Língua, linguagem, interfaces
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Língua, linguagem, interfaces - Tradição Planalto
Ana Carolina Vilela-Ardenghi
Luciana Salazar Salgado
(Organização)
Língua, linguagem, interfaces
1ª EDIÇÃO
BELO HORIZONTE
2021
Informação bibliográfica deste livro, conforme a NBR 6023:2002
da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)
Elaborado por: Maurício Amormino Júnior — CRB6/2422
Copyright © 2021
Todos os direitos reservados. Este livro ou parte dele não pode ser
reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita da Editora
Editor Executivo
Ricardo S. Gonçalves
Editores Coleção Polifonia
Maria Elisa Rodrigues Moreira
Juan Ferreira Fiorini
Revisão
Corina Maria Rodrigues Moreira
Conselho Editorial
Dr. Alberto Giordano (CONICET/UNR)
Dr.a Ana Carolina Vilela-Ardenghi (UFMT)
Dr. André Tessaro Pelinser (UFRN)
Dr.a Cláudia França (UFES)
Dr.a Letícia Fernandes Malloy Diniz (UERN)
Dr.a Maria Alzira Leite (UniRitter)
Dr.a Maria Elisa Rodrigues Moreira (PPGEL/UFMT)
Dr.a Rosângela Fachel de Medeiros (UFPel)
Produção
Tradição Planalto Produções Visuais e Editoriais
www.tradicaoplanalto.com.br
Tel.: +55 (31) 3226-2829
Sumário
Apresentação
Ana Carolina Vilela-Ardenghi
Luciana Salazar Salgado
O ciberespaço e a prisão do corpo
: materialidade e resistência à virtualização em Neuromancer
Ana Elisa S. C. da S. Ferreira
Marcelo Cizaurre Guirau
O discurso de ódio: polarização e limitação do outro
Hélio Oliveira
Desafios para o ensino de inglês para surdos: da BNCC às experiências pedagógicas
Antonio Henrique Coutelo de Moraes
Cristina Albert Mesquita
Fábio Albert Mesquita
Ativismo digital no Brasil: a hashtag entre o digital e o urbano
Julia Lourenço Costa
Bianca Cristina de Oliveira Fabiano
Como se diz o que se diz: os pré-discursos como condições de produção dos dizeres sobre a mulher
Ana Carolina Vilela-Ardenghi
Luciana Salazar Salgado
Sobre os autores
Apresentação
No bojo de uma coleção que visa, como anuncia o texto de quarta capa deste volume, ampliar os diálogos possíveis no território de estudos da linguagem, este volume congrega capítulos que se dedicam à análise de dados do tempo presente a partir de diferentes horizontes teóricos no interior da Linguística.
Ele se dirige, em primeiro lugar, aos estudantes da graduação em Letras, a fim de apresentar algumas das possibilidades de interface do trabalho do linguista, algo que, a nosso ver, permanece ainda pouco conhecido e explorado na graduação, que, em geral, acaba por fazer um voo panorâmico pelo campo da Linguística, destacando especialmente as teorias ditas mais clássicas
. Mas também pode interessar aos estudiosos da linguagem de outras disciplinas e áreas que queiram tomar contato com discussões bastante atuais sobre a produção dos sentidos, sobre o que está em jogo quando a língua está em cena, funcionando como um operador da organização social.
Trata-se de um volume que reúne trabalhos que miram questões relacionadas aos discursos de ódio, ao ambiente digital, à literatura distópica, ao ensino para surdos e às representações da mulher, apontando caminhos para que esses estudos sejam, até mesmo, continuados.
Ferreira & Guirau, no primeiro capítulo, convidam os leitores a explorar o universo da ficção científica criado em Neuromancer, numa década emblemática da produção literária que explorou elementos distópicos, apontando para um futuro high tech
a partir de uma visada sobre o corpo, situado entre um mundo material e outro, o ciberespaço.
Já Oliveira assume os discursos de ódio — um dado indiscutível do tempo presente — para refletir acerca de seu estatuto e possibilidade de apreensão no interior de uma teoria discursiva. Para além de uma discussão relevante do ponto de vista teórico, o capítulo contribui para a delimitação e definição desses discursos que, em uma sociedade como a nossa, são criminalizados, mas frequentemente escapam à punição, dada essa circunscrição flutuante.
Também Moraes, Mesquita e Mesquita discutem uma questão de profundos impactos sociais: o ensino de língua estrangeira (mais especificamente o inglês) para alunos surdos na educação básica. A partir de um trabalho de mapeamento do campo, os autores apontam para a escassez de estudos voltados para as abordagens pedagógicas de um ensino que congrega, num mesmo espaço, L1 (Libras), L2 (Língua Portuguesa) e L3 (Língua Inglesa). Os debates em torno da inclusão e dos aspectos legais e normativos certamente ganham com os achados aqui apresentados.
Costa e Fabiano, por seu turno, analisam o modo como o digital e o urbano se interconectam a partir da hashtag, propondo uma reflexão que, centrada nos pressupostos das teorias do discurso, dialoga com o campo político assim como o das tecnologias comunicacionais.
Por fim, Vilela-Ardenghi e Salgado, a partir de dois temas imbricados, mulheres e pandemia, analisam um conjunto de dados representativos dos dizeres que circula(ra)m nos tempos da pandemia que, ao mesmo tempo, retomam uma memória sobre o ser mulher em nossa sociedade e apontam para possíveis deslocamentos desse imaginário partilhado.
Como em geral permitem as coletâneas, os leitores podem navegar pelos textos de modo independente, sem seguir a ordem aqui proposta. Mas é possível também uma leitura sequencial, que deixe ver as relações entre temas aparentemente tão diversos mas que se tocam aqui e ali como, aliás, esta breve apresentação desejou esboçar (as aproximações de perspectivas teóricas, as relações entre o digital e o real
, as causas
sociais discutidas na contemporaneidade, as leis...).
Que essas possibilidades sejam, a cada leitura, renovadas e (re)exploradas, e que os horizontes para os estudos da linguagem sigam se ampliando, assim como horizontes de outras disciplinas possam ver, nestes textos, novos aspectos dos problemas que estudam.
Ana Carolina Vilela-Ardenghi
Luciana Salazar Salgado
(Organizadoras)
O ciberespaço e a prisão do corpo
: materialidade e resistência à virtualização em Neuromancer
Ana Elisa S. C. da S. Ferreira
Marcelo Cizaurre Guirau
Primeiras incursões: o ciberespaço imaginado pela ficção
A guerra fria marca o nascimento da Advanced Research Projects Agency Network¹ (ARPANET), criada pelo departamento de segurança norte-americano como parte de uma operação de desenvolvimento científico em resposta ao lançamento do foguete Sputnik, em 1957. Enquanto o governo russo explorava o espaço sideral, o engenheiro Joseph Carl Robnett Licklider percebeu que, ao desenvolver uma rede de comunicação entre computadores, também estava desenvolvendo um meio de compartilhamento do tempo e do espaço (cf. HAUBEN; HAUBEN, 1998).
A Internet se popularizou no início dos anos 1990 com a disseminação dos computadores pessoais e consagrou a ideia de Licklider de uma comunidade onde computadores mediariam as interações humanas. Tais interações acontecem no que, atualmente, definimos como ciberespaço, termo cuja origem se deve a uma criação literária: o romance Neuromancer, escrito por William Gibson e publicado pela primeira vez em 1984. Nele, encontramos a conhecida descrição inaugural e premonitória desse novo espaço:
O ciberespaço. Uma alucinação consensual vivida diariamente por bilhões de operadores autorizados, em todas as nações, por crianças aprendendo altos conceitos matemáticos... uma representação gráfica de dados abstraídos dos bancos de todos os computadores do sistema humano. Uma complexidade impensável. Linhas de luz abrangendo o não-espaço da mente; nebulosas e constelações infindáveis de dados. Como mares de luzes de cidade²… (GIBSON, 2003, p. 67-68).
Essa descrição inicial de ciberespaço oferecida pelo narrador do romance sintetiza alguns pontos que serão recorrentes na configuração desse espaço na narrativa e que, também, antecipam questões constantes nos estudos sobre esse fenômeno: 1) o ciberespaço como uma alucinação consensual
a que bilhões
de pessoas se submetem diariamente — a experiência de imersão e do esmaecimento dos limites entre o real e o virtual. No romance, Case, o protagonista, perde, em vários momentos, a noção do tempo passado no ciberespaço³ e, muitas vezes, vemos no enredo uma confusão entre os dois espaços. Além disso, a experiência da imersão, à que Case se lança com uma ânsia compulsiva, desencadeia reações físicas semelhantes àquelas produzidas pelo consumo de algumas drogas⁴; 2) o ciberespaço como uma representação gráfica
da totalidade dos dados armazenados nos computadores — a noção de que esse espaço abrange um universo de informações; de que tudo que circula via computadores está ali contido; 3) o ciberespaço como uma complexidade impensável
— uma visão desse espaço como uma teia labiríntica de ramificações complexas⁵.
Com a criação, em 1984, do termo que viria a nomear algo que é tão atual para nós em 2020, Neuromancer realiza plenamente uma das pretensões mais ousadas da literatura de ficção científica: antever, pelo exercício da imaginação, o futuro. A proximidade entre a versão ficcional do ciberespaço imaginada por William Gibson e a realidade desse fenômeno atribui a obra um poder de diagnóstico do presente e de antecipação de desdobramentos futuros que a colocam em lugar de destaque no conjunto das reflexões e das criações sobre o ciberespaço⁶.
A cultura do ciberespaço
Antes de falarmos de cibercultura, retomemos brevemente algumas noções que forjarão a base conceitual a partir da qual alicerçaremos a nossa leitura do romance, uma vez que pretendemos aqui explorar o universo ficcional construído em Neuromancer no que ele apresenta de síntese e condensamento formal de um complexo de expectativas e idealizações sobre o futuro das tecnologias na criação de mundos virtuais. Tais idealizações são analisadas por diversas ciências que abordam os fenômenos da coletividade. Evocaremos, aqui, a visão midiológica de Debray (1993, 1995). O autor afirma que a construção (intelectual) e a difusão (social) estão intrinsecamente ligadas, uma vez que não há transmissão puramente técnica. Os vestígios da cultura estão impregnados no processo de transmitir e não existe o natural ao se tratar de mídium. "Há media suaves, assim como há tecnologias suaves, menos custosas do que outras. O que não existe é o ‘natural’ (quer sejam as línguas naturais ou as linguagens-máquinas)" (DEBRAY, 1993, p. 86).
À midiologia interessam os vestígios materiais do sentido ao compreender o processo pelo qual os signos tornaram-se mundo
(DEBRAY, 1995, p. 17), isto é, compreender como formas simbólicas tornaram-se forças materiais. Esse trânsito é marcado na maneira como algumas das criações ficcionais pertencentes ao universo de Neuromancer se incorporaram ao imaginário de cibercultura⁷, em um movimento no qual as formas simbólicas transbordaram da