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O Juiz e a execução penal: reflexões de uma magistrada
O Juiz e a execução penal: reflexões de uma magistrada
O Juiz e a execução penal: reflexões de uma magistrada
E-book696 páginas9 horas

O Juiz e a execução penal: reflexões de uma magistrada

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Sobre este e-book

Este livro tem dois protagonistas: o magistrado e a pessoa privada de sua liberdade. Ambos podem parecer figuras em distantes, que se situam em lados opostos, porém os dois são produtos de um mesmo processo histórico, onde não há equilíbrio fácil. O intuito de anos de pesquisa e de trabalho prático como juíza em Vara de Execução Penal é o de traçar caminhos para entender e lidar com a realidade do encarceramento no Brasil, bem como o papel do juiz nesse panorama caótico, que é o da execução penal.

A autora propõe novas alternativas para a atuação do magistrado na aplicação da pena. Esse é um momento crucial e, inclusive, paradoxal na atividade dos juízes, pois, ao mesmo tempo em que a sociedade reclama maior rigor na aplicação da penalidade, a realidade de cumprimento de pena – especialmente em regime fechado – é outra: condições insalubres, perigosas, degradantes, precárias e desumanas nas celas das carceragens deste país.

A fecunda, sensível e valorosa contribuição intelectual de Raphaella Benetti da Cunha Rios merece um lugar especial entre as inúmeras publicações que tratam da realidade e da ficção do multifário mundo das prisões. (René Ariel Dotti)
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de fev. de 2022
ISBN9788565017329
O Juiz e a execução penal: reflexões de uma magistrada

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    O Juiz e a execução penal - Raphaella Benetti da Cunha Rios

    Capítulo 1

    A investigação

    1. Caminhos de uma magistrada. 2. Fenômeno criminal e seus impactos sociais e culturais. 3. Quem é o magistrado brasileiro? 4. Indagações centrais

    1. Caminhos de uma magistrada

    QUAL É, AFINAL, O PAPEL DO JUIZ? Quando me questionava sobre essa relevante figura antes de ingressar na magistratura, entendia que a função do magistrado era apenas a de julgar. Um ser que apenas se sentava em uma mesa em frente a seu computador e, como se possuído por alguma força sobrenatural que transcendia a matéria, dizia o Direito. E eu, empolgada, fiz a prova de ingresso, repeti todos os ensinamentos utópicos aprendidos nos bancos das universidades e nos cursos preparatórios e passei em terceiro lugar em um concurso extremamente concorrido.

    Então, pensei: agora sim tenho uma profissão estável e vou exercer apenas a tarefa de julgar, para a qual tanto me preparei ao longo de 10 (dez) anos de advocacia e 2 (dois) anos de estudo intenso para o concurso. Veio a posse e, com ela, toda aquela emoção e o orgulho de meus pais por terem uma filha magistrada.

    Depois de toda essa alegria e esse entusiasmo, a realidade – e o início das minhas perplexidades: grande parte do que faço como magistrada ao longo desses mais de 8 (oito) anos de carreira, definitivamente, não é julgar. Gerencio pessoas sem ter a formação adequada em administração e gestão, fora os cursos que, vez ou outra, são ministrados na Escola da Magistratura. Resolvo questões burocráticas, como o preenchimento de infindáveis relatórios estatísticos para serem disponibilizados tanto ao Tribunal ao qual estou vinculada, como ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), um órgão previsto no art. 92, I-A, da Constituição da República Federativa do Brasil (CF/88) como integrante do Poder Judiciário⁴. Gerencio como posso crises, como rebeliões nas cadeias e presídios das cidades por onde passei, sem contar com o mínimo apoio estatal ou institucional. Suporto, de maneira resignada, a fúria das famílias dos detentos que, com toda razão, reclamam do tratamento desumano que lhes é dado nos cárceres da miséria de todo país, para utilizar a expressão consagrada na obra de Loïc Wacquant⁵.

    A imagem que eu tinha da carreira antes de nela ingressar está refletida justamente na figura da deusa grega da justiça Themis. Praticamente todas as estátuas que os recém ingressados na magistratura ganham de parentes e amigos por ocasião da posse mostra a deusa de olhos vendados, pois este é o símbolo da tal imparcialidade do juiz.

    Hoje olho para essa mesma imagem e questiono se a Themis deve estar mesmo de olhos vendados. Afinal, a justiça deve ser imparcial, mas jamais indiferente a toda a realidade que nos cerca, realidade esta que é fruto de um processo histórico que, ao invés de iluminar os caminhos da humanidade, acabou, em muitos aspectos, por surtir o efeito inverso.

    Atualmente, o magistrado, produto de um processo histórico que teve no iluminismo um marco fundamental, lida com processos eletrônicos, sistemas como E-Mandado, Projudi, Bacenjud, Renajud, Infojud, assinatura digital e inúmeros outros. Com um simples clique, é possível bloquear o patrimônio de quem quer que seja. Porém se algo falhar nesse universo informático, a saudosa caneta do magistrado não mais funciona.

    Recentemente, estava de plantão e com a minha assinatura digital vencida. Tentei determinar a expedição de um alvará de soltura de um preso. Porém sem introduzir a informação no sistema E-mandado a minha ordem, como magistrada investida do múnus público de julgar, de nada vale. Sem a correta alimentação do sistema, aquele que está segregado injustamente vai continuar nessa posição até o problema informático ser solucionado.

    Direitos humanos, dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais… Todos esses cedem à rotina burocratizada, que tomou conta da vida e do dia a dia do magistrado produto da modernidade.

    Aqui cabe um parêntesis, pois a palavra dignidade será exaustivamente utilizada ao longo desta investigação. Qual seria seu significado? Difícil encontrar uma definição, pois se trata de um conceito sensorial, que é melhor compreendido de maneira negativa, ou seja, por aquilo que jamais o senso comum admitiria como digno. E a analogia de Malraux cabe aqui como uma luva: dignidade é, portanto, o oposto de humilhação. No caso da execução penal, as condições verificadas nas prisões deste país são absolutamente degradantes e humilhantes. Espelham, portanto, o oposto do que se entende por dignidade. E é justamente essa dignidade que vem sendo dragada e menosprezada no dia a dia burocratizado e estafante dos operadores do sistema penal, entre eles, o magistrado. A burocracia força uma verdadeira inversão de valores e de prioridades, que fazem com que o essencial (garantia da dignidade) seja rebaixado a um papel secundário, coadjuvante e, por que não dizer, retórico.

    Como bem destaca Louk Hulsman, o juiz produto da modernidade, de tão assoberbado com a burocracia do sistema, invariavelmente se coloca psicológica e culturalmente distante daquela clientela normal do aparato repressivo, o que dificulta a aproximação efetiva do magistrado com a realidade carcerária e de seu público alvo – o preso⁶.

    São as duas figuras fundamentais deste livro: o magistrado e o preso⁷, aquele que ingressa no sistema penitenciário brasileiro, que sofre as consequências de seus atos e que recebe, em contrapartida, o chamado castigo. Esse castigo, assim como o magistrado que o aplica, também é produto da modernidade. Afinal, o cárcere como pena tem origem relativamente recente⁸ e objetivos dos mais variados (declarados e não declarados), que estão muito longe da tão clamada – e utópica – ressocialização.

    Logo, a presente investigação pretende, por meio das ferramentas da criminologia, da sociologia⁹ e de outros importantes ramos do saber e, sem a ambição de exaurir o debate, retirar a venda do magistrado para que ele enxergue seu cotidiano, a comunidade a qual serve e use melhor e com mais sabedoria a espada da justiça que está em suas mãos. O magistrado que irei desenhar, especialmente aquele atuante na seara das execuções penais, deve ter o olhar projetado para todos os lados, tendo, inclusive, olhos nas costas¹⁰. Deve perceber que, mesmo com toda a mecanização e informatização de seu trabalho, a matéria-prima a ser gerenciada é a mesma: a vida e o destino e, por que não dizer, a dignidade de seres humanos, independentemente da gravidade do fato por eles cometido.

    Como exerço profissionalmente a função de um dos sujeitos em questão (o juiz), este livro tem o caráter, inclusive, de autoanálise¹¹. Então, sem mais delongas, que comece o divã, uma experiência de regressão e progressão, que tem como objetivo analisar o passado, identificar o presente e projetar o futuro.

    2. Fenômeno criminal e seus impactos sociais e culturais

    Para ser construída uma tese crítica na linha de uma perspectiva sociológica capaz de se aprofundar na seara do Poder Judiciário, mostra-se premente, como objetivo geral da investigação, enfrentar a problemática do delito (e dos institutos a ele subjacentes) em uma dimensão coletiva e não individual. A intenção é a de caminhar além do que aquilo que é tangível, oferecendo possibilidades que considerem parte de um universo que não se consegue enxergar de maneira mais imediatista, ou seja, que não está empiricamente dado¹².

    Em outras palavras, há que se abordar o fenômeno criminal e seus impactos sociais e culturais. Esse é o ponto de partida e o pressuposto da investigação que se pretende fazer. Logo, se faz necessário fixar marcos teóricos e históricos importantes nessa jornada, tais como a chamada modernidade, a criminologia em seu viés crítico e o fenômeno do constitucionalismo.

    A primeira – modernidade – é a origem histórica mais recente da imagem do magistrado tal como hoje a concebemos. Muito embora a figura do juiz tenha, inclusive, inúmeras referências na Bíblia (Êxodo 18:21, 18:22, 18:26, entre outras passagens¹³), é na modernidade que se desenha o julgador contemporâneo, inicialmente restrito a funcionar como bouche de la loi, mas que recentemente, e em decorrência da crise do ideal iluminista, vem ganhando um protagonismo político diante da crise política e moral pela qual atravessa, especialmente no Brasil, os Poderes Executivo e Legislativo.

    A segunda figura referencial desta obra é a criminologia e sua evolução de uma perspectiva biológica e evolucionista para uma abordagem crítica. A quem o magistrado julga: o criminoso nato lombrosiano ou aquele indivíduo moldado pelo meio em que vive (perspectiva cultural)? E quais são as consequências de se considerar uma ou outra figura? Mesmo havendo diversas vozes que criticam a abordagem subjetiva (típica do chamado direito penal do autor), a visão que infelizmente predomina dentro do Poder Judiciário (por variadas razões, entre elas, a própria lei) é a de que a vida pregressa de um indivíduo conta – e muito – para definir se ficará preso antes da sentença penal transitada em julgado, a quantidade de pena que suportará, o lapso temporal que demorará para alçar benefícios previstos na lei, entre outras importantes consequências.

    A predominância desta perspectiva biologicista, pasmem, é, em grande parte, motivada justamente pelo contexto de uma determinada comunidade de referência. Em um pequeno município, o conceito de insignificância se vale de parâmetro bastante diferente daquele utilizado em uma grande cidade. O furto de uma vaca de um pequeno pecuarista, muito embora pareça irrelevante sob o ponto de vista da tipicidade material, impacta severamente na vida e na economia deste indivíduo. E o magistrado, o que cabe fazer diante dessa situação? Logo, todas essas variáveis fazem com que o juiz tenha que ter imensa sensibilidade com as peculiaridades culturais da comunidade a qual servirá. Afinal, aplicar de modo implacável a letra fria da lei tem consequências diversas, sob uma perspectiva sociocultural.

    O terceiro grande ponto a ser abordado é o chamado constitucionalismo. Temos uma constituição extremamente detalhada sob o ponto de vista de relacionar direitos fundamentais, porém com pouca – ou nenhuma – efetividade prática. É preciso refletir sobre qual é a importância de um Estado Constitucional de Direito, que representa muito mais do que sua mera menção retórica comumente realizada, inclusive pelos operadores do direito. Conferir ao constitucionalismo um papel de protagonismo efetivo e substancial implica colocar os direitos fundamentais em primeiro lugar em detrimento do mero formalismo. Essa mudança de prioridades é fundamental e deve ser realizada não somente no âmbito local, mas também no nacional e no internacional, em um contexto dos diferentes sistemas internacionais de direitos humanos e da jurisprudência dos tribunais internacionais.

    3. Quem é o magistrado brasileiro?

    Feitas essas necessárias incursões teóricas, que funcionarão como uma preparação do terreno para a investigação propriamente dita, premente se faz estudar a história do Poder Judiciário no Brasil para que se possa desenhar o perfil do magistrado brasileiro. Importante fazer essa delimitação, pois o magistrado necessita estar conectado à realidade que o cerca. Logo, o estilo de atuação varia dependendo da comunidade de referência a ser considerada.

    A magistratura é uma das carreiras mais ricas em diversidade cultural entre seus membros. São inúmeros os concursos públicos existentes nos 26 (vinte e seis) estados da federação, além do Distrito Federal. E em cada um deles há, pelo menos, três grandes ramos de justiça: federal, estadual e do trabalho, e todas oferecem concursos periódicos, disputados por milhares de candidatos. Normalmente, quem presta concurso, o faz em diversos estados até para aumentar suas chances de êxito. Eu mesma sou do Rio de Janeiro (Região Sudeste) e atuo no Paraná (Região Sul), estados localizados em duas regiões absolutamente distintas não somente em termos geográficos, mas culturais. Logo, minha origem culturalmente falando é muito diferente daquela do estado onde atuo. E, assim como eu, há milhares de magistrados na mesma situação. Logo, é inevitável a abordagem em um contexto nacional não somente porque as leis e a regulamentação da classe, em sua maioria, têm uma abrangência nacional (especialmente depois da criação do CNJ, que veio para realizar uma espécie de unificação da carreira), mas porque seus membros, muitas vezes, não são originários dos locais onde têm atuação profissional. No entanto, considerando que o Brasil tem dimensões continentais, será inevitável assumir certa predileção pela realidade local (Estado do Paraná – Região Sul).

    Ainda no que toca ao Poder Judiciário, há que se falar nas hoje tão discutidas garantias para a atuação de seus membros e do ritual de passagem entre o juiz bouche de la loi e o magistrado independente. Serão enfrentadas as garantias, alguns mitos (como o da absoluta imparcialidade ou isenção) e casos concretos que marcaram o turn point do juiz, que passou a ter protagonismo, inclusive político. Essa atuação obviamente desperta ferrenhos entusiastas, mas também críticas as mais variadas ao Poder Judiciário ativista, sendo difícil mesurar até que ponto a atuação jurisdicional pode ou não se imiscuir na esfera de atuação dos Poderes Executivo e Legislativo em uma sociedade cuja Constituição Federal (e, mais uma vez, vem à tona o constitucionalismo) adota o chamado sistema tripartite de poder. Nesse sentido, importante analisar não somente como o magistrado se enxerga e como ele atualmente está (em termos de responsabilidades e carga de trabalho), mas também como a sociedade o vê.

    E por que privilegiar a análise da situação da execução penal como caminho para se compreender o Poder Judiciário como um todo? Entendo que é justamente nessa fase onde está a maior injustiça do sistema, ou seja, quem está preso (inclusive, provisoriamente) e efetivamente paga a pena nos presídios deste país são normalmente as pessoas social e culturalmente mais vulneráveis. Logo, independentemente da gravidade do crime cometido (não se questiona aqui a necessidade de punição ao fato cometido), o que se percebe – e é inegável – é que existe uma imensa seletividade biológica (herança da modernidade) entre aqueles que estão dentro do sistema. E muitos daqueles que deveriam estar nele inseridos não estão (é o caso daqueles réus de crimes considerados sofisticados, como lavagem de dinheiro e corrupção). Logo, o sistema penitenciário, além de não contribuir com a chamada ressocialização, abarca muitas vezes quem não deveria e deixa de incluir quem deveria.

    Para vincular Poder Judiciário e execução penal, há que ser analisada a atuação do magistrado brasileiro nessa área, bem como sua percepção e seu trânsito na seara dos direitos humanos. Nesse particular, muitos dizem que normalmente os entusiastas dos direitos humanos apenas olham a perspectiva do criminoso e deixam de considerar que tanto a vítima quanto os policiais que realizam as detenções e suas famílias também ostentam direitos humanos. Assim como ocorre com presos, policiais são vitimados todos os dias, deixando famílias desguarnecidas. Logicamente, acredito que todos os seres humanos são portadores de direitos, independentemente da sua atual condição, assim como entendo que o preparo dos policiais merece ser revisto. No entanto, a pesquisa de doutorado que deu origem a este livro teve por recorte metodológico a análise jurídico-social das duas figuras centrais: o preso e o magistrado. Afinal, se muitos policiais morrem todos os dias sem que haja qualquer divulgação por parte da mídia, o mesmo ocorre com os presos (inclusive, em maior dimensão numérica), vitimados brutalmente nos diversos estabelecimentos penais deste país e que também têm família, mas poucas pessoas para olharem por sua situação, considerando, especialmente, que, para o senso comum, bandido tem que morrer.

    Além disso e para decidir de modo independente e considerando sempre a ótica dos direitos humanos, é necessário que o julgador também tenha direitos humanos assegurados (em especial, a independência funcional que não se confunde com mero arbítrio).

    Ainda no que se refere aos direitos humanos, observa-se que na práxis jurídica brasileira pouca – ou nenhuma – menção é feita às decisões das cortes internacionais de direitos humanos, e que elas, por sua vez, são encaradas como mera recomendação, sem força vinculante, o que enfraquece sua efetividade. Perpetua-se a ideia de que quem defende direitos humanos deveria experimentar levar preso para a casa. Ouço isso em diversas oportunidades nos muitos grupos de discussão dos quais participo. Como disse linhas acima, quem advoga pela defesa dos direitos dos presos (sem prejuízo evidentemente da defesa dos direitos dos policiais, das vítimas e de suas famílias) é encarado como magistrado sem noção da realidade, um verdadeiro desertor. Não há a compreensão de que atuação e políticas que ignoram a realidade carcerária deste país somente revertem em maior encarceramento e agravam a crise vivida no Brasil nesse setor.

    Esse entendimento distorcido que comumente se observa entre os operadores do direito nada mais é do que reflexo de uma realidade global. Desde o pós-guerra não há esse clima de xenofobia e beligerância mundial que se observa atualmente. A democracia representativa está sendo colocada em xeque. No Brasil não se enxerga tanto esse processo xenofóbico, mas vemos uma crise política que gera, por um lado, o protagonismo do Poder Judiciário e, por outro, tentativas de sua retaliação, o que, de certa forma, estimula um comportamento xenofóbico da população em relação a determinados grupos de pessoas, viabilizando o aparecimento oportunista de discursos populistas.

    Dito isso, o objetivo geral desta investigação é delinear um magistrado independente, crítico, global e comprometido com a efetivação dos direitos humanos, estabelecendo, via de consequência, qual a responsabilidade do Poder Judiciário na execução penal e em que medida o juiz poderá assegurar o atendimento dos direitos humanos às pessoas dentro do cárcere. O objetivo dos operadores do sistema penal – entre eles, o magistrado – deve ser o de buscar predominantemente soluções apesar do cárcere a pesar de la cárcel e não a través de la cárcel¹⁴.

    E, muito embora o âmbito de reflexão desta investigação seja o brasileiro, entendo adequada a expressão global para caracterizar a figura do magistrado que intento desenhar, justamente porque todo e qualquer juiz deve agir em respeito aos direitos humanos e aos correspondentes tratados internacionais, sejam ou não ratificados pelo Brasil.

    O que se defende aqui é uma mudança de foco muito mais institucional do que propriamente pessoal (muito embora o aspecto da formação pessoal seja também importante). Com a estrutura que temos hoje, o magistrado trabalha da melhor forma que consegue, mas não necessariamente trabalha certo, pois, muitas vezes, assume responsabilidades que não são suas e não se foca naquilo que deveria ser de sua incumbência. Fora isso, não há segurança em sua atividade funcional, basta ver os crescentes episódios de violência cometida contra juízes.

    Além disso, a estrutura dos tribunais e do seu órgão fiscalizador maior (CNJ), normalmente, dá muito mais importância a números do que à qualidade do trabalho e às condições de sua própria realização, o que evidentemente impacta na atuação do magistrado, que tende a se preocupar mais com as estatísticas e metas impostas pelos tribunais aos quais estão vinculados (o que é perfeitamente compreensível). Como recentemente disse um colega, excelência parece ser termo derivado de excel, tamanhas as exigências para que o magistrado tenha uma ampla produção quantitativa. Logo, para o juiz ser crítico, global e comprometido com os direitos humanos é necessário que sua estrutura lhe dê condições para que isso aconteça, em outras palavras, que privilegie não somente os números produzidos – muito embora esse seja um caminho sem volta, considerando o vultoso número de ações em trâmite no Brasil – mas, sobretudo, a qualidade do trabalho realizado por cada magistrado.

    Considerando as duas grandes áreas exploradas neste livro – Poder Judiciário e execução penal –, pretendo, como objetivo mais específico, propor não um completo rompimento com a realidade (porque sabemos que isso não é possível), mas uma troca de prioridades e uma evolução de uma justiça marcadamente quantitativa para uma justiça efetiva, que tenha como agente de construção um magistrado mais crítico, global e efetivo, menos positivista e vinculado a meras estatísticas numéricas. Esse novo perfil tem relação com a concretização da característica da independência do magistrado, muito falada e pouco efetivada na prática, a despeito de se constituir em verdadeiro direito humano fundamental do juiz.

    A independência é absolutamente necessária à emancipação do sujeito julgador, sendo ela seu bem mais caro. Nesse sentido, tenho que a emancipação, tanto da figura do juiz quanto do preso, é um conceito chave e que nos levará a traçar, por um lado, tanto as características do magistrado crítico e global e, por outro, formas de efetivar a dignidade humana no cárcere (sendo não somente o sistema em si, mas o próprio preso, uma vez emancipado, responsável por concretizar esse ideal).

    Aqui, necessito abrir um parêntesis para fixar desde logo um marco teórico absolutamente essencial a esta investigação, que é o de emancipação, e que será por inúmeras vezes referido ao longo deste trabalho, permeando toda a tese adiante defendida.

    Em sua paradigmática obra A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência, Sousa Santos já adverte que o paradigma por si defendido é o do conhecimento prudente para uma vida decente, conhecimento este que conduzirá a um processo de emancipação social. Significa dizer que este processo de emancipação deve pressupor a superação do paradigma do chamado conhecimento-regulação (manifestado pela dinâmica positivista) para ir em busca do conhecimento-emancipação, partindo do pressuposto de que conhecer não significa apenas dominar a natureza, mas interagir com ela, por meio da troca de experiências e do relacionamento do homem com sua realidade. Em outras palavras, sustenta o autor, dentro da tensão entre igualdade e diferença, que necessitamos construir a emancipação a partir de uma nova relação entre o respeito da igualdade e o princípio do reconhecimento da diferença.

    A despeito das inúmeras peculiaridades do conceito sustentado por Sousa Santos, e que jamais teremos a pretensão de esgotar nesse breve resumo, ouso utilizá-lo como referência inicial para embasar a construção do magistrado crítico e global. Emancipar, na acepção desse trabalho, significa mudar formas de pensar, sentir e agir, partindo-se da experiência vivida no dia a dia dos magistrados que atuam no sistema carcerário e, é claro, daquelas pessoas que integram referido sistema. Trata-se de pensar fora da caixa, ou seja, daquele limite raso que nos é imposto pelos esquemas positivistas que permeiam (e dominam) a atividade jurisdicional. É dizer: a amplitude e a diversidade da experiência social, inclusive do cárcere (experiência esta amplamente desperdiçada, fazendo um paralelismo com Sousa Santos), deve ser o fio condutor a propiciar uma mudança de mentalidade do sujeito julgador (para que se torne crítico e global), em verdadeiro processo de emancipação social. E já antecipo que esse processo de emancipação deve alcançar não somente o juiz, mas se estender ao sujeito preso, a fim de que possa participar de maneira ativa na condução de sua própria execução de pena, por meio de institutos como o da remição de pena, adiante mencionado. Afinal, a emancipação deve ser democrática e pluralista e se utilizar da via do paradigma dos direitos humanos, partindo-se do pressuposto de que todos ostentamos dignidade, conforme está na própria Constituição Brasileira (CF/88), independentemente de eventual situação de privação de liberdade. E ter dignidade significa ter as rédeas da própria vida e não ser tratado como um incapaz.

    Partindo desse conceito de emancipação, que será a chave para concretizar o objetivo antes narrado (de desenhar um magistrado crítico e global), premente a contextualização do juiz em um ambiente pós-moderno e marcado pela influência dos ideais da ilustração. Por isso, é necessária a análise inicial do tema modernidade. Sem querer ser redundante, temos que começar do início.

    Também é necessário levar em consideração que essa mesma ambientação na qual o magistrado está inserido foi capaz de produzir uma criminologia, que luta por buscar uma identidade e se afirmar como uma ciência global e capaz de abarcar situações de violação, que não se encontram amparadas pela criminologia tradicional e de cunho positivista, como é o caso das atrocidades geradas devido a omissão estatal em lidar com a questão carcerária.

    Essa omissão da ciência criminológica reflete, especialmente no Brasil, uma situação de caos absoluto. Trata-se de uma situação generalizada em todo o país, que acaba sendo (mal) gerida por esse magistrado produto da modernidade, sem que ele tenha o arcabouço teórico, material e humano necessário para o enfrentamento do problema.

    Esse panorama é apenas o reflexo da caótica situação brasileira em matéria de execução penal¹⁵. Falta de estabelecimentos carcerários (sendo que os existentes estão em condições absolutamente desumanas), bem como de políticas criminais, que possam minimamente reinserir um apenado, de maneira digna, na sociedade. Mais do que não ressocializar, o sistema penitenciário retroalimenta a criminalidade, o que é verificado nas impressionantes estatísticas da reincidência. O tema carcerário, além de não ter o menor apelo social (por conta de fatores como a sensação difusa e generalizada de impunidade, espelhada, inclusive, na ampla reincidência), parece refletir algo muito distante da realidade da população que, por uma questão cultural, entende que o preso não é um ser humano, mas alguém que deve ficar longe dos olhos dos cidadãos de bem. Um verdadeiro inimigo da sociedade.

    Por fim, é importante pontuar a importância de um trabalho de investigação sobre o Poder Judiciário em um contexto de crise de moralidade e das instituições atualmente vivenciado no Brasil. Discutir garantias do Poder Judiciário, como sua independência, tem completa relação com a consolidação ou não de um regime democrático. Por mais que haja problemas em sua atuação – alguns dos quais serão explorados nesta investigação, especialmente no que concerne à execução penal –, é certo que a independência de um magistrado e do próprio Poder Judiciário é um bem caro em qualquer sociedade que se julgue livre e democrática. Ouso até dizer que se trata do bem mais precioso para um juiz e justamente a nota que o identifica, razão pela qual defendemos que deve ser encarado como direito humano fundamental seu. E, nessa qualidade, qualquer investida no sentido de minar essa independência – como as que diuturnamente vêm ocorrendo – deve ser reputada não somente inconstitucional, mas contraria às diretrizes constantes dos tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário.

    Logicamente, a independência na acepção que defendemos jamais pode se confundir com arbítrio, e é esse o ponto que levo como bandeira. Afinal, o poder de decidir sobre fatos (e não sobre pessoas, que isso fique bem claro, já que apenas atitudes podem ser corrigidas) deve ser pautado não por ingerências externas de poder, mas pelos princípios (como o fundamental pilar da dignidade da pessoa humana), pela Constituição Federal, pela Lei e, sobretudo, pelo bom-senso e pela ponderação.

    Deixo claro que, mesmo precisando neste momento histórico e mais que nunca de unidade, equilíbrio e ponderação, é preciso lançar um olhar crítico sobre a atuação do magistrado brasileiro, e procuro conduzir essa crítica para uma perspectiva construtiva, sem pretender agredir simplesmente por agredir a instituição, como comumente vem ocorrendo nas diversas tentativas de enfraquecê-la. O que defendo é uma mudança de patamar, com o reforço da independência do juiz, que deve ser exercida de modo responsável para que o Poder Judiciário, especialmente nesse seu momento de protagonismo histórico, empodere-se de maneira cada vez melhor e mais eficiente do seu papel.

    4. Indagações centrais

    As indagações enfrentadas neste livro são: (i) a situação da execução penal hoje, vivida especialmente no Brasil, pode ser considerada um reflexo do projeto de modernidade, que teve início com o movimento Iluminista/da Ilustração? (ii) Essa mesma modernidade formatou a criminologia predominante no âmbito da execução penal brasileira? Tais questionamentos lançarão luzes para o enfrentamento de uma terceira pergunta, que é: (iii) a atuação do magistrado também é reflexo do mesmo processo histórico que desenhou a criminologia e a execução de pena tal qual a concebemos hoje? Por fim, o quarto e quinto questionamentos: (iv) em que medida a atuação do juiz influi na realidade vivenciada no âmbito do sistema carcerário brasileiro? (v) Considerando a realidade analisada e as dificuldades a ela inerentes, como pode ser desenhado, de forma realista e não meramente utópica, um juiz que predominantemente garanta direitos humanos? Em outras palavras, o que esse juiz pode fazer frente a realidade carcerária sem que haja usurpação de poder (afinal, não é justo imputar apenas ao magistrado a obrigação de buscar soluções)?

    Tais perguntas e suas possíveis respostas serviram de base para o desenvolvimento da tese, cujo objetivo é antever alguma possibilidade de se alcançar uma justiça efetiva na seara da execução penal, mediante a análise sobre o tipo de magistrado que poderá encampar essa viragem paradigmática e sair da espiral meramente formalista e ideal, formatada pelo projeto de modernidade, galgando a emancipação efetiva.

    Logicamente, para que essa viragem ocorra, o magistrado não pode trabalhar sozinho. Todos os agentes que interagem na execução penal – Poder Executivo, Ministério Público, Polícia e forças de segurança, Advogados, Defensoria Pública, agentes penitenciários – devem atuar em conjunto. Afinal, todos têm sua parcela de culpa pela atual situação de caos que vivenciamos. No entanto, o escopo do estudo é limitado a analisar a questão sob o prisma do juiz. Logo, não se está a dizer que o magistrado é culpado de tudo, tampouco que resolverá todas as mazelas hoje existentes. O que se pretende é, por meio da realização de uma necessária autocrítica, chegar a soluções de atuação possíveis, realistas e que não sejam mirabolantes. Não obstante pareçam óbvias, elas demandam uma radical mudança de mentalidade por parte dos operadores do direito, entre eles, o magistrado.

    O difícil é ser simples. É no caminho da simplicidade e da ponderação que podemos encontrar o magistrado que queremos e precisamos.

    Notas da Parte I

    1. Informações obtidas no site do DEPEN: Disponível em: . Acesso em: 5 fev. 2019. Esses dados passaram a contar os presos domiciliares que necessitaram ser computados, pois estão suscetíveis de ingressarem a qualquer momento no sistema penitenciário.

    2. O número antes referido não leva em consideração os familiares dos detentos, que, somados, tornam o número dos implicados no sistema penal ainda mais superlativo. Além disso, esse número tampouco leva em conta a existência de mais de 600.000 (seiscentos mil) mandados de prisão pendentes de cumprimento, além das chamadas prisões domiciliares (mais de 140.000 pessoas nesta condição), sendo que a situação de superlotação está próxima de 250.000 (duzentas e cinquenta mil) vagas, isso sem o cumprimento de ditos mandados em aberto. Percebam que o caos existe mesmo sem considerar o imenso número de pessoas que podem, a qualquer momento, ingressar no sistema penitenciário.

    3. No levantamento antes referido, o Brasil ostentaria a vergonhosa quarta colocação mundial no ranking da população carcerária, ficando na frente de países com amplíssima extensão territorial, como é o caso da Rússia. No entanto, há quem diga que esses números teriam sido mascarados pela militância de esquerda, pois indica a posição do Brasil em número de presos por 100.000 (cem mil) habitantes não no ranking de todos os países do mundo, mas no dos 20 (vinte) países com maior número absoluto de presos, o que traria o Brasil para o 34o lugar, no mínimo (disponível em: . Acesso em 10.12.2017). O fato é que, seja em 4o ou em 34o lugar, a posição brasileira é igualmente vergonhosa.

    4. O CNJ tem, entre outras inúmeras atribuições estampadas no art. 103-B, a de controlar o cumprimento dos deveres funcionais do magistrado.

    5. WACQUANT, Loïc. Las cárceles de la miseria (título original: Les prisons de la misere, trad. Horacio Pons). Buenos Aires: Manantial, 2004.

    6. HULSMAN, Louk; BERNAT DE CELIS, Jacqueline. Penas perdidas. O sistema penal em questão (título original: Peines perdues. Le sisteme pénal en question, trad. Maria Lúcia Karan). Rio de Janeiro: Luam Editora, 1993, p. 77.

    7. Deixo claro que a investigação trata não somente dos presos homens, que estão em maioria, mas também da mulher que, muito embora em minoria sofre ainda mais as agruras do sistema penitenciário, já que, mesmo com todos os seus problemas, ele foi desenhado para uma população masculina. Também não posso me esquecer dos transexuais ou outra orientação sexual. Logo, ao me referir a preso, detento, reeducando, entre outras denominações, a leitura que deve ser feita é a de que todas elas alcançam a pessoa presa, indetendentemente de seu gênero ou orientação sexual, não havendo qualquer conotação discriminatória.

    8. Sobre a história do cárcere, suas funções e seus antecedentes históricos, cf. Sandoval Huertas, Emiro. Penología: parte general. Bogota: Universidad Externado de Colombia, 1982, p. 69 e seguintes.

    9. Em Sociología y cultura, Pierre Bourdieu faz uma afirmação contundente acerca do incômodo que um estudo científico de caráter sociológico gera, pois desafia todo o saber produzido e difundido pelos meios de comunicação de massa, capitaneados por jornalistas, políticos, entre outras figuras socialmente atuantes. Segundo o autor, … ninguna ciencia compromete interesses sociales de manera tan evidente como la sociología, ou …. el sociólogo encuentra armas en contra de los determinismos sociales en la propia ciencia que los saca a la luz, es decir, en su conciencia [BOURDIEU, Pierre. Sociología y Cultura (título original: Questions de Sociologie, trad. Martha Pou). Miguel Hidalgo, México: Editorial Grijalbo, 1990, p. 3-4 e 42].

    10. Essa metáfora não é nova. Interessante perceber que na Lilliput das Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, a justiça era retratada como se tivesse praticamente uma visão panóptica, com seis olhos de todos os lados. Segundo Ana Maria Esteves Bortolanza, justificam os liliputianos essa representação com o caráter de circunspecção, ou seja, a justiça teria um olhar plurilateral de prudência e ponderação, capaz de controlar tudo e todos (BORTOLANZA, Ana Maria Esteves. A educação burguesa em Viagens de Gulliver: apontamentos para uma leitura na perspectiva histórica do texto literário clássico. Cadernos de História da Educação, v. 14, n. 1, jan./abr. 2015, p. 143-144).

    11. Como mencionado anteriormente, esta obra é fruto de trabalho acadêmico, destacando-se que não há violação ao art. 36, III, da Lei Orgânica da Magistratura – LOMAN, já que o mesmo dispositivo ressalva a crítica em obras técnicas (como a presente). Menciono, por oportuno, o item 8 dos Princípios básicos relativos à independência do Poder Judiciário, aprovada no Sétimo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e Tratamento dos Delinquentes, realizado em Milão, de 26 de agosto a 6 de setembro de 1985 (Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2017), segundo o qual en consonancia con la Declaración Universal de Derechos Humanos y al igual que los demás ciudadanos, los miembros de la judicatura gozarán de las libertades de expresión, creencias, asociación y reunión, con la salvedad de que, en el ejercicio de esos derechos, los jueces se conducirán en todo momento de manera que preserve la dignidad de sus funciones y la imparcialidad e independencia de la judicatura.

    12. Já no início do volume A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência, Sousa Santos já constata uma dificuldade central na contemporânea produção de conhecimento: a enorme dificuldade de se produzir uma teoria crítica em uma realidade que oferece tanto a se criticar, entendendo-se por teoria crítica aquela que, segundo o autor, não reduz a realidade ao que existe. E arremata: a análise crítica do que existe assenta no pressuposto de que a existência não esgota as possibilidades da existência e que, portanto, há alternativas susceptíveis de superar o que é criticável no que existe [Cf. SOUSA SANTOS, Boaventura de. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 4a ed., São Paulo: Cortez Editora, 2002, vol. I. (A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência), p. 23 e seguintes]. Percebe-se, já na parte introdutória da obra considerada, o imenso desafio abraçado por essa investigação em um mundo em que existe tanto a criticar, porém poucos são os que conseguem, efetivamente, lograr esse objetivo.

    13. 21. E tu dentre todo o povo procura homens capazes, tementes a Deus, homens de verdade, que odeiem a avareza; e põe-nos sobre eles por maiorais de mil, maiorais de cem, maiorais de cinquenta, e maiorais de dez; 22. Para que julguem este povo em todo o tempo; e seja que todo o negócio grave tragam a ti, mas todo o negócio pequeno eles o julguem; assim a ti mesmo te aliviarás da carga, e eles a levarão contigo; 26. Eles julgaram o povo em todo o tempo; o negócio árduo trouxeram a Moisés, e todo o negócio pequeno julgaram eles.

    14. Expressões de Iñaki Rivera Beiras, professor titular de Direito Penal da Universitat de Barcelona, Espanha.

    15. Em 13.11.2012, o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em reportagem concedida ao site globo.com, afirmou que preferia morrer a ter que suportar anos em uma cadeia. (Disponível em: ).

    Capítulo 2

    Modernidade

    1. Marco histórico – modernidade e pós-modernidade. 2. Iluminismo ou obscuridade? 3. O positivismo como forma dominante de se compreender o direito. 4. Projeto de modernidade no contexto brasileiro

    TODO TRABALHO CIENTÍFICO, assim como toda história, deve ter um início, um ponto de partida como forma de situar o leitor quanto às questões que serão objeto de análise. Afinal, nada surge de maneira aleatória, como se estivesse solto no tempo e no espaço. Tudo tem uma razão de ser e uma origem. Os processos históricos inevitavelmente geram influências em todos os ramos do conhecimento. Por essa razão, é recomendável voltar a encarar o saber conforme os antigos, como se fosse algo uno, sendo que a fragmentação teria como único objetivo organizar e ordenar o pensamento.

    Neste capítulo, os fenômenos históricos são analisados sob o ponto de vista histórico, mas com um viés crítico. Parece redundante, porém a ressalva é absolutamente necessária, pois muitos confundem memória com história. Por isso, cabe aqui abrir um parêntesis introdutório.

    História e memória não são palavras sinônimas, muito embora os conceitos possam ostentar pontos de convergência. A história é contada sob a ótica de quem no momento poderia fazê-lo. É uma narrativa pretensamente neutra, normalmente presente nos livros acessíveis ao público em geral, mas que acaba retratando, de certa forma, o poder vigente, o discurso dos vencedores. Já a memória tem caráter personalíssimo, ou seja, somente a vivência por alguém de determinada situação gera memória. E ela não está oficialmente registrada em lugar nenhum, somente na mente das pessoas, então se trata de uma perspectiva mais particularizada da realidade¹.

    Não obstante a memória seja de fundamental importância, nesse momento nos valeremos predominantemente da história em conjunto com a sociologia, partindo do início da modernidade e da ilustração para tentarmos fazer uma crítica de como suas promessas e seus ideais, em muitos aspectos, não foram cumpridos.

    1. Marco histórico – modernidade e pós-modernidade

    Há autores que creditam a situação de caos hoje mundialmente vivida como reflexo da modernidade, em que esta seria um elemento provocador daquele ou, no mínimo, ocuparia uma posição sine qua non para explicar os males da chamada pós-modernidade, hoje instalada.

    E o que seria a tal pós-modernidade? Segundo Perry Anderson, o conceito tem origem no mundo hispânico na década de 1930 (postmodernismo), mas apareceu posteriormente com característica de época e não meramente estética². Trata-se de uma espécie de evolução do conceito modernista a uma realidade em que os mercados adquirem maior flexibilidade e o capital é pulverizado e desmaterializado. É, portanto, uma faceta mais severa do projeto de modernidade, marcada por uma característica mais efêmera, pulverizada e transitória dos fenômenos econômicos e sociais, que mudam com a velocidade de um post no Instagram ou no Facebook. Na execução penal, a pós-modernidade corresponde aos chamados cárceres da miséria, adiante referidos.

    Nesse sentido, o marco histórico desta investigação é justamente o projeto de modernidade (que evoluiu para a citada pós-modernidade), assumindo-se uma postura crítica, contrapondo os planos do dever-ser (o que a ilustração propõe) com o ser (o que efetivamente vivenciamos na atualidade).

    Segundo Rivera Beiras, a chamada história do presente é aquela que busca indagar um passado que pode parecer remoto à primeira vista, mas que constitui o preciso momento em que eventuais condições e contingenciamentos tenham surgido³. É justamente isso que se pretende com o exame do ideário da modernidade: trazer um passado que ainda está arraigado nos modos de ser, pensar e agir dos agentes implicados na execução de pena (entre eles, o magistrado).

    Além disso, importa situar o trabalho não só no tempo, mas também no espaço, razão pela qual se estabelecerá relações com o contexto brasileiro.

    2. Iluminismo ou obscuridade?

    Dizem que quando há alguma interferência na natureza, ela não se defende, mas se vinga. Essa máxima resume, de modo contundente, todas as críticas realizadas à tentativa do projeto de modernidade em concretizar a libertação da humanidade das amarras impostas pela natureza, refletida na figura da divindade.

    O iluminismo é frequentemente encarado como um movimento cultural, social e econômico, que se contrapunha às trevas impostas durante a Idade Média. Seu auge ocorreu no século XVIII, e marcou a transição para a chamada modernidade. Há inúmeros intelectuais que tiveram destaque nesse período: Descartes, Locke, Newton, Kant e muitos outros. Mentes brilhantes, cada qual com sua expertise, porém com algo em comum: tentar fazer com que a razão predominasse, possuindo a força de controlar a natureza e os homens. Afinal, não mais se tolerava a ditadura da divindade, um ente imaterial que, com base no princípio da retribuição, não enxergava limites na punição de um cidadão que se voltasse – ainda que de modo inconsciente – contra as regras divinas⁴.

    Como bem observado por Adorno e Horkheimer, a ilustração tinha como objetivo declarado desencantar o mundo, ou seja, liberar os homens do medo e convertê-los em senhores da natureza e de sua própria razão⁵. Esse sentido é comumente atribuído a esse processo histórico, tanto nas escolas como nos bancos universitários: o iluminismo, que marca o início da modernidade, é visto com uma áurea de encantamento. A liberdade é, portanto, o dever-ser do projeto da ilustração, o ideal máximo a ser alcançado.

    No entanto, como conceber que um projeto visto com uma áurea de encantamento e endeusamento – e que preconiza a libertação do indivíduo frente às amarras da natureza – possa ter caminhado para trazer a humanidade para as condições atualmente vistas com guerras, intolerância, genocídios, desigualdades, além de maior restrição à liberdade do indivíduo?

    Tal perplexidade não é nova, e as contradições internas no ideário iluminista frequentemente são objeto de reflexões bastante profundas. Além de Adorno e Horkheimer, importa mencionar o nome de Walter Benjamin, que igualmente integrou a chamada Escola de Frankfurt, cujos teóricos criticavam fortemente tanto o iluminismo quanto a própria indústria cultural como meio de controle das massas populares⁶.

    Talvez uma das teses mais contundentes na coletânea Sobre el Concepto de Historia⁷ seja a que faz a analogia com a obra Angelus Novus, pintado pelo artista Paul Klee, em 1920. Essa figura de anjo aparentemente singela se tornou fonte de inspiração e fascínio de teóricos, inclusive de Benjamin, porque retrataria uma poderosa imagem da própria história, que tem nas barbáries cometidas ao longo dos séculos o substrato para as conquistas do mundo dito civilizado.

    O ano de 1920 marca, justamente, o período do entre guerras, e o anjo retratado por Klee, com seu olhar furioso, suas asas abertas e seus dentes à mostra, revelaria tanto sua perplexidade diante dos massacres e catástrofes promovidos no passado, como seu espanto com o porvir e sua incapacidade para retroceder no tempo a fim de resgatar todas as vítimas de um projeto cujo objetivo revelado era o de enaltecer os pilares da liberdade, igualdade e fraternidade, lema da Revolução Francesa e que bem retrata o dever-ser do iluminismo, sua versão oficial.

    Já Benjamin, em conjunto com a obra de Klee, encontra o ser, ou seja, a versão não oficial desse projeto iluminado de modernidade. Na compilação nominada Sobre el Concepto de Historia⁸, o progresso trazido pela modernidade teria outra faceta, razão pela qual Benjamin o comparou a um furacão que arrastaria o anjo de Klee, impedindo-o de recompor toda a destruição realizada no passado.

    A analogia trazida por Benjamin, muito embora pareça dramática e insana em um primeiro momento, revela que ilustração, modernidade e totalitarismo têm muito mais em comum do que imaginamos. Foi justamente o apogeu da ciência que desencadeou não só a preocupação científica, de isenção do investigador para obter uma exatidão em seus resultados, mas também o afã do homem em dominar a natureza e, consequentemente, seu semelhante quando algo se revelasse incômodo ou diferente⁹. É a matematização da vida e da existência. Nesse sentido, a natureza passa de um objeto de mera contemplação para algo a ser dominado. Como afirmado por Adorno e Horkheimer, "… lo que los hombres quieren aprender de la naturaleza es servirse de ella para dominarla por completo, a ella y a los hombres. Ninguna otra cosa cuenta"¹⁰.

    Para a consecução dessa finalidade, o indivíduo acaba desaparecendo frente ao aparato ao qual serve, se inserindo no âmbito de um processo de coisificação¹¹, de padronização, de negação de suas singularidades e particularidades a fim de se obter uma máxima racionalização e uma funcionalização da própria razão, que poderia se acomodar a qualquer objetivo, inclusive sendo suscetível de manipulação por regimes totalitários, como é o caso do nazismo¹².

    É necessário enfatizar que não se está aqui a negar a importância do iluminismo como força motriz do desenvolvimento intelectual e científico, tampouco tenho a pretensão de menosprezar as mentes que impulsionaram o sistema. O que quero deixar claro é que esse período histórico, que enaltece a razão e a objetividade, contém a gênese do que se entende hoje por execução penal (que tem no cárcere seu principal instrumento viabilizador), além de ter formatado o magistrado tal qual o concebemos atualmente.

    Além disso, por meio da liderança da razão e da objetividade, concebeu-se o positivismo, que é o predomínio absoluto da norma em detrimento da experiência e da natureza, com o objetivo de se alcançar uma teoria pura, livre de interferências externas. A concepção de Direito, tal qual idealizada nesse período histórico, marcará até hoje a práxis jurídica e o agir dos seus operadores (entre eles, o magistrado), especialmente no âmbito penal e da execução penal.

    Os reflexos do ideário ilustrado igualmente estão presentes na própria criminologia que, como será esmiuçado na sequência, surge, nesse momento histórico, ancorada por um paradigma etiológico ou biológico, segundo o qual o criminoso nasceria com determinada anomalia, sendo o ambiente no qual está inserido absolutamente irrelevante para a formatação de sua personalidade criminosa.

    Como já mencionado, o iluminismo é um ideário repleto de contradições, ou seja, os objetivos declarados são antagônicos àqueles efetivamente consagrados na prática. É a contraposição das luzes com as trevas, a obscuridade. Obscuridade no sentido de que a máxima racionalização e objetivação restringe e limita o olhar crítico e simplifica em demasia as questões sociais, especialmente no campo das políticas públicas para contenção e repressão da criminalidade. Essa rigidez no raciocínio vai impregnar praticamente todo o saber posteriormente produzido até poucos anos atrás, quando vozes críticas começam a se levantar e a se opor.

    A excessiva tecnicidade e objetivação inerente ao raciocínio técnico ilustrado deixa de levar em consideração uma variável fundamental para a compreensão e execução das políticas de enfrentamento do delito: as emoções e ideias de cada

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