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Identidades Legitimamente Diversas: Um Estudo pela Visibilidade Inclusiva da Transgeneridade e da Não Binariedade de Genêro
Identidades Legitimamente Diversas: Um Estudo pela Visibilidade Inclusiva da Transgeneridade e da Não Binariedade de Genêro
Identidades Legitimamente Diversas: Um Estudo pela Visibilidade Inclusiva da Transgeneridade e da Não Binariedade de Genêro
E-book519 páginas6 horas

Identidades Legitimamente Diversas: Um Estudo pela Visibilidade Inclusiva da Transgeneridade e da Não Binariedade de Genêro

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Sobre este e-book

O livro Identidades legitimamente diversas integra o estudo das questões de gênero e apresenta uma abordagem original a respeito da transgeneridade e da não binariedade, objetivando contribuir de maneira efetiva para a construção de espaços de existência mais fluidos e humanos. A obra investiga a construção identitária de sujeitos considerados abjetos pela dominante e compulsória norma-tização de gênero, a qual busca ajustar-nos às expectativas e demandas socialmente definidas no nascimento por uma estrutura que nos concebe como indivíduos monoliticamente revestidos de papéis sexuais. Examina, para tanto, aspectos atinentes à vida, existência e resistência de pessoas que não se confinam no padrão estético-comportamental hegemônico e que, em razão disso, proble-matizam a questão do gênero e o binarismo que lhes é imposto por uma sociedade desacostumada com as configurações identitárias que transcendem as rígidas e preconcebidas representações de feminino e masculino.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento23 de jun. de 2022
ISBN9786525025421
Identidades Legitimamente Diversas: Um Estudo pela Visibilidade Inclusiva da Transgeneridade e da Não Binariedade de Genêro

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    Identidades Legitimamente Diversas - Arlei Wiclif Leal da Silva

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    Identidades

    legitimamente diversas

    Um estudo pela visibilidade inclusiva

    da transgeneridade e da não binariedade de gênero

    Editora Appris Ltda.

    1.ª Edição - Copyright© 2022 do autor

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.

    Catalogação na Fonte

    Elaborado por: Josefina A. S. Guedes

    Bibliotecária CRB 9/870

    Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT

    Editora e Livraria Appris Ltda.

    Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês

    Curitiba/PR – CEP: 80810-002

    Tel. (41) 3156 - 4731

    www.editoraappris.com.br

    Printed in Brazil

    Impresso no Brasil

    Arlei Wiclif Leal da Silva

    Identidades

    legitimamente diversas

    Um estudo pela visibilidade inclusiva

    da transgeneridade e da não binariedade de gênero

    Esta obra é dedicada à população não binária e transgênera, frequentemente cingida, rejeitada e violentada pelo hostil e pouco inclusivo sistema heterocisnormativo de conformidade e desigualdade de gênero. De igual modo, à pessoa que me orienta, estimula, cuida e inspira, com muito carinho e devoção, desde os primeiros dias de minha vida, Rute. Aos meus irmãos, sogra e cunhadas, pelo permanente apoio e incentivo, Sid, Clay, Yoma, Sheilinha e Giorgia. E, em especial, à terna companhia de meu cotidiano, ânimo de minha mente e coração, fonte de conhecimento, entusiasmo e equilíbrio, pessoa sem a qual este projeto não seria possível, Roberta.

    Tudo tem seu tempo. — Quando o homem deu a todas as coisas um gênero, não acreditou estar brincando, mas haver obtido uma profunda compreensão: — apenas muito tarde, e talvez ainda não completamente, ele deu-se conta da enormidade desse erro. — De igual modo, o homem conferiu a tudo o que existe uma relação com a moral e revestiu o mundo de um significado ético. Um dia, isso terá tanto valor quanto hoje tem a crença na masculinidade ou feminilidade do Sol

    (Friedrich Nietzsche).

    Menino ou menina? Azul ou rosa?

    Bola ou boneca?

    Esta divisão estanque da identidade sexual é uma resposta a imposições sociais, ditadas por interferência de ordem religiosa, para atender ao ditame: crescei e multiplicai-vos.

    Dita classificação tão estreita da sexualidade acabou por construir uma hierarquização entre homens e mulheres de tal ordem que ensejou o surgimento de um machismo estrutural, escancarado nos perversos números da violência doméstica e feminicídios.

    E vai além. Impõe invisibilidade a todos cuja identidade não se comporta dentro da visão binária de gênero. Tal os sujeita a uma perversa rejeição que gera não só enorme preconceito, mas também a exclusão do sistema jurídico, que corresponde praticamente a uma condenação à morte civil, pois não são reconhecidos como sujeitos de direito.

    Sobre esse delicado tema é que Arlei Wiclif Leal da Silva se debruçou e produziu este belíssimo trabalho. A obra começa trazendo conceitos e estabelecendo as distinções entre as inúmeras expressões da sexualidade.

    Depois de fazer uma incursão histórica desde a mitologia, o autor desagua no primado dos Direitos Humanos e dos princípios fundamentais que impõem a proteção da existência não binária.

    A bibliografia é densa e multifacetária, a permitir uma visão ampla dessa realidade ainda tão desconhecida por muitos e rejeitada por quem não assume o compromisso de se colocar no lugar do outro. Falta empatia, que é sofrer a dor de quem refoge aos modelos estanques de ser e de viver.

    Não existe na literatura brasileira um trabalho de tanta envergadura e de tal fôlego sobre um tema que todos precisamos conhecer e aprender a respeitar.

    Arlei Wiclif Leal da Silva teve a coragem de ousar, qualidade que leva à construção de uma sociedade mais igual, pois ensina a todos nós a conviver e a respeitar as diferenças.

    Uma obra que faltava na nossa literatura jurídica.

    Maria Berenice Dias

    Vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)

    Sumário

    CONCEITOS E DISTINÇÕES

    MATRIZES HISTÓRICAS

    A EXISTÊNCIA NÃO BINÁRIA SOB A ÓPTICA DOS DIREITOS HUMANOS E DOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE, DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA NÃO DISCRIMINAÇÃO

    CONCLUSÕES

    REFERÊNCIAS

    INTRODUÇÃO

    O processo de socialização ao qual somos submetidos desde a mais tenra idade apresenta, em muitos contextos, um forte teor antagônico de gênero que regulamenta rígidos e estereotipados modelos de feminilidade e masculinidade normalmente associados a um pré-fabricado determinismo natural ou biológico-sexual. Os padrões estético-comportamentais e de aquiescência decorrentes e sustentados por esse sistema não alcançam igualmente a todas as pessoas, subsistindo indivíduos que são estigmatizados, patologizados, marginalizados, subalternizados, discriminados, violentados, exotizados e/ou invisibilizados em razão da construção de subjetividades destoantes daquelas regidas pela cisgeneridade normativa, ou ordem social dominante, bifacetária e pretensamente uniforme de gênero.

    Decerto, a artificialidade e o caráter perpetrador frequentemente atribuídos às configurações identitárias que não reproduzem a lógica binária de gênero — e que, portanto, não correspondem ao prefixado quadro de referências genitalizadas, essencializadas e dicotômicas de identidade — dificultam, prejudicam ou até impossibilitam a existência e a sobrevivência de sujeitos inadaptados à unidade e coerência fictamente pressupostas entre vagina-mulher-feminilidade e pênis-homem-masculinidade.

    Embora as transidentidades e a não binariedade tenham se tornado cada vez mais comuns e evidentes, com gradativo abandono da clandestinidade, a dificuldade exprimida pela sociedade em assumir um posicionamento mais fluido, plural e flexível no que toca ao gênero se mantém vívida pelos mais distintos motivos, tais como as dúvidas, incertezas e desconfianças atinentes à diversidade e a influência de uma leitura conservadora e fundamentalista de religiões que elegem como um de seus problemas primordiais os assuntos concernentes à sexualidade e ao gênero.

    Ocorre que, da desigualdade de direitos e da intolerância emergentes desse panorama, surgem a importância e a indispensável necessidade de se contestar e expandir a discussão sobre o gênero e os papéis sociais que dele resultam, valorizando a multiplicidade de sentidos para a ideia de feminino e masculino e contribuindo para a visibilidade inclusiva das expressões e identidades não conformistas e não hegemônicas, sede em que se hospedam a justificativa e o objetivo deste livro.

    Sustentada por tais premissas, a presente obra ambiciona perscrutar algumas das principais teorias, distinções e elementos históricos, legais, práticos e jurisprudenciais relacionados à temática, averiguando sua evolução no cenário local e internacional e o árduo reconhecimento das diversas alternativas de habitar e vivenciar o mundo. Além disso, enfatiza as experiências extraídas de testemunhos de pessoas que enfrentam cotidianamente preconceitos, medos e até violência física e emocional por romperem com os paradigmas naturalizados de gênero e indagarem os constructos que escoram o determinismo social.

    Convém, aliás, salientar que a força original da abordagem telada está preliminarmente amparada na potencialidade, inerente à transgeneridade e à não binariedade, de empreender algo além dos arquétipos e identidades tradicionais de gênero, os quais são limitados, normalmente, a manufaturadas categorias opostas e desconexas de mulher e homem. Sua originalidade hospeda-se, então, no propósito de estender a noção e os arranjos de gênero e impugnar o regime predominantemente representado pelo binarismo cogente e consequentes normatizações socialmente impostas.

    Nessa direção, colima-se interceder em favor das pessoas que não se alinham à inflexível determinação identitária concebida pelo padronizador, conservador e imperioso formato heterocisnormativo, criador de inelásticas normas estéticas e comportamentais, cujos questionamento e desconstrução mostram-se de rigor, reivindicando-se, assim, a recognição de identidades e expressões que rompem com os inexoráveis modelos preestabelecidos de gênero.

    Este livro foi organizado em três capítulos. O primeiro dialoga com as doutrinas fundacionais pertinentes ao assunto e apresenta tentativas de definição, classificação e categorização não comprometidas com a redução de significados nem com o esgotamento ou contenção das possibilidades conceptivas e de vivências humanas — em constante e infindável construção —, mas empenhadas na defesa da plasticidade das subjetividades identitárias, na problematização das monolíticas definições de gênero prescritas pelo binarismo compulsório e no questionamento dos limites injustificavelmente estabelecidos a nossa liberdade, individualidade e condição pessoais.

    O segundo capítulo, por seu turno, incursiona-se por alguns dos mais importantes ingredientes históricos da constituição cultural da noção normativa de corpo, sexualidade e gênero, além de sondar as maneiras pelas quais as identidades hoje tantas vezes concebidas como ininteligíveis foram tratadas em diversos contextos e de acordo com sortidos discursos, muitos dos quais eminentemente discriminatórios.

    Finalmente, por meio da última seção, almeja-se singelamente colaborar com a agenda de discussões a respeito do gênero, sob a perspectiva dos Direitos Humanos e dos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da não discriminação, margeando os fundamentos da liberdade identitária e da tutela dos direitos de indivíduos não normativos, tudo com vistas à desconstrução de preconceitos e estereótipos e à reivindicação de um sistema que garanta o reconhecimento das mais variadas identidades de gênero, o respeito às diferenças e o combate às formas de segregação e violência.

    1

    CONCEITOS E DISTINÇÕES

    1.1 Sexo, gênero e sexualidade

    Com manifesta intenção de problematizar os padrões de identidade binária de sexo, gênero e corpo¹ e as concernentes ideias de naturalização e originalidade contidas no discurso heterocisnormativo², Judith Butler, uma das mais conhecidas estudiosas da sexualidade e do gênero sob a óptica da performance e da performatividade (noções que serão convenientemente sondadas), empreende, em sua obra denominada Problemas de Gênero, uma investigação genealógica da constituição do sujeito³. Segundo a autora,

    […] a construção política do sujeito procede vinculada a certos objetivos de legitimação e de exclusão, e essas operações políticas são efetivamente ocultas e naturalizadas por uma análise […] que toma as estruturas jurídicas como seu fundamento.

    Baseado no entendimento extraído de seu trabalho, a noção de sujeito e, em consequência, muitas de suas dimensões, a exemplo do gênero, não existem de maneira prévia, mas se estabelecem a partir de uma estrutura social que as arquiteta e as submete a um determinado e hegemônico discurso normatizador. Supõe-se, com isso, que narrativas, instituições e práticas socioculturais predominantes concebem e regulam a imagem de sujeito e as configurações possíveis de gênero, determinando os atributos, expressões, identidades e formas de existência toleráveis e aqueles merecedores de subalternização. Ponto de vista semelhante ao de Simone de Beauvoir, que, ao iniciar o volume dois de O Segundo Sexo, afirma que ninguém nasce mulher: torna-se mulher⁵, trecho, aliás, citado por Butler em epígrafe do supramencionado estudo.

    Para Beauvoir, nenhum destino biológico, psíquico […] define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualifica[…] o feminino⁶. Ainda que tal assertiva se dirija à compreensão da mulher no panorama patriarcal e machista, com vistas à emancipação feminista, compreende-se, em seu conteúdo, a percepção de que o sujeito e, em especial, seu gênero são construídos nas sociedades sob uma compulsão cultural⁷, ficando condicionados, hierarquizados e limitados as formas e os traços definidos de sua constituição e expressão. No mesmo tom, Connell e Pearse — para quem ser um homem ou uma mulher […] não é um estado predeterminado. É um tornar-se; é uma condição ativamente em construção⁸ — e Silva Junior, Jorge e Buoro pontificam que:

    […] os femininos e masculinos são construídos na e pela cultura. Esta identificação com um ou outro gênero, e a obrigatoriedade normativa destes se apresentarem apenas nesta lógica binária que não legitima outras possibilidades, só faz sentido dentro de uma matriz cultural que as reconheçam desta forma.

    Para corroborar tal asserção, Butler sinaliza que

    […] o gênero nem sempre se constitui de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos e […] estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais, regionais de identidades discursivamente construídas.¹⁰

    Assim, tem-se um fenômeno que se apresenta inconstante e contingente, o que torna impossível separar sua noção das confluências políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida¹¹. Nas palavras de Louro, definir alguém como mulher ou homem, como sujeito de gênero, necessariamente significa nomeá-lo segundo as marcas distintivas de uma cultura — com todas as consequências que esse gesto acarreta: a atribuição de direitos ou deveres, privilégios ou desvantagens¹². Essa perspectiva consagra a compreensão e a busca de uma representação mais ampla do sujeito e de suas variedades identitárias, além de fundamentar uma crítica às categorias de identidade que as estruturas […] contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam¹³.

    Consigna-se, oportunamente, que pode ser identificada, sobretudo nos discursos feministas dos anos de 1970, uma distinção — popularizada, conforme Fausto-Sterling, pelos sexólogos John Money e Anke Ehrhardt¹⁴ — entre sexo e gênero, a qual, de acordo com Butler, foi concebida originalmente para questionar a formulação de que a biologia é o destino¹⁵, atendendo, pois, à

    […] tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído: consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo, nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo.¹⁶

    Lembra-nos Louro, em acréscimo, que foi "através das feministas anglo-saxãs que gender passa a ser usado como distinto de sex"¹⁷, de tal maneira que, visando

    […] rejeitar um determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual, elas deseja[ram] acentuar, através da linguagem, o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo¹⁸.

    Destaca-se, em síntese, que, nos termos do debate estabelecido por Money, Ehrhardt e as feministas da década de 1970, o sexo representa a anatomia e a fisiologia, enquanto o gênero, as forças sociais que modelam a conduta¹⁹.

    A supraindicada diferenciação sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente constituídos²⁰, de modo que, supondo a estabilidade do sexo binário por um momento, a construção de homens não deve se aplicar exclusivamente a corpos masculinos, da mesma forma que a locução mulher não deve indicar apenas corpos femininos. Além do mais, não há razão para supor que os gêneros também devam parecer em número de dois²¹, já que a hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito²².

    Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a consequência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino²³.

    Registra-se que, embora a relatada distinção represente um avanço na forma de se pensar o gênero, Butler aponta um conjunto de problemas relacionados a essa perspectiva²⁴, ²⁵ e ressalta que a ideia de gênero construído pode aventar certo determinismo de significados de gênero, inscritos em corpos anatomicamente diferenciados, sendo esses corpos compreendidos como recipientes passivos de uma lei cultural inexorável²⁶, dando a impressão de que o gênero é tão determinado e tão fixo quanto na formulação de que a biologia é o destino²⁷. Contudo, vale dizer que:

    Se o gênero ou o sexo são fixos ou livres, é função de um discurso que […] busca estabelecer certos limites à análise ou salvaguardar certos dogmas do humanismo como um pressuposto de qualquer análise de gênero. O locus de intratabilidade, tanto na noção de sexo como na de gênero, bem como no próprio significado da noção de construção, fornece indicações sobre as possibilidades culturais que podem e não podem ser mobilizadas por meio de quaisquer análises posteriores. Os limites da análise discursiva do gênero pressupõem e definem por antecipação as possibilidades das configurações imagináveis e realizáveis do gênero na cultura. Isso não quer dizer que toda e qualquer possibilidade de gênero seja facultada, mas que as fronteiras analíticas sugerem os limites de uma experiência discursiva condicionada. Tais limites se estabelecem sempre nos termos de um discurso cultural hegemônico, baseado em estruturas binárias que se apresentam como a linguagem da racionalidade universal. Assim, a coerção é introduzida naquilo que a linguagem constitui como o domínio imaginável do gênero.²⁸

    Como se constata, a autora impugna a incontestabilidade do caráter imutável do gênero e também do sexo, cuja própria noção talvez seja tão culturalmente construído quanto o gênero²⁹. Nessa toada,

    […] o gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção o qual os próprios sexos são estabelecidos.³⁰

    Por oportuno

    O gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual a natureza sexuada ou um sexo natural é produzido e estabelecido como pré-discursivo, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura. […] Essa produção do sexo como pré-discursivo deve ser compreendida como efeito do aparato de construção cultural que designamos por gênero³¹.

    O sexo é, portanto,

    […] não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o alguém simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural.³²

    A construção do sexo não pode ser vista, então, como um dado corporal sobre o qual o constructo do gênero é artificialmente imposto, mas como uma norma cultural que governa a materialização dos corpos³³.

    Patente, dos excertos, o entendimento butleriano de que categorias como sexo e gênero são circunscritas em um hegemônico discurso cultural que pode ser reproduzido, operado e mantido acriticamente, estruturando, como amentam Connell e Pearse, modelos exemplares de masculinidade e feminilidade, ideias sobre comportamentos adequados e relações de subordinação e hierarquias sociais (a partir das quais são instituídas diferentes formas de opressão, assimetria e condicionamento), os quais formam arranjos, protótipos e distinções de gênero que nos são tão familiares que parecem fazer parte da natureza³⁴, o que faz as pessoas se escandalizarem quando alguém não segue os padrões de identidade emergentes desse cenário, muitas vezes assegurados por uma estabilização de sexo, gênero e sexualidade que obstaculiza a superveniência cultural daqueles seres cujo gênero é ‘incoerente’ ou ‘descontínuo’, os quais parecem ser pessoas, mas não se conformam às normas de gênero da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas³⁵.

    Os espectros de descontinuidade e incoerência, eles próprios só concebíveis em relação a normas existentes de continuidade e coerência, são constantemente proibidos e produzidos pelas próprias leis que buscam estabelecer linhas causais ou expressivas de ligação entre o sexo biológico, o gênero culturalmente constituído e a expressão ou efeito de ambos na manifestação do desejo sexual e da prática sexual³⁶.

    E é desse panorama que surge o conceito apontado por Butler de gêneros ‘inteligíveis’³⁷, os quais, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo³⁸ e são gerados por modelos e ideais reguladoras que produzem a noção de que podem haver sexos e gêneros verdadeiros³⁹, sugerindo que alguns tipos de ‘identidade’ não podem existir − isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo e aquelas em que as práticas do desejo não ‘decorrem’ nem do ‘sexo’ nem do ‘gênero’⁴⁰. Com efeito, a instituição de leis culturais que normatizam, delimitam e constituem o significado e a forma das categorias analisadas neste subtítulo motiva o pensamento de que algumas espécies de ‘identidade de gênero’ parecem ser meras falhas do desenvolvimento ou impossibilidades lógicas, precisamente por […] não se conformarem às normas da inteligibilidade cultural⁴¹. Assinala Louro que:

    Distintas e divergentes representações podem […] circular e produzir efeitos sociais. Algumas delas, contudo, ganham uma visibilidade e uma força tão grandes que deixam de ser percebidas como representações e são tomadas como sendo a realidade. Os grupos sociais que ocupam posições centrais, normais (de gênero, de sexualidade, de classe, de religião, etc.) têm possibilidade não apenas de representar a si mesmos, mas também de representar os outros. Eles falam por si e também falam pelos outros (e sobre os outros); apresentam como padrão sua própria estética, sua ética ou sua ciência e arrogam-se o direito de representar (pela negação ou pela subordinação) as manifestações dos demais grupos. Por tudo isso, podemos afirmar que as identidades sociais e culturais são políticas⁴².

    E é assim que, no contexto da hegemonia heterossexual e cisgênera, o representativo discurso estrutura uma ordem identitária binária e pretensamente uniforme de sexo, gênero e sexualidade que concebe como normais, naturais e universais as categorias tomadas como exemplares e suprime a multiplicidade subversiva que rompe com a lógica ali desenvolvida.

    Notoriamente, a restrição bifacetária que recai sobre o sexo com vistas ao atendimento dos objetivos de um ordenamento determinista e compulsoriamente heterossexual sexualiza os corpos e circunscreve em um sistema binário as expressões e identidades de gênero e sexualidade, hierarquizando-as.

    Anota, convenientemente, Butler que

    O gênero só pode denotar uma unidade de experiência, de sexo, gênero e desejo, quando se entende que o sexo, em algum sentido, exige um gênero − sendo o gênero uma designação psíquica e/ou cultural do eu − e um desejo − sendo o desejo heterossexual e, portanto, diferenciando-se mediante uma relação de oposição ao outro gênero que ele deseja. A coerência ou a unidade internas de qualquer dos gêneros, homem ou mulher, exigem assim uma heterossexualidade estável e oposicional. Essa heterossexualidade institucional exige e produz, a um só tempo, a univocidade de cada um dos termos marcados pelo gênero que constituem o limite das possibilidades de gênero no interior do sistema de gênero binário oposicional. Essa concepção do gênero não só pressupõe uma relação causal entre sexo, gênero e desejo, mas sugere igualmente que o desejo reflete ou exprime o gênero, e que o gênero reflete ou exprime o desejo. O velho sonho da simetria […] é aqui pressuposto, reificado e racionalizado, seja como paradigma naturalista que estabelece uma continuidade causal entre sexo, gênero e desejo, seja como um paradigma expressivo autêntico, no qual se diz que um eu verdadeiro é simultânea ou sucessivamente revelado no sexo, no gênero e no desejo.⁴³

    O trecho esboça a lógica aplicável à estrutura dos sistemas bifacetários, os quais regulam o gênero como uma relação binária em que o termo masculino diferencia-se do feminino, realizando-se essa diferenciação por meio das práticas do desejo heterossexual⁴⁴, em busca de uma coerência interna respectiva do sexo, do gênero e do desejo⁴⁵.

    Para elucidar e, ao mesmo tempo, problematizar o raciocínio indicado anteriormente, interessa oportunamente evidenciar a experiência vivida por João W. Nery, conhecido trans-homem⁴⁶ brasileiro nascido na década de 1950 no Rio de Janeiro, o qual, em sua autobiografia denominada Viagem Solitária, relata que, em determinado momento de sua juventude, não pertencia nem ao grupo majoritário heterossexual e aceito, nem a qualquer grupo minoritário e discriminado⁴⁷, porquanto não se sentia mulher nem homossexual. Ainda desconhecia todas as categorias ‘inventadas’ em meados do século XX. Sabia que não era aprovado pela maioria⁴⁸, o que o levou a questionar a qual grupo existente se enquadrava. De acordo com Jesus e Lima, Nery vivia em um não lugar que não estava nem dentro nem fora de qualquer convenção⁴⁹. Ele narra que algo errado havia. Se fosse uma doença, onde e como? Não inspirava pena ou compaixão⁵⁰. O autor chega a registrar que por essa incompatibilidade da […] mente com as partes do […] corpo, numa inversão total de imagem⁵¹, tornou-se, cada vez mais, um ser angustiado. Além de tudo, cônscio de que argumento algum poderia⁵² justificá-lo. No mais, ele declara:

    Bebi angústia pura. Quando sentia medo, pelo menos pressupunha um objeto, uma ameaça, algo que pudesse de algum modo contornar ou dele fugir. Porém, nessa angústia nada me ameaçava claramente. Não havia um objeto a ser enfrentado para prosseguir minha estranha caminhada existencial. Percebi, então, que o sem sentido e o sem valor da minha angústia me tornava um estrangeiro neste mundo tão cheio de categorias. A ironia era precisar de um rótulo, do que todos tentam fugir.⁵³

    A narrativa notabiliza o sentimento produzido pela regulamentação do gênero − estabelecida por um sistema binário − em uma pessoa que não se reconhece possível em um mundo marcado pela restrição de categorias identitárias comprometidas com uma idealizada coerência entre sexo, gênero e sexualidade. Nascido em um corpo classificado como feminino, Nery não se reconhecia mulher, mas também não se identificava como homossexual. O rótulo de que precisava o escritor foi inventado em meados do século XX e por ele conhecido mais tarde (a transexualidade⁵⁴), conquanto se constate que, depois disso, seu sentimento de exclusão e marginalização, ainda que brandamente atenuado, manteve-se, visto que a absorção pela sociedade de identidades novas e desalinhadas da tradicional e bifacetária estrutura tende a ser afanosa e embaraçosa, haja vista o já citado conceito de gêneros (in)inteligíveis. Por curiosidade, para Silva:

    A dificuldade das pessoas que assistem à transformação das sociedades em suas várias viradas culturais (e tantas outras) é o fato de não estarem preparadas para enfrentar o novo e as diferenças, sentir, ter consciência e agir com a perspectiva da diversidade, das culturas plurais, das subjetividades.⁵⁵

    Destaquemos, congruentemente, o prefácio de Michel Foucault à obra Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita, no qual o filósofo questiona se é necessária a noção de um sexo verdadeiro, constatando que, com uma constância que chega às raias da teimosia, as sociedades do ocidente moderno responderam afirmativamente a essa pergunta⁵⁶. Ao perquirir a história do estatuto que a medicina e a justiça concederam⁵⁷ aos intersexuais⁵⁸, o estudioso sustenta que as teorias biológicas da sexualidade, as concepções jurídicas do indivíduo, as formas de controle administrativo nos Estados Modernos, acarretaram pouco a pouco a recusa da ideia de mistura dos dois sexos em um só corpo⁵⁹, e, em consequência, à restrição da livre escolha dos indivíduos incertos⁶⁰, com estabelecimento da seguinte máxima: a cada um sua identidade sexual primeira, profunda, determinada e determinante; quanto aos elementos do outro sexo que possam eventualmente aparecer, eles são apenas acidentais, superficiais, ou mesmo simplesmente ilusórios⁶¹.

    Do ponto de vista médico, isto quer dizer que não se trata mais de reconhecer no hermafrodita a presença dos dois sexos justapostos ou misturados, nem de saber qual dos dois prevalece; trata-se, antes, de decifrar qual o verdadeiro sexo que se esconde sob aparências confusas; o médico terá que de certo modo despir as anatomias enganadoras, e reencontrar por detrás dos órgãos que podem ter encoberto as formas do sexo oposto, o único sexo verdadeiro. Para os que sabem olhar e examinar, as misturas de sexo são apenas disfarces da natureza: os hermafroditas são sempre pseudo-hermafroditas. Ao menos, foi essa a tese que se impôs no século XVIII, através de um certo número de acontecimentos importantes e apaixonadamente discutidos. Do ponto de vista do direito, isso implicava evidentemente o desaparecimento da livre escolha. Não cabe mais ao indivíduo decidir o sexo a que deseja pertencer jurídica ou socialmente; cabe ao perito dizer que sexo a natureza escolheu, e que consequentemente a sociedade exigirá que ele mantenha. A justiça, se for necessário apelar a ela (quando por exemplo suspeita-se que alguém não esteja vivendo sob o seu verdadeiro sexo e tenha se casado abusivamente), terá que estabelecer ou restabelecer a legitimidade de uma natureza que não tenha sido suficientemente reconhecido⁶².

    Sem embargo de Foucault reconhecer que a medicina dos séculos seguintes tenha se corrigido em relação a esse simplismo redutor⁶³, admitindo, aliás com muita dificuldade, a possibilidade de um indivíduo adotar um sexo que não é biologicamente o seu⁶⁴ (sic), o autor acredita que a ideia de que se deve ter um verdadeiro sexo está longe de ser dissipada⁶⁵. Para ele, somos

    […] mais tolerantes em relação às práticas que transgridem as leis. Mas continuamos a pensar que algumas dentre elas insultam a verdade: um homem passivo, uma mulher viril, pessoas do mesmo sexo que se amam.⁶⁶ (sic)

    Em suma, em que pese talvez considerarmos que

    […] essas práticas não sejam uma grave ameaça à ordem estabelecida; […] estamos sempre prontos a acreditar que há nelas algum erro […], um modo de fazer que não se adequa à realidade; a irregularidade sexual é percebida mais ou menos como pertencendo ao mundo das quimeras.⁶⁷

    Assim, embora nos desfaçamos da ideia de que são crimes; […] dificilmente [nos desfaremos] da suspeita de que são ficções involuntárias ou complacentes, mas de qualquer forma inúteis e que seria melhor dissipá-las⁶⁸.

    Aprofundando no assunto, observa também Foucault:

    […] admitimos […] que é no sexo que devemos procurar as verdades mais secretas e profundas do indivíduo; que é nele que se pode melhor descobrir o que ele é e aquilo que o determina; e se durante séculos acreditamos que fosse necessário esconder as coisas do sexo porque eram vergonhas, sabemos agora que é o próprio sexo que esconde as partes mais secretas do indivíduo: a estrutura de seus fantasmas, as raízes de seu eu, as formas de sua relação com o real. No fundo do sexo está a verdade⁶⁹.

    A confluência dessas ideias retratadas pelo autor edifica "um dado regime de sexualidade que busca regular a experiência sexual instituindo as categorias distintas do sexo como funções fundacionais e causais"⁷⁰. No entanto,

    […] as convenções […] que produzem eus com características de gênero inteligíveis encontram seu limite em Herculine, [por exemplo,] precisamente porque ela/ele ocasiona uma convergência e desorganização das regras que governam sexo/gênero/desejo.⁷¹

    Decerto, Herculine, João W. Nery e todas as demais pessoas que não se adequam às capturas socialmente consideradas possíveis de identificação sexual e de gênero desdobra[m] e redistribu[em] os termos do sistema binário, mas essa mesma redistribuição os rompe e os faz proliferar fora desse sistema⁷².

    Anota-se que a introdução de Michel Foucault aos diários de

    Herculine Barbin

    […] sugere que a crítica genealógica das categorias reificadas do sexo é uma consequência inopinada de práticas sexuais [e de identidades de gênero] que não podem ser explicadas pelo discurso médico-legal da heterossexualidade naturalizada.⁷³

    A análise do autor francês evidencia a interessante crença em que a heterogeneidade sexual (paradoxalmente excluída por uma ‘hetero’-sexualidade naturalizada) implica uma crítica da metafísica da substância⁷⁴, além de preconizar a "possibilidade de uma experiência de gênero que não pode ser apreendida pela gramática substancializante e hierarquizante dos substantivos (res extensa) e adjetivos (atributos, essenciais e acidentais)⁷⁵. Foucault, segundo Butler, propõe uma ontologia dos atributos acidentais que expõe a postulação da identidade como princípio culturalmente restrito de ordem e hierarquia, uma ficção reguladora"⁷⁶. Dessarte

    Se é possível falar de um homem com um atributo masculino e compreender esse atributo como um traço feliz mas acidental desse homem, também é possível falar de um homem com um atributo feminino, qualquer que seja, mas continuar a preservar a integridade do gênero. Porém, se dispensarmos a prioridade de homem e mulher como substâncias permanentes, não será mais possível subordinar traços dissonantes do gênero como características secundárias ou acidentais de uma ontologia do gênero que permanece fundamentalmente inata. Se a noção de uma substância permanente é uma construção fictícia, produzida pela ordenação compulsória de atributos em sequências de gênero coerentes, então o gênero como substância, a viabilidade de homem e mulher como substantivos, se vê questionado pelo jogo dissonante de atributos que não se conformam aos modelos sequenciais ou causais de inteligibilidade.⁷⁷

    As passagens indicadas evidentemente questionam a coerência cultural e contingentemente criada para a tríade gênero-sexo-sexualidade, revelando seu caráter artificial e essencialmente supérfluo e denunciando a produção fictícia de uma estrutura pronta, permanente, primária e substancial que regula a formação dos adjetivos subordinados, dos atributos e paradigmas expressivos de identidade. Nesse diapasão,

    […] o gênero não é um substantivo, mas tão pouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois […] seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da coerência do gênero.⁷⁸

    O desafio encarado por Butler nessas assertivas é de

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