundial e os nossos dias, faz com que a temática ganhe corpo e centralidade (SOUZA, 2006, p. 22).
Além do mencionado contexto sociopolítico – que traz à tona questões como os novos papeis assumidos pelas instituições, a necessidade de renovação na compreensão de fenômenos sociais, a complexidade dos sistemas, a falta de clareza nas funções atribuídas aos atores públicos e privados, entre outros fatores –, a interdisciplinaridade inerente a este campo torna ainda mais dificultoso qualquer estudo nesta seara.
Não obstante um enorme leque de temas de discussão nesta esfera, um, em especial, parece ter ocupado o centro das atenções nas Ciências Jurídicas nos últimos anos e diz respeito ao embate entre a atuação do Judiciário e do Executivo na execução de políticas públicas. Enquanto ao Executivo caberia a efetiva materialização destas políticas – transpassando as fases de inserção na agenda de discussão, decisão, implementação, fiscalização, etc. –, ao Judiciário ficaria reservada a função de controle. Daí o confronto.
Essa questão, por si só, já é deveras tormentosa e encontra muitos desdobramentos, mas o problema está longe de terminar por aí. Novos atores surgem, demandando outros posicionamentos e formas de atuação, a sociedade se envolve mais proximamente com temas que até então não eram de interesse social, a legislação é alterada para contemplar novos direitos, a economia desbanca e influencia diretamente na forma de ação dos agentes públicos e privados, entre outros pontos de discussão.
No campo das políticas públicas esses fatores de complexidade
podem ser estudados a partir de diferentes abordagens, a exemplo da linha do que se denomina novos arranjos institucionais
¹, que na conceituação de Alexandre Gomide e Roberto Pires (2014, p. 19) podem ser sintetizados como o conjunto de regras, mecanismos e processos que definem a forma particular como se coordenam atores e interesses na implementação de uma política pública específica
.
Nessa linha temática, a atuação de um ator é objeto de nossa atenção. O Tribunal de Contas da União, órgão de controle externo da contabilidade, finanças, orçamento, operações e patrimônio federais, vem ganhando cada vez mais destaque no âmbito das políticas públicas.
Acompanhando um movimento de fortalecimento da democracia no país, o Tribunal de Contas da União, no desempenho de sua função de controle, passa a ser requisitado como um órgão que auxilia no fechamento do ciclo de representação, na medida em que tal ciclo se completa quando o povo, a partir dos efeitos gerados pelos atos de controle, é capaz de avaliar se os governantes agiram ou não como seus representantes de fato
(ARANTES et. al., 2010, p. 110).
Contribui para a relevância de sua atuação não somente a afirmação de que o TCU exerce o controle
, mas o fato de que este controle incide precisamente sobre um nicho muito específico de pessoas (quem
) e coisas (o que
), sobretudo se considerado esse contexto de fortalecimento da democracia. O Tribunal de Contas da União é órgão originalmente pensando para o controle orçamentário e fiscal (o que
) do corpo burocrático e político de nosso país (quem
).
Essa premissa nos parece um dos pontos centrais para entender o papel do Tribunal de Contas da União no contexto atual, na medida em que o exercício da função que lhe foi atribuída, ainda que tenha as suas principais características definidas pelo texto constitucional, não é estanque, haja vista que a própria interpretação constitucional é mutável.
Isso quer dizer que o controle somente será efetivo se acompanhar as mudanças de seu objeto, e não há dúvidas de que o Estado pós Constituição Federal de 1988 é outro. Conquanto a função primordial do Tribunal de Contas da União – controle orçamentário e fiscal – tenha se mantido majoritariamente a mesma desde sua origem, o próprio conceito de gasto público se modificou, de forma que os deveres prestacionais dos órgãos e entidades públicas passam a ser mais exigíveis do que em outros cenários, assim como os parâmetros de atendimento dessas prestações são outros.
Logo, entender a atuação do Tribunal de Contas da União em nosso contexto normativo e político atual é muito mais do que afirmar que a sua função se dirige ao controle financeiro do Poder Público, haja vista que a sua atividade pode incidir em campos diversos, a exemplo das políticas públicas, como será avaliado ao longo deste estudo.
Mas antes de detalhar o objeto de análise é indispensável uma breve explanação sobre a própria inserção das Cortes de Contas no campo das políticas públicas, de modo a não somente esclarecer o direcionamento que será dado aos assuntos tratados, como a forma com que as atividades desse órgão se desdobram.
Pode-se afirmar com segurança que os Tribunais de Contas não são nenhuma novidade em nosso ordenamento jurídico, principalmente se considerarmos que a sua previsão inicial constava da Constituição de 1891. Ainda assim é possível visualizar que mesmo hoje persiste moderado desconhecimento de suas atribuições e funcionamento como um todo por parte da sociedade.
Nos termos do artigo 71, da Constituição Federal, o controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União
, redação da qual se extraem algumas informações preliminares, mas relevantes a qualquer abordagem que se faça sobre esse órgão constitucional.
A primeira delas é que o Tribunal de Contas da União – assim como os Tribunais de Contas dos Estados e dos Municípios, em atenção ao princípio da simetria constitucional² – é órgão componente do sistema de controle externo. Por mais que essa afirmação pareça uma obviedade, ela traz à tona não somente a forma de exercício das atribuições conferidas às Cortes de Contas, como as suas respectivas limitações.
Além disso, a Constituição Federal destaca que essa função de controle externo é prioritariamente atribuída ao Congresso Nacional, em consonância à ideia original de separação de poderes, de modo que ao Tribunal de Contas da União são conferidas as competências técnicas auxiliares e autônomas previstas no texto constitucional.
Ainda no texto do artigo 71 dispõe-se que o Tribunal de Contas da União é órgão auxiliar do Poder Legislativo, logo, não compõe a sua estrutura e a ele não está subordinado. Não obstante a ampla discussão existente na literatura jurídica acerca da sua natureza, e que será aprofundada em tópico próprio, adiantamos que se trata de órgão constitucional autônomo, independente e suis generis, que não pertence a qualquer dos poderes instituídos.
O longo período de estruturação pelo qual o Tribunal de Contas passou durante a nossa história – como se afirmou, sua previsão inicial ocorreu já na Constituição de 1891, nunca tendo sido suprimido, nem mesmo em períodos ditatoriais – fez com que o legislador constituinte tomasse maior consciência das competências desse órgão, inserindo-o na seção que trata da fiscalização contábil, financeira e orçamentária dos recursos públicos.
Sobre essa função, o texto constitucional estabelece que a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder
. Em outros termos, definem-se detalhadamente quais serão os critérios para o exercício do controle externo pelo Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas da União.
Nesse sentido, a atividade de controle está submetida a três critérios genéricos, a saber, a legalidade
(adequação da atividade à lei), a legitimidade
(compatibilidade entre a previsão e destinação de recursos) e a economicidade
(aproveitamento adequado de recursos públicos em relação ao custo-benefício da atividade), e a dois critérios específicos: a aplicação de subvenções
e a renúncia de despesas
.
Especialmente sobre as atribuições do Tribunal de Contas da União, o artigo 71 enumera um rol bastante elucidativo, definindo, entre outras competências, a de apreciar as contas da Presidência da República, a de julgar as contas dos responsáveis por recursos públicos, e a de fiscalizar a aplicação de recursos repassados pela União.
Em termos de estrutura, o Tribunal de Contas da União manteve-se em formato semelhante ao longo da história constitucional, ora estando mais ligado ao aparelho do Legislativo, ora colocando-se como um ente autônomo. Contudo, no que tange às suas competências, há um claro enriquecimento do atual texto constitucional, que ao tratar minuciosamente das atribuições da Corte de Contas, lhe coloca em papel de destaque em nosso ordenamento jurídico e no sistema político como um todo.
Desse modo, avaliando muito brevemente a moldura idealizada para o TCU, percebe-se que o órgão foi criado para o desempenho do controle fiscal, mas que essa função não necessariamente se manteve como o foco da atuação do Tribunal, especialmente nos últimos anos, na medida em que a Corte de Contas passou a se envolver com outras temáticas, dentre as quais estão as políticas públicas.
Parte dessa atuação pode ser entendida a partir da premissa anteriormente lançada de que o controle somente será efetivo se acompanhar a própria evolução do objeto sobre o qual incide. A atuação pública não está mais adstrita a um simples dispêndio de recursos, seguido da avaliação simplória do custo-benefício daquela ação, e nem o controle pode estar. O Poder Público – e aqui nos referimos de forma especial ao Executivo, que possui papel de destaque na implementação de políticas públicas – não tem a simples função de disponibilizar recursos, mas, sim, de concretizar direitos, o que é cada vez mais cobrado pela sociedade.
Sendo as políticas públicas, neste contexto, um dos campos de crescente atuação do Estado, parece-nos natural que o controle, não somente do TCU, mas de outros órgãos legitimados, passasse a envolver-se com essa temática, o que, de fato, vem ocorrendo com maior frequência nos últimos anos, a ponto de o próprio Tribunal criar um Referencial Teórico para a avaliação de políticas públicas (BRASIL, TCU, 2014). E é exatamente sobre esse último ponto que a presente análise se atém. Considerando que o Tribunal de Contas da União, assim como outros órgãos de controle, sobretudo após a Constituição Federal de 1988, vem atuando cada vez mais inserido na temática das políticas públicas, interessa-nos saber como se desenvolvem as suas atividades de controle nessa temática.
Com esse objetivo, pretende-se analisar a atividade de controle do Tribunal de Contas da União (esfera federal) tendo-se em vista não somente a consolidação de sua estrutura organizacional e institucional, como um histórico mais abrangente de atuação, que poderá fornecer um panorama mais completo em detrimento do que seria obtido a partir dos Tribunais de Contas Estaduais ou Municipais.
Para tanto, adotou-se a educação superior como macro área do estudo de caso, em vistas do grande acúmulo de recursos públicos alocados neste setor que, segundo dados obtidos em relatório de auditoria elaborado pelo próprio Tribunal de Contas da União (BRASIL, TCU, 2015), correspondeu a 43% do montante total despendido para a área no período de 2010 a 2013. O progressivo aumento de investimentos na área e as arrojadas metas de expansão para o setor também são fatores que trazem destaque ao tema. Além disso, no ano de 2008, o TCU elegeu por meio da Resolução nº 185/2005 a educação como Tema de Maior Significância
³, período em que as fiscalizações sobre o ProUni se iniciaram.
Dentro desse escopo, a escolha deste programa, dentre as variadas temáticas que envolvem a educação superior brasileira, está não somente o considerável aumento do número de ingressantes no ensino superior após a sua implementação (SEMESP,