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Os Melhores Contos de Gorki
Os Melhores Contos de Gorki
Os Melhores Contos de Gorki
E-book442 páginas5 horas

Os Melhores Contos de Gorki

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Sobre este e-book

Maxim Gorki foi um escritor russo que é hoje considerado um dos grandes nomes da literatura do século XX. Publicou os seus dois primeiros volumes de contos em 1897 e formou uma espécie de ponte entre as gerações de Tchekhov e Tolstoi, e a nova geração de escritores soviéticos.
Neste volume estão reunidos alguns dos seus melhores contos.
IdiomaPortuguês
EditoraMimética
Data de lançamento18 de abr. de 2024
ISBN9789897789007
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    Os Melhores Contos de Gorki - Maxim Gorki

    Malva

    Sorria o mar...

    Picada por uma brisa leve, a vaga espreguiçava-se indolentemente, crivando a superfície da água de pequeninas rugas que refletiam os deslumbramentos cálidos do sol, como outras tantas bocas prateadas haurindo a luz.

    Para os lados do cabo sentia-se o barulho ensurdecedor das ondas, rolando a sua massa revolta até à ponta arenosa do promontório. O ruído e a luz do sol, fortemente reverberada pela água, uniam-se num frémito vivo de alegria. O céu e o mar como que se abandonavam num mútuo desprendimento amoroso; o céu enviando-lhe a luz; o mar refletindo-a na carícia doce dos seus sorrisos.

    Participando das fortes vibrações da luz, o oceano inflamava o peito acetinado e curvo, numa dolência mórbida de cansaço, embalsamando o ar com o aroma das suas emanações salinas.

    Àquela hora as ondas estiravam-se, encalmadas, pela praia lisa e ampla, desfazendo a espuma branca das suas cristas, com uma monotonia surda de folhas que se agitam...

    A estreita língua de terra do cabo parecia uma torre enorme estendida desde a costa até ao mar. À sua ponta afilada perfurava a água como uma lâmina rígida, e do lado da terra mal se lhe percebia a base oculta na neblina que começava a levantar-se.

    Naquele extremo e àquela distância, sentia-se ainda o cheiro nauseabundo e infeto que vinha das armações de pesca.

    Na areia do cabo, salpicada de pequeninas escamas de nácar, tinham plantado estacas para suspender as redes, cujas sombras projetando-se no chão faziam lembrar enormes aracnídeos repousando. Ao longo da margem alinhavam-se, paralelamente, as barcas destinadas à pesca, que a fímbria das ondas em loucas correrias vinham beijar, parecendo convidá-las a fazerem-se ao largo.

    Escotas, remos, velas, cordames, cestos e barris dispersavam-se numa grande extensão da praia, como destroços de algum naufrágio recente. A pouca distância da água e no meio daquela confusão de apetrechos marítimos, erguia-se uma barraca tosca, feita de troncos e pranchas de madeira, colmada com ramos densos de salgueiro. No alto de uma forquilha tinham posto um par de botas a secar e na extremidade aguda de um mastro tremulava um pedaço de pano vermelho.

    À sombra de uma das barcas estiraçava-se indolente, o corpo pesado de Basílio Legostev, guarda do cabo e encarregado da armação do mercador Grebentchicov.

    De costas, com as mãos cruzadas por baixo da cabeça, servindo-lhe de apoio, fixava insistentemente o mar, detendo a vista na linha longínqua e quase impercetível da costa. No horizonte distinguia-se, balouçando sobre as ondas, um pequeno ponto negro que Basílio via aproximar-se com mal contida impaciência. E desviando os olhos, cegos pelo reflexo da água, sentia-se estremecer numa forte comoção empolgante, adivinhando, tão longe estava ainda a barca, o vulto adorável de Malva caminhando para ele.

    Parecia-lhe ouvir já aquele riso claro e argentino de pássaro contente, que lhe fazia arquejar o seio forte de mulher moça.

    Enervava-o a ideia de que ela ia em breve estreitá-lo nos seus braços robustos e mórbidos, entre carícias e beijos longos, ao passo que lhe iria relatando os acontecimentos mais em dia na costa. O que lhe agradava sobretudo era a intimidade confortável e carinhosa que ela ia levar ao seu isolamento de selvagem, tendo-a na barraca, comendo ambos a suculenta sopa de peixe, regada a fartas libações de aguardente, até que ao findar do dia, depois do chá habitual, o repouso viesse juntá-los, numa deliciosa comunidade de gozo. Eram momentos só, mas que importava?

    Ao romper da alvorada separar-se-iam amigos e felizes, acompanhando-a ele na barca até ao outro lado da costa. Ainda sonolenta, Malva costumava sentar-se à popa, enquanto ele remava, esquecido de tudo, absorto na contemplação idólatra do seu corpo soberbo. Era naquela ocasião que ela se mostrava mais tentadora e graciosa, cheia de fadiga e languidez como uma gatinha farta que se lambe ainda.

    ***

    Neste dia até as gaivotas pareciam voar preguiçosamente, exaustas pelo calor. Às vezes pousavam na areia com o bico aberto e as asas estendidas, outras vezes balouçavam-se na crista das vagas sem o ruído habitual dos seus gritos.

    A barca vinha-se aproximando. Entretanto, afigurava-se a Basílio que Malva não vinha só. Seria aquele danado de Serejka que às vezes se lembrava de a acompanhar também? E levantando meio corpo, com as mãos por cima dos olhos, em pala, pôs-se a observar atentamente os vultos da barca, sentindo uma cólera surda por aquele intruso que lhe vinha transtornar o dia.

    Era Malva que vinha ao leme; na barca remavam com força, mas desastradamente, sem aquela perícia de Serejka que tornava desnecessário o auxílio da rapariga.

    — Eh, lá! — gritou Basílio impaciente.

    As gaivotas assustaram-se fugindo para o largo.

    — Eh, lá! Eh, lá! — replicou Malva com voz sonora.

    — Com quem diabo vens tu?

    Na barca soou uma gargalhada estrídula.

    — Velhaca! — rosnou Basílio a meia voz.

    Atormentava-o uma curiosidade inquieta e perturbante. Examinava a nuca e os ombros do remador, todo curvado nos esforços que fazia para impulsionar a barca. O ruído da água fendida pelos remos tornava-se cada vez mais distinto, e a areia crepitava debaixo dos pés do guarda, participando da agitação nervosa da água.

    — Com quem vens tu, Malva? — perguntou de novo Basílio já preso no sorriso jovial da rapariga.

    — Espera que vais ver — disse ela galhofando.

    O guarda franziu os sobrolhos parecendo ter reconhecido o remador que levantara a cabeça para o olhar.

    — Rema com mais força — ordenou Malva.

    O impulso foi tão violento que a barca, saltando na crista de uma vaga, pousou ligeiramente em terra enquanto a onda se retirava para dentro do mar.

    — Bons dias, pai! — disse o remador saltando para fora da barca.

    Beijaram-se três vezes na boca e nas faces. Diante daquela aparição súbita, o mau humor de Basílio converteu-se num misto de surpresa e de alegria.

    — Ah, eras tu, Iakov... bem me parecia! Tinha cá um palpite... Mas porque vieste? Logo vi que não podia ser Serejka. És tu, hein?

    Basílio, titubeante, afagava a barba com as mãos, visivelmente aturdido. Os olhos do filho cravavam-se nele, persistentes, interdizendo-lhe o rosto encantador de Malva que o atraía.

    Contudo um sentimento ainda não extinto comovia-o e perturbava-o diante daquele rapaz que não via há tanto tempo. Mas a presença de Malva, tentadora e provocante, dominava-lhe o orgulho de possuir assim um filho, forte e desempenado como um mastro.

    Fazia-lhe atabalhoadamente perguntas sobre perguntas, sem atender nas respostas do moço, e as ideias embrulhavam-se-lhe de tal modo que a rapariga acabou por lhe dizer chocarreira:

    — Não te desfaças em alegria, homem! Leva-o antes para a barraca e oferece-lhe alguma coisa.

    Basílio atreveu-se a olhá-la de frente. Nos lábios dela contraía-se um sorriso de ironia; e, coisa inexplicável, pareceu-lhe que aquele corpo fresco e apetitoso não lhe causava já as mesmas tentações de sempre.

    Malva fixava, ora no pai, ora no filho, os seus olhos verdes, petulantes e maliciosos, trincando pevides de melancia nos pequeninos dentes de pérola.

    Durante alguns momentos calaram-se, constrangidos, sem acharem nada que dizer.

    — Volto já — interrompeu bruscamente o guarda, saindo da barraca. — Não estejam ao sol; vou buscar água e tratar da sopa. Vais ver, Iakov, o que é uma sopa de peixe feita no mar! Não me demoro nada, é um instante...

    Pegou numa marmita e afastou-se desaparecendo por detrás das redes suspensas.

    Malva e Iakov seguiram-no.

    — Então eis-te junto de teu pai. Estás satisfeito? — perguntou a rapariga aproximando-se dele.

    O moço inclinou para ela o rosto emoldurado numa barba ruiva e frisada, replicando:

    — É verdade... cá estou! Mas que bonito mar.

    — Magnífico, sim. E acha-lo velho, muito acabado?

    — Não, não... Julguei encontrá-lo já encanecido e apenas lhe alvejam alguns cabelos brancos. Está ainda forte.

    — Há quanto tempo o não vias?

    — Uns cinco anos. Quando saiu da aldeia ia eu fazer dezassete.

    Entraram na barca. O calor e o cheiro enjoativo do peixe tornavam a atmosfera interior irrespirável. Malva sentou-se num molho de sacos e Iakov imitando-a atirou-se para cima de um tronco. Separava-os uma barrica serrada pelo meio, cujo tampo servia de mesa ao guarda. Examinavam-se a espaços, sem falarem; foi ela quem rompeu o silêncio.

    — Vens trabalhar para cá?

    — Não sei. Se achar trabalho talvez fique.

    — Mas hás de encontrar — replicou Malva com firmeza, acariciando-o com os olhos.

    Ele tinha a cabeça baixa e limpava o suor com a manga da blusa.

    — Ia apostar em como tua mãe te incumbiu de certas coisas... — inquiriu ela maliciosamente.

    Iakov teve um gesto de enfado.

    — Mas de quê?

    — Ora, nada — replicou Malva com um ar falso de indiferença.

    Começavam a desagradar-lhe os modos irrequietos da rapariga. Invadia-o uma sensação vaga de aborrecimento, de repulsão mesmo, ao lembrar-se das palavras que a mãe lhe dissera, grave e triste, no dia em que ele saíra da aldeia.

    — Em nome do céu, Iakov, diz-lhe: «Pai, a nossa mãe está sozinha na aldeia... os anos passam... daqui a pouco está velha e inutilizada pelas fadigas. Conta-lhe tudo, filho, conta-lhe tudo!» — E cobrira o rosto com o avental chorando silenciosamente.

    Iakov, que não se comovera então diante daquelas súplicas, experimentava agora um sentimento piedoso de compaixão, e fixando Malva com o semblante carregado tinha vontade de lhe dirigir insultos grosseiros.

    — Pronto, vai-se arranjar num instante — exclamou Basílio, aparecendo com um peixe ainda vivo numa das mãos e empunhando na outra uma faca comprida.

    Olhava os hóspedes com uma expressão aparentemente tranquila, posto que o embaraço se lhe traduzisse ainda no modo trôpego de andar.

    — Agora toca a fazer fogo! Falaremos depois... Estás forte que nem um touro, Iakov.

    Desapareceu de novo.

    Malva continuava a mastigar pevides, contemplando familiarmente Iakov que debalde se esforçava por desviar os olhos dela.

    Entretanto o moço pensava: «Deve passar-se aqui magnificamente. Que boa aparência que eles têm!»

    Depois, intimidado pelo silêncio, disse alto:

    — Esqueceu-me o saco na barca, vou buscá-lo.

    Levantou-se e saiu.

    Passados alguns momentos voltou Basílio, e aproximando-se de Malva disse-lhe rapidamente ao ouvido:

    — Que ideia foi essa de o trazeres contigo? Que lhe hei de dizer de ti?

    — Veio, acabou-se! Que queres que lhe faça?

    — Mas não vês que é uma vergonha, estúpida criatura? O que lhe hei de dizer? Sim, o que lhe hei de dizer? Com a outra lá em casa! Que loucura!

    — E que me importa a mim? Tenho eu porventura medo de vocês? — perguntou ela com um modo desprezível nos olhos fulvos. — Mas que cara tu fizeste ao vê-lo! Deu-me mesmo vontade de rir!

    — Achaste-lhe graça, hein? E dizes-me isso assim descaradamente?

    — Podias ter suposto que ele vinha.

    — Como querias tu que eu adivinhasse, sem me prevenirem de nada?

    Fê-los interromper o ruído da areia pisada por Iakov. O rapaz entrou, atirando o saco para um canto e lançando um olhar furtivo à rapariga.

    Malva continuava muito preocupada a descascar pevides, e Basílio sentando num tronco pôs-se então a fazer perguntas ao rapaz, com um ar constrangido:

    — Que lembrança foi essa de vires até cá, assim de imprevisto?

    — Mas escrevemos, prevenindo-te.

    — Quando? Não recebi nenhuma carta!

    — Não recebeste? Pois crê que te escrevemos.

    — Perdeu-se provavelmente a carta. O diabo a leve! É sempre assim. Coisas que interessam sempre levam extravio.

    — Desse modo não sabes nada dos nossos negócios — inquiriu Iakov, desconfiado.

    — Pois não te disse que não recebi coisa nenhuma! Eh, que desgraça, lá se me está a ir a sopa embora!

    E deitando a correr, pôs-se a tirar vagarosamente com uma colher a espuma do ao-de-cima do caldo, refletindo nas coisas extraordinárias que acabara de ouvir. Aquela história do filho, longe de o comover, fizera antes irritá-lo contra ele e contra a mãe. Quanto dinheiro lhes não mandara durante aqueles cinco anos? E não tinham sabido aproveitá-lo. Se Malva não estivesse presente, ele lhe teria falado! Abandonar a aldeia sem licença sua e deixar as terras sem amanho, ao desamparo. E os campos que o filho desprezara nesses cinco anos de vida solta pareciam-lhe agora uma goela insaciável onde o seu dinheiro se subvertera irremediavelmente. Basílio suspirava, remexendo o caldo com a colher.

    À luz do sol, a chama da fogueira tornava-se mortiça e pálida. O fumo azulado e transparente erguia-se suavemente em longas espirais, curvando-se depois até ao encontro das ondas. Basílio contemplava-o, perplexo e desalentado, afigurando-se-lhe que dali em diante a vida não teria para ele os mesmos encantos do que até aquele dia lhe dera a gozar. Iakov adivinhara já com certeza quem era Malva: o que pensaria ele?

    Entretanto na barraca a rapariga continuava a fazer perguntas frívolas ao moço.

    — Deixaste provavelmente alguma namorada na aldeia, é certo?

    — Sim, talvez! — replicou ele, maldizendo-a interiormente.

    — E é bonita? — inquiriu curiosa.

    Iakov não respondeu.

    — Porque te calas? Diz, é mais bonita do que eu?

    Iakov, sem querer, pôs-se a contemplá-la detidamente. Tinha as faces morenas e carnudas, e os lábios, um pouco grossos, tremiam-lhe abertos num sorriso quente de sensualidade. Uma blusa cor-de-rosa comprimia-lhe os ombros roliços, desenhando-lhe numa linha firme e inteiriça os contornos do peito alto e elástico. Desagradavam-lhe, porém, os seus olhos verdes e turbulentos.

    — Porque me perguntas isso?

    — Pois de que queres tu que eu fale? — casquinou ela num riso claro.

    — De que te ris?

    — De ti.

    — Fiz-te mal? — retorquiu ele de mau humor. E de novo os seus olhos se baixaram, humildes e trémulos, diante do sorriso tentador de Malva, que não respondeu.

    Iakov, percebendo as relações que a ligavam ao pai, sentia-se constrangido na presença dela. Mas não havia razão para estranhar aquilo; tinham-lhe dito que todos faziam o mesmo e compreendia que um homem robusto como seu pai não poderia passar sem uma mulher. Todavia repugnavam-lhe aqueles amores obscenos recordando a outra, a pobre mulher, que envelhecia na fadiga rude dos campos.

    — A sopa está pronta, traz as colheres, Malva — disse Basílio assomando ao portal.

    Iakov ruminou consigo: «Ela que sabe tão bem os cantos à casa é porque deve voltar aqui frequentemente.»

    Malva, pegando nas colheres, afastou-se dizendo que ia lavá-las ao mar, e de caminho trazer a aguardente que ficara na barca.

    Mal se viu sozinho com o filho, Basílio perguntou-lhe:

    — Como a encontraste tu?

    — Perguntei-te no correio. Dirigiu-se-me esta rapariga dizendo: «Olhe, vou também hoje visitá-lo, escusa de se cansar a pé, venha comigo na barca». E assim foi.

    — Que tal a achas?

    — Não é feia — respondeu o moço indiferente.

    — Que queres, não pude evitá-lo — disse Basílio, gesticulando. — Quis a princípio resistir; impossível! Depois, quando se é casado, o hábito... Demais, trata-me da roupa... Olha, fica sabendo: há duas coisas a que não podemos fugir: das garras da morte e da mulher.

    E sentiu tirar-se-lhe um enorme peso dos ombros ao pronunciar decididamente aquelas palavras.

    — Mas eu nada tenho que te dizer — replicou Iakov — isso é lá contigo. Não vim cá para julgar o teu procedimento.

    E intimamente pensava que desejava antes tê-la encontrado a remendar-lhe as calças.

    — Tenho quarenta e cinco anos — continuou o guarda. — Ainda não estou velho... Daí, custa-me pouco dinheiro, que diabo! Afinal de contas é minha mulher para todos os efeitos.

    — Certamente — afirmou o rapaz. E pensou lá consigo: «Em que dinheirão te não ficará ela.»

    Malva voltou logo trazendo uma garrafa de aguardente e bolos.

    Sentaram-se imediatamente a comer.

    Silenciosos, iam sugando as espinhas, cuspindo-as depois na areia ao pé da porta. Iakov devorava sofregamente com grande agrado de Malva que via entumecerem-se aquelas faces tostadas pelo sol. Basílio comia pouco e devagar, para poder examiná-los furtivamente e refletir na atitude que lhe convinha tomar.

    O azul do céu enternecia de húmido e claro, naquele dia. À música alegre e acariciadora das ondas juntava-se o grito das gaivotas. Diminuíra o calor, e às vezes chegava um bafejo de ar quente impregnado dos aromas salinos da água.

    Iakov depois de comer sentiu-se pesado, com uma sonolência mórbida premindo-lhe as pálpebras. Sorria estupidamente, dirigindo a Malva olhares tão provocantes que Basílio achou prudente dizer-lhe:

    — Iakov, encosta-te um pouco até à hora do chá... depois te acordaremos.

    — Sim, sim! — titubeou ele deixando-se cair sobre uma esteira. — E vocês para onde vão? Hein? Para onde, seus...

    Basílio, perturbado, voltou-lhe as costas, saindo rapidamente. A rapariga, escandalizada, respondeu-lhe em tom severo:

    — Não te intrometas em negócios alheios, percebeste?

    — Quem, eu? Esperai que eu já lhes digo... mas que bonita que ela é! Olha...

    Disse ainda algumas palavras desconexas, depois adormeceu profundamente com um sorriso de bêbado no rosto congestionado.

    Entretanto o guarda enterrara três estacas na areia e, reunindo-as pelas extremidades, lançou-lhes uma esteira por cima, abrigando-se em seguida debaixo daquela tenda improvisada.

    Malva, que acabava de chegar, estendeu-se na areia ao lado dele. Basílio, amuado, voltou-lhe as costas desdenhosamente.

    — Mas que é isso? — perguntou a rapariga sorridente. — Não estás porventura satisfeito de tornares a ver teu filho?

    — Não vês como ele me trata? E tudo por culpa tua — replicou Basílio sombriamente.

    — O quê! Por minha culpa? — respondeu ela com um ar falso de admiração.

    — Pois é claro!

    — Sinto-o bastante. O que me resta então a fazer? Não voltar? Pois bem, não voltarei.

    — Pois vai-te, velhaca! — exclamou ele. — Ah, são todos assim! Aqueles por quem mais nos afeiçoamos são sempre os que pior nos tratam.

    Prostrara-se de novo dominado por um grande desalento. Malva, abraçando os joelhos, balanceava o corpo esbelto com uma graça felina e desenvolta, e estendendo a vista para o largo sorria com um desses sorrisos triunfantes que possuem as mulheres conhecedoras da sua beleza.

    Um barco de vela deslizava no mar alto como um pássaro triste de voo pesado e lento. Largara há muito a costa e ganhando a linha longínqua do horizonte ia em breve sumir-se como uma pequenina nuvem que se desfaz.

    — Porque estás assim calada? — perguntou Basílio, contemplando-a.

    — Penso...

    — Em quê?

    — Sei lá!

    E depois de um momento de silêncio acrescentou:

    — É um belo moço, o teu filho.

    — Que tens tu com isso? — perguntou Basílio, ciumento.

    — Faz mal perguntar-te?

    — Olha, é melhor mudares de conversa — disse Basílio lançando-lhe um olhar de desconfiança. — Não brinques comigo... Sou muito prudente; se me fazes porém exaltar... — E cerrando os punhos acrescentou por entre os dentes: — Desde que chegaste não fazes outra coisa senão intrigar. Não compreendo o que diabo tu queres; mas asseguro-te que é melhor que eu não chegue a compreender... És um poço de malícia! Acautela-te! Eu sei como proceder no caso de...

    — Não me metes medo, Basílio — disse ela com um sorriso desdenhoso.

    — Pois bem, não me irrites!

    — Pensas que me assustas com esses modos?

    — Olha que se me fazes desesperar é um instante em quanto danças na corda — ameaçou Basílio com exaltação.

    — Pois atreves-te a bater-me?

    — Então, quem julgas tu que és para que te não possa bater?

    Aproximando-se de Basílio a rapariga replicou-lhe arrogantemente com o semblante desfigurado pela cólera:

    — Parece-me que não sou tua mulher. Tinhas por costumes desancares a que lá tens na aldeia, por qualquer insignificância; julgas que farás o mesmo comigo? Estás muito enganado! Sou livre, só dependo de mim mesmo e ninguém no mundo é capaz de dominar a minha vontade. Já não sucede o mesmo contigo. Receias do teu filho e ainda há pouco observei como te humilhavas diante dele; atreves-te ainda a ameaçar-me?

    Aqueles modos altivos da mulher nova e soberba resfriaram a cólera momentânea de Basílio. Nunca a vira assim tão bela e dominadora.

    — Vá, começa agora para aí a grasnar — disse ele submisso, completamente desarmado.

    — E muito tinha que te dizer. Gabavas-te a Serejka que não poderia abandonar-te, que me eras tão necessário como o pão. Pois enganas-te! Talvez não te ame... E se a única coisa que eu amasse fosse esta imensa plaga? O que me atrai aqui é talvez a solidão; só há mar e céu; o mais são tudo seres vis. Que tu estejas aqui ou não pouco me importa. És como o tributo que se paga por atravessarmos um certo lugar... Se fosse Serejka, seria com Serejka; se fosse teu filho seria com teu filho. Um ou outro, que me importa? Melhor fora que não existissem; vocês todos causam-me nojo. E se um dia me lembrar, bonita como sou, posso arranjar um marido que valha mais do que vocês todos juntos.

    — Ah, tu pensas assim? — rugiu Basílio, agarrando-a pela cintura e sacudindo-a furiosamente.

    Malva, com o rosto congestionado e os olhos injetados de sangue, não oferecia nenhuma resistência, limitando-se a pôr as mãos na mão de ferro que lhe apertava a cinta.

    — Então tu pensas assim e não me dizias nada? Eram, pois, falsos os teus desejos e as tuas carícias? Espera que eu te governo, grande desavergonhada!

    E num repelão deitou com ela em terra.

    Os seus punhos caíam brutalmente sobre a nuca da rapariga, experimentando uma sensação agradável ao tocar-lhe na carne mole e elástica.

    — Anda, serpente, toma! Toma! — exclamava ele, fustigando-a desalmadamente.

    Tranquila, sem uma palavra de queixume, Malva deixou-se cair de costas, com os cabelos em desalinho e uma grande vermelhidão incendiando-lhe o rosto. Os seus olhos verdes brilhavam-lhe sob as pálpebras com um fulgor impercetível de cólera.

    Basílio, anelante por ter desabafado a sua raiva, não atendeu no olhar frio e rancoroso que ela lhe dirigiu; e inclinando-se para a sua vítima, vencedor e desdenhoso, surpreendeu-lhe nos lábios um sorriso calmo de benevolência e de perdão.

    — Que tens tu, víbora? — perguntou-lhe ele, puxando-lhe vivamente pela manga da blusa.

    — Foste tu que me bateste, Vasia? — murmurou Malva humildemente.

    Ele contemplava-a pasmado, sem saber que dizer. Fora-se-lhe a raiva diante daquela resignação dócil de mulher vencida.

    — Amas-me então muito? — insinuou Malva.

    Basílio estremeceu, ouvindo aquela voz onde palpitavam carícias de amor.

    — Bom, agora já não há remédio — disse com aspeto sombrio. — Estás satisfeita?

    — Vasia! E eu que julgava que tu já me não tinhas amor! Pensava comigo: agora que tem cá o filho abandonar-me-á.

    E lançou uma gargalhada bastante ruidosa para ser natural.

    — Tonta! — disse Basílio, sorrindo involuntariamente.

    Sentia-se culpado, cheio de remorsos; mas recordando-se dos motivos porque a sovara, acrescentou rudemente:

    — Isso não tem nada que ver com meu filho. Se te bati a culpa foi tua... Não te atrevesses a zombar de mim!

    — Era de propósito para te experimentar! — E roçava-se por ele, provocantemente, como uma gata desejosa.

    Basílio deitou um olhar para a barraca e apertou Malva nos braços, beijando-a.

    — Vês o resultado da experiência?

    — Deixá-lo — retorquiu Malva, revirando os olhos. — Amavas-me e bateste-me... hei de lembrar-me sempre...

    E contemplando-o durante um momento, disse com intenção reservada:

    — Nunca me há de esquecer!

    Basílio interpretou estas palavras favoravelmente.

    — Sim?

    — Verás — respondeu Malva, serenamente e com um tremor impercetível nos lábios.

    — Ah, minha querida — exclamou Basílio apertando-a de novo nos braços. — Sabes? Parece-me que te amo agora mais! Sinto-te mais minha!

    As gaivotas voavam junto deles, sem receio, soltando os seus gritos agudos. A brisa do mar irrequieto e saltitante, refrescava-lhes os rostos afogueados pela alteração. O rumor monótono das ondas embalava-os como uma doce paz que descesse do alto.

    — Ah, a vida! O que a vida é!! — exclamou Basílio, acariciando com uma expressão sonhadora o corpo da mulher que se lhe abandonava. — É assim o mundo. O que nos proíbem é o que mais tentações nos causa. Não imaginas: às vezes penso na vida e tenho um medo terrível, sobretudo de noite quando não posso dormir. Diante de mim estende-se a vastidão imensa da água; por cima o céu desdobra a sua cúpula azulada... E tudo o mais tão negro, tão pesado, dá-me a impressão de um monte de chumbo em cima do peito. Parece-me então que me anulo e torno num desprezível nada sobre a terra que se agita debaixo dos meus pés... Se nesses momentos estivesses comigo, ao menos seríamos dois.

    Malva, com os olhos cerrados, extática, abraçara-se aos joelhos de Basílio. A cara rude e bondosa do guarda, tostada do sol e mordida do vento, inclinava-se para ela, roçando-lhe o colo branco e descoberto com a sua barba comprida. Malva não se movia. Era uma estátua onde somente arquejavam os peitos altos aos impulsos rítmicos da respiração. Basílio ia-lhe explicando quantas canseiras lhe custava aquela existência solitária de renegado, como eram dolorosas as suas longas noites de insónia e de pesadelos, cheias de ideias melancólicas sobre a vida. E beijando-lhe a boca demoradamente, sorvia-lhe os lábios com um desejo frenético de os devorar.

    Permaneceram assim horas esquecidas, até que, atentando no sol que estava quase a esconder-se, Basílio exclamou de repente, com modos bruscos:

    — É preciso tratar do chá. O nosso hóspede deve ter já acordado.

    Malva separou-se dele com a indolência de uma gata lânguida. Basílio encaminhou-se apressadamente para a barraca enquanto a rapariga se levantava, experimentando, ao vê-lo afastar-se, uma agradável sensação de alívio.

    Três horas depois estavam os três reunidos à mesa tomando o chá e palestrando em amável convívio sobre as coisas do passado.

    O sol no poente acendia reflexos vermelhos na água. No horizonte as cristas das vagas resplandeciam como geleiras enormes em movimento.

    Basílio, que bebia o chá por uma xícara de louça, interrogava o filho sobre as coisas do campo, evocando lentamente as suas recordações da vida na aldeia. Malva escutava as suas intermináveis tiradas sem o interromper.

    — Todos os lavradores passam bem.

    — Sim, menos mal, vivem como podem — replicou o rapaz.

    — Nós, os rústicos, de pouco necessitamos. Um abrigo, o pão quotidiano e um pouco de aguardente ao domingo, quando há, é tudo quanto basta... Se eu tivesse cabeça não teria deixado a aldeia. Ali todos somos iguais e senhores de nós, enquanto aqui não se passa de um escravo.

    — Mas aqui não há fome e o trabalho fatiga menos.

    — Não é tanto assim. Às vezes os ossos doem-nos como se no-los estivessem triturando. Na aldeia há a vantagem de se trabalhar para nós; aqui trabalha-se sempre para os outros.

    — Mas em compensação ganha-se mais — retorquiu Iakov.

    Basílio reconhecia que o filho tinha razão. No campo a existência era incomparavelmente mais penosa; todavia não gostava que o filho lho fizesse sentir. Assim, replicou-lhe com severidade:

    — Sabes quanto se ganha aqui? Na aldeia...

    — É como se estivéssemos encerrados num cárcere — interrompeu Malva. — As mulheres sobretudo sofrem de uma maneira horrível.

    — A vida da mulher é igual em toda a parte, como igual é a luz do sol — replicou Basílio mal humorado.

    — A quem o dizes — respondeu Malva. — Na aldeia quer se queira quer não, não há outro remédio se não casar-se a gente. E uma mulher casada é uma escrava sem remissão. Tem que fiar, tem que tecer, tem que cuidar do gado e dos filhos... um inferno! E o que lhe resta depois disto? As pancadas do marido.

    — Não julgues que é sempre assim!

    — Pelo contrário, aqui eu não dependo de ninguém. Sou livre como uma gaivota. Vou para onde me apetece e ninguém tem direito de me tocar.

    — E se te tocassem? — perguntou Basílio, irónico, aludindo à questão de há pouco.

    — Haviam de mas pagar! — disse Malva com um estranho fulgor nos olhos.

    Basílio sorriu bonacheiramente.

    — És atrevida e fraca como todas as mulheres. No campo a mulher é necessária para a vida; aqui serve somente para dar prazer. — E acrescentou depois de um breve silêncio: — E para o pecado!...

    Iakov desviou o sentido da conversa, lançando a vista para o largo e exclamando:

    — Dir-se-ia que o mar não tem limites. — Puseram-se os três a contemplar a plaga imensa. — Ah! — exclamou de súbito o rapaz. — Se tudo isto fosse terra, leiva negra, para se poder lavrar!

    — Isso é que é falar — disse o pai com um gesto de aprovação.

    Parecia-lhe sentir nas palavras do filho esse entranhado amor pela terra que o arrastaria novamente para a aldeia, para fora das tentações irresistíveis.

    — Perfeitamente, Iakov, é assim que deve falar um camponês. Toda a sua força provém da terra. É feliz enquanto está em contacto com ela, morre se porventura a deixa. O camponês sem terra é como uma árvore sem raízes: faz-se dele o que se quiser, porque já não vive, apodrece. Falta-lhe a antiga majestade de ser independente e livre; corta-se, serra-se, faz-se em pedaços, já não parece o mesmo... Tens razão, Iakov!

    O mar reverberava os últimos reflexos do sol.

    — Parece-me que sinto a alma fundir-se-me quando respiro em pleno sol.

    — Deveras? — perguntou Basílio.

    O olhar de Iakov perdia-se na amplidão da água. Durante muito tempo permaneceram silenciosos, absortos no crepúsculo que descia vagarosamente. O poente tomava as colorações roxas da refração, passando do sanguíneo vivaz ao alaranjado claro de oiro fosco. A praia cobria-se de sombras; tinham desaparecido completamente as gaivotas. Um silêncio pesado caía do alto onde começavam a tremeluzir as primeiras estrelas. As ondas rumorosas e vivas, impregnavam-se daquela sombra que começava a envolver os contornos das coisas.

    — Porque estou eu ainda aqui? — disse Malva. — São horas de me retirar.

    Basílio dirigiu um olhar vesgo para o filho.

    — Que pressa é essa? — perguntou ele descontente. — Espera que a lua nasça.

    — Faz-me alguma falta a lua? Não sou medrosa. Tampouco era a primeira vez que saía assim com a escuridão.

    Iakov cerrava os olhos para ocultar um sorriso de ironia.

    Malva observa-o também.

    — Pois então, vai-te! — disse o velho de repente.

    Malva ergueu-se, despediu-se em poucas palavras, tomando a ourela do mar para não se perder nas sombras. As ondas vinham beijar-lhe indolentemente os pés. No alto começavam a desenhar-se as constelações. A blusa clara de Malva era como uma pequenina mancha impercetível. Cerrara-se completamente a noite.

    Oh, meu amor vem depressa

    Gozar um pouco em meu peito...

    Cantava Malva com voz clara e timbrada.

    Parecia-lhe a Basílio que aquela voz tinha súplicas enternecidas que o chamavam, tentando-o. E cuspindo com raiva exclamou:

    — É para me fazer criar água na boca, a maldita!

    O vulto de Malva escurecia pouco a pouco no fundo sombrio.

    Põe as mãos nos meus peitos

    Que são como cisnes brancos.

    E a voz desfalecia-lhe no mar.

    — Ah — respirou Iakov, estendendo-se na areia e

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