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Imortalidade
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E-book337 páginas4 horas

Imortalidade

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Sobre este e-book

Joan e Marion estão casados há mais de vinte anos, mas já não se tratam como marido e mulher - são dois desconhecidos vivendo sob o mesmo teto. A vida do casal começa a tomar novos rumos quando a rockstar Lita von Herzog se muda para a pequena cidade de Cassandra. A cantora, cujo nome verdadeiro é Barbra, decide morar no interior da Inglaterra a fim de descansar da vida agitada de suas turnês mundiais, mas ela também está fugindo. Barbra tem um passado nebuloso e esconde um terrível segredo sobre sua origem, mas isso não impede Joan de se apaixonar por ela. Os dois começam um tórrido romance, o que põe em risco o casamento com Marion, e a vida tanto de Joan quanto de Barbra. Ao longo da história, personagens tão marcantes quanto os três protagonistas serão apresentados ao leitor: Vivienne, a espevitada melhor amiga de Marion; Eva, a empresária de Barbra, que sabe e compartilha de seu passado; Jolene, um jovem jornalista, sedento por uma manchete para a revista em que trabalha; entre outros mais. Envolvendo romance, suspense, aventura, sexo, e acontecimentos sobrenaturais, Imortalidade traz a realidade de um casamento falido, um romance extraconjugal com uma ninfeta, e uma entidade sobrenatural lutando contra sua própria natureza para poder viver uma grande paixão. A história traz elementos da cultura pop e busca prender o leitor com uma trama simples porém surpreendente e com muitas reviravoltas. Imortalidade é o primeiro romance de ficção de Caio César Mancin, natural de Brasília (Distrito Federal) e estudante de Ciência Política na Universidade de Brasília (UnB). Escritor e poeta desde 2005, o autor também é administrador do blog Música Na Vida e, entre outros trabalhos, foi diretor e roteirista do curta-metragem Projeto Víbora (2014).
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de mai. de 2015
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    Imortalidade - Caio César Mancin

    CAPÍTULO 1

            Os galhos das árvores faziam barulho, folhas caídas dançavam na ventania que por ali passava, animais caçavam suas presas, e ela estava ali. De joelhos no chão, curvada sobre sua caça, arrancava pedaços com os fortes dentes brancos que, quando contra a luz do luar, brilhavam corados pelo sangue vermelho que escorria do pedaço de carne que tinha na boca. Cansada depois de passar horas silenciando sua presa, ela agora sentia o prazer de triturar sua refeição, e o fazia como se estivesse à beira de um orgasmo, como se a vida fosse acabar se ela não comesse aquele couro macio e saboroso. Sua fome era tamanha que pensou se não seria mais prudente acabar logo aquilo e procurar mais uma refeição. Decidida a se conter, contentou-se apenas com aquele bicho musculoso que capturara.

            Depois de quase duas horas de degustação, restaram apenas ossos e vísceras. Com um simples olhar, os restos mortais da presa tornaram-se incandescentes e, em pouco tempo, apenas cinzas. Angustiada, a fera arrastou-se para uma clareira que por ali havia e deitou-se na relva, deixando-se iluminar pela luz da Lua – luz essa que lhe era como um bálsamo acalentador depois de tanto sofrer na deglutição de sua caça:

            - Se eu soubesse que teria que fazer isso para chegar aonde cheguei, não teria firmado aquele contrato! – desabafou à Lua – Por que matar faz parte da minha natureza? Eu não gosto de acabar com vidas tão prósperas! Mas o que posso fazer? Esse é o preço a se pagar por eu querer ser mais! E não há mais volta!

            Ela chorou - apenas três lágrimas escorreram do rosto bonito e pálido dela. Mas, decidida a não sofrer mais, enxugou-as, levantou-se e disse para si mesma:

            - Não quero mais essa vida! Chega!

            Com a cabeça feita, sorriu com lábios carmins de batom, ajeitou o jeans, calçou as botas pretas de cano longo, pegou sua mala e saiu limpando o sangue que ainda restava em seu rosto e em seus dentes, rumo à cidade que considerava sua última chance de ser como as outras pessoas.

            A pequena cidade de Cassandra era o lugar onde Barbra iria tentar ser normal.

    CAPÍTULO 2

            Toca o despertador três vezes antes de ele meter a mão no rádio-relógio para parar a insistente campainha que avisa que já são cinco e meia da manhã. O locutor da estação de rádio anunciava que a música mais pedida era da cantora Lita von Herzog, quando ele o socou, levantando-se logo em seguida, e desligando-o. Saiu da cama e foi lavar o rosto.

            O banheiro, todo de azulejos brancos e pia de porcelana branca, estava escuro - seus olhos não queriam saber de luz naquela hora. No breu, ligou a torneira, encheu as mãos de água e jogou-a na cara - ritual diário que realizava para tentar acordar. Ao voltar para o quarto, com a toalha de rosto na mão, viu que, como sempre, sua esposa já se levantara e já havia ido preparar o café dos dois. Abriu o armário entulhado que mantinham, pegou uma camisa cinza, uma calça moletom da mesma cor e um par de meias brancas. Vestiu-se, pôs o tênis que usava quase diariamente e saiu do quarto.

            Na mesa da minúscula sala de jantar, já estava tudo arrumado: dois pães franceses com queijo, presunto e maionese, um copo de suco de limão, um copo de vitamina de mamão e leite, e o remédio da tireoide. Sentou-se à mesa e, dali a pouco, a mulher apareceu com a garrafa térmica laranja de café e sentou-se também. Os dois tomaram seu café da manhã em silêncio, um de frente para o outro, Entre eles, apenas a mesa e o jornal que ele lia enquanto comia.

            Depois de terminar seu café, levantou-se com pressa, e foi para o quarto. Voltou para a sala, pronto para sair, e quando na altura da porta, a esposa lhe disse tchau. Ele fechou a porta e nada disse. Ela deu uma olhada na vizinhança pela janela, e entrou em casa, escondendo sua camisola de algodão dentro do robe branco de flanela.

            Joan e Marion eram casados havia vinte anos e não trocavam uma palavra educada havia dezoito.

    CAPÍTULO 3

            O caminhão de mudanças parou em frente à casa que estava à venda naquela rua. Quando o caminhoneiro saiu, viu a nova dona da casa arrancando a placa de vende-se que ainda se encontrava no jardim. A casa era simples, mas bonita e charmosa: tijolinhos à vista, janelas com batentes decorados com motivos barrocos e pintados recentemente de branco, o telhado meio curvado para facilitar a descida da neve quando estivesse na época, jardim frontal enfeitado com gerânios, e uma roseira, presa a uma haste metálica bem no meio do gramado, completava o charme da casa nova de Barbra. O motorista do caminhão chamou-a e perguntou se poderiam descarregar os móveis. Com o sorriso mais branco e agradável que ele já vira, ela assentiu e convidou-o a entrar. Como que hipnotizado pela sensualidade que aquela mulher transbordava, o caminhoneiro seguiu-a casa adentro.

            O hall era pequeno, e ainda faltavam os móveis que os funcionários estavam a descarregar, mas dava uma boa primeira impressão. As paredes pintadas de azul-bebê pareciam diferir totalmente daquela que lá iria morar. Sentindo um delicioso cheiro de chocolate ao leite, o homem logo localizou a cozinha, onde Barbra já preparava duas xícaras de chocolate quente. Entregando o recipiente a ele, brindou à casa nova e bebericou a bebida fumegante. Ele, então, perguntou-lhe se ela não teria interesse em mudar a cor das paredes, uma vez que achava que azul-bebê não era uma cor que combinasse com ela, e ainda sugeriu um pintor de sua confiança para o serviço. Ela deu uma risada, agradecendo mas declinando da sugestão, dizendo que não iria mudar por ali, pelo menos por ora. Levantando-se rapidamente, foi instruir os peões sobre onde pôr cada móvel. Ao se levantar da mesa rapidamente, deixou à mostra a cinta-liga preta que usava por baixo do jeans rasgado.

            Barbra mostrou ao peão que carregava sua penteadeira que aquele móvel iria para o quarto principal, ao lado esquerdo da cama, e fez sinal para que ele a seguisse até lá. O quarto era amplo e iluminado; as janelas abertas deixavam entrar alguns raios de sol que conseguiam trespassar o muro alto que havia ao fundo da casa. Lá, já estavam a cama de casal, o criado-mudo de marfim e as prateleiras do closet, que já haviam sido instaladas. Ela indicou exatamente o local em que queria a penteadeira e, ao outro peão que adentrava o cômodo, apontou o fundo do closet como o lugar do espelho de corpo inteiro que ele carregava. O caminhoneiro entrou no quarto, a fim de conferir o trabalho de seus funcionários e perguntou à Barbra:

            - Satisfeita com o nosso serviço, madame?

            - Bastante, querido! Vocês foram bem cuidadosos com meus pertences! Da última vez que me mudei, tive alguns móveis danificados e fiquei consternada! Claro que processei a empresa, mas nada pagaria o valor sentimental deles!

            - Não se preocupe, madame! Eu sempre me certifico de que a mobília que transportamos esteja sem nenhum dano quando a entregamos!

            - Muito obrigada, querido! Vocês foram impecáveis! – disse ela, dando um beijo no rosto do caminhoneiro, em agradecimento.

            Ele ficou vermelho e sem graça. Gritou, então, algumas palavras de ordem a seus funcionários. Ambos saíram do quarto e, chegando à sala, sentaram-se no sofá de camurça marrom que estava meio coberto por uma lona azul.

            Barbra perguntou ao motorista se ele morava há muito tempo naquela cidade. Com orgulho, afirmou que nascera ali e que ali morara toda a vida. Ali, se casara, enterrara seus pais e avós, tivera seus cinco filhos e começara um negócio próprio depois de diversos empregos. Era feliz ali, mesmo que a vida não lhe reservasse expectativa de futuro nem mais dinheiro.

            Depois de ouvir toda a vida do caminhoneiro, Barbra respirou fundo, levantou-se do sofá rapidamente e correu à cozinha dizendo que iria coar café para ele. Dessa vez, ao se levantar, a regata preta que ela usava revelou o sutiã preto estampado de bolinhas brancas que ela usava naquele dia. Controlando-se para não demonstrar excitação, o caminhoneiro disse que não era necessário preocupar-se com ele, que ele já estava bem alimentado, mas Barbra já vinha da cozinha com uma xícara de café, um vidro de adoçante e um prato com alguns pãezinhos doces. Ambos comeram os pães e, ao perceber que todos os móveis já estavam em seu devido lugar, agradeceu a todos, beijou cada um no rosto, e deu-lhes o dinheiro correspondente à entrega.

            Aparvalhados, todos balbuciaram palavras de agradecimento e se retiraram vagarosamente. Barbra os conduziu à porta e agradeceu mais uma vez pelos serviços. Feitas as honras de despedidas, os varões subiram na boleia do caminhão e saíram acenando para a cliente satisfeita.

            Aquela linda mulher já fizera valer o dia deles. Ela não ligava para os olhares babões – se achava bonita mesmo, sabia que era voluptuosa e elegante, então queria ser vista, e comida por todos - com os olhos. Sim, os olhos que invejavam sua beleza. Sempre fora acostumada a ter todos os homens babando por ela. Fingia interesse, e até prazer, com seus brinquedinhos - os garotões sarados e bronzeados com quem costumava ficar algumas vezes e, depois, descartava. Mas aqueles tempos eram outros: agora queria ser uma mulher séria e incógnita. Estava cansada daquela badalação e movimentação em sua vida.

            Estava decidida a enterrar Lita von Herzog.

    CAPÍTULO 4

            Barbra estava cansada da vida de popstar. Era famosa, tinha muito dinheiro, todos os homens babavam por ela, mas aquilo tudo lhe era inútil. Agora, o que ela mais desejava era uma vida calma e sem muitos sobressaltos.

            Bem, reclamar que algo lhe faltava era impossível - tinha tudo que queria na hora que quisesse, mas estava cansada de tudo que tinha, queria se desfazer de tudo e mudar de vida. Apesar de ter lutado muito para conseguir o estrondoso sucesso que alcançara como cantora, o lado ruim da fama lhe perturbava muito mais que o lado bom a felicitava. Exasperada, depois de um dia tão cansativo, deitou-se em sua cama e suspirou:

            - Pensei que nunca fosse acabar essa mudança! Estou quebrada! Antes, era a Eva que resolvia essas coisas para mim, mas tenho que resolvê-las sozinha agora! Não quero mais glamour! Chega de viver fora da realidade!

            E, dizendo isso, bocejou, encostou-se no travesseiro e dormiu profundamente.

            Na casa ao lado, Marion estava saindo da cozinha com a travessa de lasanha nas mãos, e a levando para a sala de jantar. A travessa estava quente, a lasanha borbulhava e Marion transpirava intensamente. Chegou à mesa, repousou o vasilhame refratário sobre o suporte de madeira, limpou o suor que saía da testa e, dando um profundo suspiro, sentou-se de frente do marido. Joan pegou um grande pedaço de lasanha, serviu-se de suco de tomate e começou a comer, mudo e concentrado no prato.

            Ambos comiam em silêncio – o único som que se escutava era o borbulhar no molho da lasanha no vasilhame refratário. Após um longo período de silêncio, Marion, com a voz rouca, falou:

            - Querido, pode me passar o suco, por favor?

            Sem prestar atenção, Joan pegou a jarra ao seu lado de qualquer jeito e entregou brutamente à esposa. Marion pegou-a bruscamente também, pôs o suco em seu copo e largou a jarra na mesa. O vidro se partiu, e o suco de tomate alagou e enrubesceu a toalha branca da mesa. Joan levou um susto, largou os talheres e, enfurecido, gritou:

            - Que porra é essa, mulher?! Ficou louca?! Limpa isso já, que eu não janto com a mesa suja!

            - Desculpe, não sei o que houve! Não sei onde eu estava com a cabeça...

            - Como você é burra, mulher! Você nunca faz nada certo! Por isso, é à toa assim!

            - À toa?! Eu trabalho o dia todo para deixar essa casa impecável para você, e você vem e diz que eu sou à toa?!

            - Não sabe arrumar porra nenhuma! Se soubesse, não faria este tipo de coisa! Você é uma burra, uma anta! Não sabe nem encher a porra de um copo de suco!

            - Não fala comigo nesse tom! Você não tem o direito de gritar comigo!

            - Tenho, sim! Você é uma imprestável! E eu sou seu marido! Eu que sustento essa casa e seus gastos!

            - Gastos?! Eu não compro uma roupa nova há anos! Eu não gasto nada comigo! Meus maiores gastos são para manter a despensa e a geladeira cheias, para não ter que ouvir você reclamar!

            - Mas gasta demais! Compra só o que não precisa e esquece que temos contas a pagar!

            - Você mal deixa dinheiro suficiente pra pagar todas as contas! Gasta tudo em bebida e jogo!

            - Eu trabalho pra ganhar aquele salário de merda, e tenho todo o direito de gastá-lo como quiser!

            - Cala a boca, seu ordinário! Você não tem o direito de falar comigo assim!

            Joan parou um pouco, pensou e disse, sibilando:

            - Você me mandou calar a boca?

            Assustada, e arrependida do que dissera, Marion levou a mão à boca e tentou negar, mas ele berrou e desferiu-lhe um soco no queixo, jogando-a no chão. Ela se ajoelhou e pediu perdão, mas ele lhe deu outro soco, e ela chorou mais ainda. Cansada de resistir, Marion deitou-se no chão e disse que estava disposta a fazer uma troca.

            A expressão de ódio de Joan se transformou num sorriso maníaco. Ela levantou a saia comprida que usava e deixou a calcinha larga bege à mostra. Ele deu uma gargalhada tenebrosa e começou a tirar o cinto.

            Qualquer coisa para não apanhar novamente dele, era a única coisa que Marion pensava enquanto fazia sexo com Joan.

    CAPÍTULO 5

            Eram quatro da manhã quando o celular de Barbra começou a tocar Going Under, da banda Evanescence. Ela, delicadamente, desligou-o e voltou à posição que estava na cama: sentada, com dois travesseiros no meio das pernas e segurando o ventre.

            - Tenho que me lembrar de reprogramar esse despertador! Não acordo mais nessa hora! Não preciso mais fazer aquilo!

            - Acho que devia pensar melhor, querida... – disse uma sombra que estava escondida na penumbra que a luz do luar fazia pela janela.

            Ela levou a mão à boca, assustada, e perguntou:

            - Como você me encontrou?!

            - Não foi difícil...– a sombra se aproximou dela e revelou-se por inteiro: um homem alto, forte, pele morena, músculos definidos, coberto por uma túnica transparente que nada escondia – Eu estou em todo lugar, a toda hora, e você, melhor do que ninguém,...

            -... Devia saber disso... Eu sei. – completou Barbra, interrompendo-o – Eu ainda não sei por que tento fugir...

            - Você foge porque é burra e prepotente! Não se deve temer a mim, nem aos seus - nós só queremos lhe ajudar...

            - Eu não quero ajuda de vocês! – gritou ela, mas lembrou-se de onde estava, e, sibilando, continuou – Não quero mais você por perto! Eu quero ter uma vida normal!

            - Querida, você nunca poderá ter uma vida normal. Simplesmente porque você não é normal.

            - Sou, sim! Sou normal, como todo mundo!

            - Não é; não é, e sabe muito bem disso. – o homem disse, aproximando mais ainda, até se sentar na beira da cama – Você pode até parecer igual às outras pessoas, mas não é - e deve aceitar a sua natureza!

            - Por que tinha que ser esta a minha sina?

            - É o preço do seu sonho. Você nem hesitou na hora de aceitar a minha oferta, lembre-se!

            - Não pensei que fosse ser tão difícil assim!

            - Acha que é fácil sermos nós? Você deve superar essa crise ridícula de consciência e se entregar ao seu sacerdócio!

            - Mas eu não quero mais matar para viver!

            - Ssshhh... – o moreno pôs o dedo indicador em riste e encostou-o nos lábios de Barbra – Não fale alto essas falácias, querida; as paredes têm ouvidos, e podem acreditar no que dizes tu...

            Ela bufou, zangada, e virou o rosto depressa. O homem agarrou o pulso dela e apertou-o firmemente. Barbra reclamou de dor, mas ele pouco se importou. Levando-o para perto de sua boca, sibilou, em latim1:

            - Mostre-se a seu pai!

            Um caroço apareceu no pulso e cortou a pele, aparecendo um microscópico verme negro. O animal tinha dentes serrilhados e amarelados, corpo cilíndrico, pele viscosa e brilhosa e uma pequena cauda anelada dividida em segmentos circulares. O misterioso moreno sorriu para o verme, e lhe confidenciou, num sussurro quase inaudível:

            - Cuide bem dele, meu filho. Não o deixe falhar!

            O negro verme pareceu lhe fazer uma reverência e, rapidamente, entrou pelo buraco que fizera, o qual se fechou e cicatrizou-se quase instantaneamente. O homem sorriu mais uma vez. Barbra, então, o fitou com profundo ódio. Controlando-se para não extravasar toda a sua raiva, disse:

            - Eu sei da minha função. Não vou falhar! Afinal, trabalho dado é trabalho executado.

            - Muito bem, querida! – ele disse, abrindo outro sorriso - Então, prossiga com sua obrigação! Mas lembre-se: se você falhar, não teremos muito o que fazer.

            - Não vou falhar, já disse! - retrucou, rispidamente.

            - Assim espero, querida!

            E desapareceu no ar, tão rapidamente quanto como entrara.

            Barbra respirou aliviada, mas ainda estava preocupada. Saiu da cama, foi até a penteadeira, abriu a terceira gaveta e pegou o maço de cigarros e o isqueiro Zippo. Abriu a janela, acendeu um cigarro e deu uma tragada. Apesar de odiar aquele gosto amargo do cigarro, a nicotina a viciara. Baforando pelo lado de fora do quarto, Barbra pensava e divagava:

            - Como vou me livrar dele? Ele sempre me encontra! Eu não quero mais isso! Não quero essa vida! Não quero, não quero! Quero ser normal! conviver com os humanos sem ter de matá-los! Quero ser... ser... humana...

            Ela deu outra tragada no cigarro, parou um pouco e continuou:

            - Eu quero ser humana! Não quero ser um monstro! Eu quero ser quem eu sou! Quer dizer, quem eu quero ser, porque, atualmente, eu ainda sou um monstro. É isso! Ninguém mais vai sofrer por minha causa! Eu vou ser alguém completamente diferente! E essa cidade é a minha chance de mostrar ao mundo que eu posso ser mulher de verdade!

            E, assim, apagou o cigarro no cinzeiro de bronze que estava no parapeito da janela, e decidiu tomar uma atitude radical para mudar sua vida.

    CAPÍTULO 6

            A sala de jantar estava escura. A única luz existente vinha do vão entre as cortinas da janela, e os raios se concentravam perto de um dos pés da mesa de jantar. E ali, encostada no pé da mesa, estava uma cabeça loira. O rosto era bonito, mas envelhecido: a pele era lisa e sem rugas, mas flácida e opaca; os lábios estavam secos e mordidos; as pálpebras estavam pesadas e pretas, assim como a parte inferior dos olhos, mostrando terríveis olheiras. Os olhos estavam fechados e uma lágrima escorria pelo olho direito. De repente, as pálpebras se abriram e revelaram um par de lindos olhos verdejantes. Pareciam duas esmeraldas, mas não eram brilhantes e lapidadas; eram esmeraldas brutas e cobertas de poeira, e não deixavam qualquer sinal de beleza ou de euforia transparecerem. 

            Marion começou a se levantar vagarosamente, procurando fazer o mínimo de barulho possível – afinal, não queria acordar seu carrasco. Com dificuldade, pôs-se de pé e tentou ajeitar a blusa regata que ele rasgara novamente – já era a terceira vez.

            Por um instante, pensou em jogá-la no lixo, mas lembrou-se que quase não tinha roupas que lhe servissem. Desde que se casara, emagrecera mais de dez quilos. Marion conseguiu se arrastar até o sofá, e por cima dele se jogou, vencida pela dor e pelo cansaço. Ali, desolada, começou a tentar se recordar de quando ela foi feliz.

            Vinte e dois anos antes, estava na pracinha, vendo uma apresentação da banda da escola ao ar livre, junto de Vivienne, sua melhor amiga. Marion, então, tinha dezenove anos, era loira, tinha os cabelos cacheados por babyliss, usava de blush, batom vermelho-claro e rímel terracota. Vestia uma saia de cintura alta preta, uma blusa branca com babados e uma sandália preta de salto alto. A apresentação da banda era uma das atrações da formatura de ensino médio que a escola estava promovendo. Marion estava sorridente e fofocando muito com Vivienne. As duas falavam e olhavam sem parar para um homem em especial.

            Em um dos lados da praça, havia uma pequena borracharia, e os mecânicos haviam parado seu trabalho para prestigiar o espetáculo. Vivienne e Marion olhavam para o mais musculoso e moreno deles. Ele era alto, forte e muito sexy. Ambas babavam e deliravam por aquele deus grego, enquanto davam risadinhas indisfarçadas. Sabiam que seu nome era Joan, que ele tinha 26 anos, que era solteiro e que era funcionário da borracharia do centro de Cassandra, a iWheels.

            Qualquer um que precisasse de seus serviços estava em boas mãos. Ele era muito profissional e muito elogiado por todos. As mulheres adoravam serem atendidas por ele, não exatamente por conta de seu profissionalismo. Era considerado o supra-sumo da beleza masculina da cidade de Cassandra.

            Marion e Vivienne eram tímidas e nem se atreviam a se aproximar. Marion, então, decidiu agir por conta própria, e foi chegando perto dele, disfarçadamente. Quando já bem próxima da oficina, teve um ímpeto de desistir, mas logo alguém lhe puxou pelo braço e, ao olhar, era ele. Joan indagou-a sobre o porquê de ela e Vivienne ficarem encarando-o. Ela até tentou disfarçar e desmenti-lo, mas foi impossível: confessou-lhe que elas estavam interessadas em conhecê-lo melhor. Joan deu uma risada, puxou-a para perto de seu rosto e sussurrou-lhe ao pé do ouvido:

            - Não querendo se grosseiro, mas não quero nem saber da sua amiga... A garota mais linda daqui é você! - Ela sorriu, encabulada, e ele continuou – Eu gosto das quietinhas...

            Marion continuava envergonhada, e sentia que ruborizava a cada palavra, e tentou falar:

            - Mas você merece alguém melhor do que

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