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O princípio do sigilo do doador do material genético: conflito com o princípio da origem genética
O princípio do sigilo do doador do material genético: conflito com o princípio da origem genética
O princípio do sigilo do doador do material genético: conflito com o princípio da origem genética
E-book240 páginas2 horas

O princípio do sigilo do doador do material genético: conflito com o princípio da origem genética

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Sobre este e-book

A evolução da medicina, com o desenvolvimento das técnicas de reprodução humana assistida, revolucionou o conceito do instituto da filiação, que passou de um critério estritamente jurídico, fundado no casamento, para um critério biológico, e, atualmente, alicerçado no critério socioafetivo.
Diante da ausência de regramento no ordenamento jurídico brasileiro sobre os procedimentos decorrentes da reprodução assistida, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução n. 2.168/2017, que prevê, nos casos de reprodução assistida heteróloga, o sigilo do doador do material genético, como forma de garantir sua identidade contra eventual responsabilização de paternidade, a qual deve ser imputada às pessoas que se submeteram a reprodução assistida e desejam o projeto parental, o que colide com outro direito da personalidade, que é o conhecimento da origem genética pelo concebido por meio da reprodução humana assistida heteróloga.
O presente livro faz uma análise da mencionada colisão, comparando as referidas espécies de normas, utilizando-se da técnica da ponderação para solucionar tal embate.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de set. de 2021
ISBN9786525203799
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    Pré-visualização do livro

    O princípio do sigilo do doador do material genético - Beatriz Homem de Mello Bianchi

    1. INTRODUÇÃO

    O presente livro estudará o conflito entre o direito ao sigilo do doador do material genético e o direito ao conhecimento da origem genética, de forma a verificar se tais direitos da personalidade constituem princípios para a ordem jurídica e quais são suas possíveis formas de solução quando colocados em oposição, haja vista preservarem direitos contrários entre si.

    Para tanto, o segundo capítulo, logo após a Introdução, tratará do direito da filiação, demonstrando seu conceito e evolução na sociedade, até sua previsão no Código Civil de 2002, único diploma legal a estabelecer a filiação decorrente das técnicas de reprodução assistida, apresentando ainda as espécies de filiação.

    Tendo em vista a particularidade do instituto da reprodução humana assistida, reservou-se o terceiro capítulo para investigar o tema, no qual se apresentou sua definição, espécies e técnicas. Discorreu-se ainda sobre a natureza jurídica do ato praticado entre o doador do material genético e a clínica de fertilização e, por sua vez, a natureza do ato praticado entre a clínica de fertilização e os futuros pais. Por fim, teceu-se comentários sobre o tratamento dado pela ordem jurídica brasileira.

    Após a conceituação da reprodução assistida, no quarto capítulo, serão expostos os direitos da personalidade envolvidos no tema deste livro. Assim, será abordado o direito à reprodução humana dos pais, que por não conseguirem conceber pelas vias naturais, utilizam técnicas de reprodução assistida. Da mesma forma, discorre-se sobre o direito ao sigilo/segredo da pessoa, que de forma altruísta, doa seu material genético para que terceiros possam concretizar o sonho de ter filhos. O direito ao conhecimento da origem genética será tratado na sequência, demonstrando-se seu efeito para quem é gerado por meio de uma das técnicas da reprodução assistida, em especial a heteróloga.

    Ato contínuo, no quinto capítulo, será abordado o conceito de princípio e, em seguida, serão enumeradas algumas formas de solução no caso do conflito entre princípios e entre princípios e regras.

    Por fim, no sexto capítulo, será apresentado o conflito entre os princípios da intimidade do doador e do conhecimento da origem genética, ao se expor como tem sido tratado o tema no cenário mundial, além dos principais argumentos em favor de cada um dos princípios. Encerra-se o capítulo averiguando se o direito do sigilo do doador do material genético e o direito ao conhecimento da origem genética são princípios e as possíveis formas de solução de conflito entre eles.

    Na sequência, serão apresentadas as considerações finais da pesquisa.

    2. FILIAÇÃO

    Etimologicamente, filiação é um termo derivado do latim filiatio , um conceito que distinguia a relação de parentesco estabelecida entre pessoas que conceberam a vida a um ente humano e este, ou seja, os pais e seu filho.

    Como se nota pela intenção desse instituto, a percepção inicial da filiação tinha como fato originário a procriação decorrente da relação sexual entre duas pessoas.

    A filiação nada mais é que o vínculo entre pais e filhos, a relação de parentesco consanguíneo em linha reta de primeiro grau entre uma pessoa e aqueles que lhe deram vida.¹

    As relações de filiação podem ser definidas como laços de descendência existentes entre duas pessoas, das quais uma é o pai ou a mãe da outra. Envolvem, portanto, a paternidade e a maternidade das quais resulta a filiação.²

    Clóvis Beviláqua, ao definir as relações de parentesco, demonstra que a filiação e a paternidade/maternidade dizem respeito a mesma relação jurídica, analisada sob ótica diferente:

    A relação de parentesco existente entre a prole e os progenitores chama-se filiação, quando considerada ascencionalmente, dos filhos para seus imediatos ascendentes; paternidade, quando considerada descencionalmente, do pai para o filho e maternidade, quando ainda descencionalmente, se tem em mira a mãe em face do filho.³

    A filiação sempre foi considerada um estado natural do homem antes mesmo de se tornar uma questão jurídica; por isso, durante muito tempo, a biologia considerou pai aquele homem que através da cópula fecundava a mulher, e mãe, a mulher que carregasse o filho em seu ventre.

    Isto porque a maternidade seria biologicamente inquestionável por decorrer da gravidez, como fato notório.⁵ No tocante à paternidade, a contribuição do homem só ocorre no momento da fecundação, portanto, não é aferida automaticamente.

    Em que pese o exposto, por muito tempo, prevaleceram em nossa sociedade os seguintes princípios:

    • matersemper certa est (filiação materna): o qual provando o parto da mulher e a ligação entre o parto e a criança recém-nascida, não há o que questionar sobre a maternidade, sendo esta completa e definitiva e;

    • pateris est quem justae nuptiae demonstrat (filiação paterna): baseia-se no casamento, ou seja, o filho de uma mulher casada presume-se filho do marido desta.

    O casamento era o ato que legalizava as relações sexuais das quais se originava a prole, de maneira que os filhos nascidos fora do casamento não poderiam integrar a família⁶, sendo, portanto, considerados filhos ilegítimos.

    Segundo Guilherme Calmon Nogueira da Gama, tal filiação, designada jurídica, vinculava-se obrigatoriamente ao casamento como valor absoluto, e impunha o estabelecimento da paternidade-filiação independentemente do fator biológico, já que era presumivelmente impossível que o filho da mulher casada tivesse outro pai que não o marido.

    No início do século XX, ainda vigia, de forma absoluta, a proibição de reconhecimento dos filhos ilegítimos adulterinos sob a justificativa de risco à paz familiar que poderiam gerar à família legítima.

    O Código Civil de 1916 previa as seguintes espécies de filiação:

    a) legítima: o filho concebido na constância do casamento, isto é, aquele nascido pelo menos 180 dias após ser estabelecida a convivência conjugal ou o nascido dentro dos 300 dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite ou anulação;

    b) legitimada: o filho concebido antes do casamento de seus pais, ou seja, a criança foi concebida por conjunção carnal anterior ao casamento, mas somente posteriormente seus pais se casaram;

    c) ilegítima: o filho concebido sem casamento de seus pais; e,

    d) adotiva: constituída mediante escritura pública; neste caso, não extinguia os direitos e deveres decorrentes do parentesco biológico, exceto o pátrio poder.

    O artigo 355 do Código Civil de 1916 autorizava o reconhecimento dos filhos ilegítimos por seus pais, desde que inexistisse impedimento para o casamento entre estes. Por sua vez, o artigo 358 do mesmo diploma vedava expressamente o reconhecimento dos filhos adulterinos e incestuosos.

    Diante do reconhecimento pela lei da ilegitimidade nos casos dos filhos adulterinos e incestuosos, a verdade biológica era desprezada.

    O conceito de filiação atualmente vigente na sociedade foi, primeiramente, apresentado com a Constituição Federal de 1988, considerada um marco divisor entre o sistema jurídico anterior e o atual.

    Isto porque, baseada na máxima da dignidade da pessoa humana, a Carta supera a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, prevendo que os filhos, independentemente do estado civil de seus pais, deverão ter os mesmos direitos, proibindo qualquer designação discriminatória a respeito da origem da filiação.

    Nesse sentido, o artigo 227, § 6º da Constituição Federal de 1988 estabelece: Os filhos havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer discriminatórias relativas à filiação.

    A filiação biológica ganhou bastante importância no contexto constitucional de 1988 não apenas no sentido de retirar qualquer restrição ou limitação para seu reconhecimento quanto às pessoas que não tinham filiação definida formalmente, mas também para permitir que os filhos matrimoniais passassem a ter condições de impugnar a matrimonialidade de sua filiação e, desse modo, apurar a filiação biológica. Houve, então, a biologização da filiação.

    A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, §§ 3º e 4º, ainda ampliou a entidade familiar para além do matrimônio, englobando a união estável e a família monoparental.

    O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990) também contribuiu com o instituto da filiação, ao estabelecer que a família natural é a comunidade formada entre os pais e seus descendentes (artigo 25) e prever a possibilidade de investigação da paternidade, aperfeiçoada com a utilização do exame de DNA.

    Já em relação à adoção, o Estatuto da Criança e do Adolescente atribuiu a condição de filho ao adotado prevendo os mesmos direitos e deveres, além de desligá-lo dos vínculos com pais e parentes biológicos, exceto em relação aos impedimentos matrimoniais.

    Apesar de o Código Civil de 2002 ter entrado em vigor um ano após sua publicação, foi elaborado na década de 1970, preservando alguns conceitos do Código anterior. Todavia, é o único diploma legal a regular, ainda que precariamente, a filiação decorrente das técnicas de reprodução assistida.

    A reprodução assistida¹⁰ é o termo mais adequado para tratar as hipóteses nas quais o ato reprodutivo necessita da intervenção médica para restaurar a fertilidade.¹¹

    O Código Civil de 2002 enumera como espécies de filiação: natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem, de acordo com o artigo 1.593.

    A expressão outra origem pode dar margem à interpretação de que o legislador se refere à decorrente das técnicas de reprodução assistida e da clonagem.

    Ratificando tal posicionamento, o Conselho da Justiça Federal editou o Enunciado n. 103:

    Enunciado n.103: O Código Civil reconhece, no artigo 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.¹²

    Guilherme Calmon Nogueira da Gama afirma que o texto constitucional também deve ser interpretado extensivamente para englobar as outras origens de parentesco destacadas pelo Código Civil:

    Na realidade, à luz dos critérios hermenêuticos relacionados ao momento histórico da edição da norma e da necessidade da atualização de sua interpretação em razão das mudanças que se operaram na sociedade, é importante observar que a norma constitucional foi editada em período histórico-cultural que – a despeito dos avanços em vários outros segmentos do Direito de Família, como o reconhecimento das famílias fundadas no companheirismo e na monoparentalidade – somente distinguia a consangüinidade e a adoção como fontes de parentesco, motivo pelo qual hoje o intérprete deve considerar que no lugar do termo adoção constante do texto constitucional, deve-se ler "adoção e qualquer outra origem não consangüínea" [...]¹³

    Segundo Adriana Alice Zanolini, o Código Civil de 2002 utiliza a expressão natural para se referir à filiação consanguínea, decorrente do vínculo de sangue. Ela entende que, em razão de a filiação também poder ser concebida de forma artificial, tecnicamente, o termo consanguíneo seria o mais adequado para indicar a filiação decorrente do vínculo de sangue, incluindo nessa espécie a filiação natural como a artificialmente concebida. O termo natural ficaria reservado para indicar somente a filiação naturalmente concebida, por meio do ato sexual, diferenciando-a da artificialmente concebida, decorrente de modernas técnicas, evitando-se confundir o tipo de vínculo existente com a forma de concepção.¹⁴

    A autora prossegue apresentando a seguinte classificação no tocante à filiação e seu vínculo:

    Sendo assim, quanto ao vínculo existente, a filiação pode ser classificada em: consanguínea, se decorrente da consanguinidade, e civil, se decorrente da lei. A primeira espécie pode ser classificada, de acordo com a forma de concepção, em natural, quando concebida através do ato sexual; e artificial homóloga, quando concebida através das técnicas de reprodução artificial com material genético dos próprios genitores (reprodução artificial homóloga). A segunda espécie pode ser classificada em adotiva e artificial heteróloga. Em ambas as espécies não há vínculo biológico entre a criança e o genitor (a), mas apenas um vínculo civil.¹⁵

    As mudanças as quais foi submetido o direito de família ao longo dos anos, principalmente em tempos de grandes avanços da biotecnologia, impõem novas formas de vivenciar e compreender as relações entre pais e filhos.

    A presunção mater semper certa est já não pode mais ser uma máxima para o direito. Isto ocorre porque existe doação de oócitos e de embriões, para aquelas mulheres que por uma razão, não conseguem ovular ou seus oócitos têm alguma anomalia genética; é possível, ainda, estar diante de uma mãe substituta, que por motivos altruísticos dará à luz a criança de outra pessoa a qual não tem condições físicas de gestar seu próprio bebê.¹⁶

    Da mesma forma, a máxima pater is est quem justae nuptiae demonstrant, que por um equívoco do legislador permaneceu no Código Civil de 2002 (artigo 1.597, I e II), não pode prevalecer devido à possibilidade de reprodução assistida heteróloga, pela qual se utiliza o material genético de um terceiro, conforme será demonstrado adiante.

    Em razão das novas possibilidades surgidas no campo da medicina genético-reprodutiva e, sobretudo, com o reconhecimento do afeto como causa da incontestável ligação entre duas pessoas na condição de pai e filho, o conceito de filiação não pode permanecer o mesmo e deve ser ampliado de forma a abranger as relações decorrentes da reprodução assistida.

    Fato é que, as verdades biológica e afetiva coexistem no mundo jurídico. No cenário atual, o vínculo de filiação advém da autonomia da vontade, criando direitos e obrigações para todos os participantes desta relação.¹⁷

    Importante notar que existem filiações estabelecidas contra a vontade dos pais, como no caso de reconhecimento forçado de filho ou de filiação imposta pela presunção de paternidade obtida através de exame de DNA. Todavia, há outras que dependem única e exclusivamente da vontade dos pais, como nos casos de adoção e das procriações artificiais.¹⁸

    Desde a década de 1980, João Baptista Villela já se referia à paternidade como um fato cultural, nascido de uma decisão espontânea, sustentando que a condição de pai ou mãe não está ligada ao fato de gerar, mas à circunstância de amar e de servir, fenômeno ao qual deu o nome de desbiologização da paternidade.¹⁹

    Corroborando esse entendimento, Luiz Edson Fachin afirma que a verdadeira paternidade não se explica somente pela autoria genética; conclui que pai também é aquele que se revela

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