Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

A Herança
A Herança
A Herança
E-book274 páginas3 horas

A Herança

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Adiel apontou-me um dedo e prosseguiu: - Estou falando do seu ego, Francisco, aquele cuja tarefa será providenciar para que você assuma uma personalidade própria e uma individualidade única, que o diferencie de todas as outras pessoas. Assim sendo, usando as mesmas ferramentas que chamamos de atração e repulsão, ele conseguiu fazer com que você passasse a atrair as coisas que o ajudariam a formar sua personalidade, e que se transformariam em características muito próprias suas. Dessa forma, você começou a usar a capacidade de atração que seu ego lhe conferia para buscar tudo aquilo que, no seu modo de ver, lhe daria o prazer que procurava. Poderiam ser posses, poder, amigos, seguidores, dinheiro ou qualquer outra coisa que o fizesse feliz. Por outro lado, usando a ferramenta da repulsão, passou a repelir tudo o que lhe parecia perigoso, indesejável ou que pudesse ameaçar sua existência e sua privacidade, ou de seus familiares. Com um gesto levemente teatral, Adiel prosseguiu: - Nascia, então, o Francisco que o mundo conhece, dono de uma personalidade ímpar e disposto a defender sua individualidade e sua privacidade com unhas e dentes. Sua explanação era tão vigorosa que quase me vi de armadura e espada, montado num cavalo branco, partindo para um sangrento combate. Rapidamente, lembrei-me de que não possuía armadura nem espada e que jamais me aproximara a mais de dez metros de um cavalo. Voltei, portanto, a concentrar-me no que estava ouvindo. - E por que isso, Francisco, por que a busca desenfreada do prazer e a luta para manter a sua segurança e privacidade? Mais uma vez, eu não fazia nem idéia. - Porque, meu amigo, quando sua alma incorporou-se ao seu ser, no momento do nascimento, ela ainda trazia, muito vívidas, as lembranças da felicidade infinita em que vivia, enquanto repousava no seio do Pai. Só a partir do momento em que o ego passou a atuar, trazendo-a para a realidade humana, é que ela começou a se afastar da Verdadeira Realidade. Por isso, vocês costumam dizer que as crianças “conversam com os anjos”, ou “vêem coisas que os adultos não podem enxergar”. Tudo resquício da Verdade que nós já vivemos, meu amigo...tudo resquício. Desde então, ela busca voltar de alguma forma ao Reino dos Céus, ou Paraíso, como quiser chamar, onde desconhecia doenças, sofrimentos, privações ou necessidades. Você, então, apenas reflete esse anseio da sua alma, procurando intensamente tudo o que julga que lhe dá prazer, para tentar reproduzir as condições perfeitas em que vivia antes do nascimento. Infelizmente, o meio de que você dispõe para obter essa satisfação é puramente material, ou seja, absolutamente limitado e incapaz de suprir as suas expectativas. Na verdade, não existe nada de errado com essa busca. O problema é quando a frustração dela resultante se transforma em danos para os seus semelhantes, sem que haja a menor consideração para com eles. Aí nascem a ambição, a avareza, o egoísmo, a vaidade, a violência, as agressões, o ciúme, o ódio e todas as demais características egóicas, infelizmente tão presentes e dominantes nos seres humanos desta dimensão. Eu tinha que reconhecer que tudo aquilo era muito impressionante, e que a performance de Adiel, mais uma vez, era fantástica. Ele prosseguiu: - No momento em que você coloca o seu próprio bem-estar acima da felicidade dos seus irmãos, o ego passa a ter a força suficiente para “prender” sua alma com amarras cada vez mais fortes e a cerrar-lhe os olhos com vendas que a impedem de enxergar a Realidade em que vivia. Ela, a sua alma, passa a ficar cada vez mais isolada e mais presa à dimensão em que vivemos. Torna-se triste; desaparecem a alegria e a paz que a caracterizavam, e ela acaba por esquecer sua própria origem divina. Vemos isso se expressar no rosto da criança à medida que o tempo passa, e ela fica cada vez mais envolvida pela realidade humana, perdendo aquela pureza que irradiava ao nascer, trocando-a, gradualmente, por sentimentos muito mais desagradáveis. A
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de nov. de 2015
A Herança

Autores relacionados

Relacionado a A Herança

Ebooks relacionados

Corpo, Mente e Espírito para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de A Herança

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    A Herança - Fabiano Da Fé

    A HERANÇA

    UMA FICÇÃO BASEADA NO TEXTO DAS CARTAS DE CRISTO

    FABIANO DA FÉ

    SUMÁRIO

    Estamos numa época em que o interesse pela busca do autoconhecimento e da verdade espiritual aumentou significativamente em todo o mundo.

    Isso se reflete nas prateleiras das livrarias e em sites da Internet, abarrotados de títulos que versam sobre misticismo, esoterismo, bruxaria, artes adivinhatórias, autoajuda e semelhantes,

    Normalmente, porém, são quase todos um tanto áridos – como não poderiam deixar de ser - o que, na prática, diminui bastante o interesse de boa parte do público mais jovem e daqueles que buscam uma literatura mais leve e divertida.

    Este trabalho procura, justamente, abordar os temas espirituais que nos são ensinados pelos Grandes Mestres, particularmente por Jesus Cristo, em suas Cartas, de uma forma agradável e bem-humorada, sem desviar, contudo, o foco desses mesmos ensinamentos.

    Algumas obras foram utilizadas como base para a estrutura dos argumentos empregados, como alguns clássicos do misticismo, com destaque para A Doutrina Secreta de Helena Blavatski, que foram analisados à luz de obras fundamentais da humanidade, como a Bíblia Sagrada (Antigo e Novo Testamentos), o Livro dos Espíritos, de Alan Kardek, e trechos traduzidos dos Upanishad, para citar algumas, mais consultadas.

    Outras fontes de conhecimento também importantes poderiam ser incluídas, se o acúmulo de informações não viesse a comprometer o próprio objetivo deste trabalho. Claro está, no entanto, que fragmentos luminosos dessas inúmeras obras constituíram um pano de fundo mais que importante para a elaboração de muitos dos temas aqui desenvolvidos. Cito, porém, a colaboração trazida pelo livro Ciência e Fé em harmonia, do professor Felipe Aquino, Ed. Cleopas, 4ª Ed., 2007).

    A peça principal, no entanto, foi o documento As Cartas de Cristo, divulgado pela Editora Almenara, tanto em livro quanto pelo site www.cartasdecristobrasil.com.br, que acabou por se transformar na espinha dorsal de todo o modesto texto apresentado a seguir.

    Recomendo veementemente a leitura dessas Cartas, que considero definitivas.

    O restante foi extraído de anos e anos de dedicados estudos sobre centenas de obras das mais diferentes origens e autores.

    Se um só leitor se interessar pelos ensinamentos aqui apresentados, e fizer deles um ponto de partida para um conhecimento mais aprofundado, meu objetivo terá sido alcançado.

    Naturalmente, creio ser importante ressaltar que, como obra de ficção, todas as personagens, fatos e lugares são puramente imaginários, sendo qualquer semelhança com a realidade mera obra do acaso, se é que ele existe.

    Tampouco é pretensão minha criar doutrina sobre os assuntos aqui abordados. Reconheço minha insignificância para tanto.

    Espero, apenas, compartilhar o pouco conhecimento que reuni ao longo de muitos anos de estudo com quem quer que seja um buscador da Verdade.

    O AUTOR

    ÍNDICE

    A HERANÇA............................................................07

    UMA VISITA INESPERADA.....................................30

    ADIEL.......................................................................59

    UMA EXPERIÊNCIA EXTRAORDINÁRIA.............114

    PRIMEIRA VIAGEM................................................147

    MARISA...................................................................204

    SEGUNDA VIAGEM ...............................................244

    DESPEDIDA............................................................277

    SAMUEL..................................................................335

    A CATÁSTROFE.....................................................389

    ITA...........................................................................403

    E A VIDA SEGUE....................................................411

    DEDICATÓRIA

    Dedico este pequeno esforço literário àqueles que, ao longo de séculos e milênios, sacrificaram suas vidas para mostrar-nos a Verdade.

    A HERANÇA

    Mais um cansativo dia de calor escaldante chegava ao seu final. Um Sol abrasador, já bem próximo ao horizonte, obrigava-me a cobrir os olhos, protegendo-os, enquanto descia a comprida e íngreme avenida que ia terminar, ao longe, na orla de uma pequena lagoa, cercada de casinhas construídas em madeira e pintadas nas cores mais vivas e contrastantes que eu já vira.

    A reverberação em tons avermelhados do poente refletia-se em cheio no espelho d’água quase imóvel, o que lhe conferia um aspecto um tanto sangrento, só amenizado pela sua placidez interiorana.

    Pequenos barcos de pesca cortavam aquela aquarela líquida, recolhendo redes e velas, numa rotina certamente já centenária.

    Ao longe, ouviam-se os gritos trocados pelos pescadores, provavelmente anunciando o resultado do dia trabalhado ou, quem sabe, comentando sobre o tempo e as condições do mar, que parecia observá-los por sobre a estreita península que o separava da lagoinha.

    Quebrando o encanto bucólico da paisagem, ruas asfaltadas entrecruzavam-se ao meu redor, repletas de carros ruidosos e bicicletas enfeitadas, todos ansiosos pelo regresso ao lar.

    De quando em quando, uns poucos ônibus fumegantes, verdadeiros formigueiros humanos, debatiam-se em meio à corrente de veículos menores, que os cercavam por todos os lados.

    Raros eram os pedestres àquela hora, todos saltando de sombra em sombra, buscando refúgio contra os raios solares esturricantes.

    Árvores multicoloridas formavam a moldura desse quadro raro e inusitado para mim, acostumado que estava à aridez e à insensibilidade das grandes metrópoles.

    Não podia deixar de reconhecer que a cena, no seu todo, era bastante agradável ao olhar, o que me ajudava a superar o esforço que fazia sob aquela temperatura exageradamente alta e tornando mais leve a carga da missão que deveria cumprir, dentro de pouco tempo.

    O que me trouxera à localidade de Água Branca fora um acontecimento ao mesmo tempo triste e inesperado.

    O súbito falecimento de minha avó paterna, viúva há muitos anos, impusera-me uma série de compromissos legais e familiares que, nessa tarde, aparentemente tinham-se encerrado.

    Claro que muita coisa fora facilitada pelo tamanho mínimo de minha família e pela distância que sempre separara a velha senhora dos poucos parentes e amigos que lhe restaram nesse mundo.

    Ita – assim a chamávamos – fora, em vida, uma anciã discretíssima e autossuficiente, que optara por viver isolada na sua bela casa, mergulhada em estudos literários e musicais, que a transformaram, com o tempo, em excelente pianista e respeitada erudita.

    Em raríssimas ocasiões recebera visitas. Na verdade, nunca fizera questão delas, tendo, algumas vezes, deixado isso bem claro, para alívio de muitos e lamento de poucos.

    A polpuda pensão herdada do meu avô, um atuante empresário local, além de algumas aplicações muito adequadas, garantiram-lhe um final de vida confortável e elegante, tornando bem suportável sua desejada misantropia.

    A partilha dos bens refletira com precisão o seu caráter. Tudo muito equilibrado, imparcial e justo, de forma a não provocar disputas ou descontentamentos.

    Seus herdeiros, além de mim e minha irmã, resumiram-se a algumas poucas obras sociais e pessoas humildes que, de alguma forma, tinham conquistado o seu apreço.

    Para mim, seu único neto, foi destinada a residência que ocupara em vida, com todos os bens nela existentes. Para minha irmã, uma polpuda quantia em dinheiro, além das raras joias que usara, correspondentes ao valor da minha parte na herança.

    Dessa forma, ao fim desse dia, após a cremação em que insistira veementemente, todos se despediram satisfeitos e com uma incômoda sensação de remorso pelo pouco contato que mantivemos com Ita nos últimos anos, quando ela passou a representar uma espécie de fantasma familiar, pelo qual todos nós nutríamos respeito, mas que preferíamos não avistar.

    Tendo deixado a ladeira e tomado uma série de ruas laterais, cheguei, enfim, à frente do pequeno e bem cuidado portão de entrada que separava a calçada de um largo pátio, formado por cacos de cerâmica avermelhados.  Mais além, erguia-se a porta de madeira envernizada que dava acesso à residência, pintada num branco impecável, com janelas de madeira tão limpas e brilhantes que chegavam a refletir os carros por trás de mim.

    Busquei, nos bolsos da calça, o chaveiro que recebera do advogado da família e, por alguns instantes, sopesei-o, fazendo retinir as poucas chaves que pendiam de uma argola de aço.

    Com a incômoda sensação de estar invadindo um local que, apesar do testamento, jamais me pertenceria, abri o cadeado do portão e dei meu primeiro passo em direção à porta.

    Momentaneamente parado, como se meus pés se negassem a acompanhar-me, olhei ao meu redor. Simetricamente dispostas, duas laranjeiras estendiam suas sombras, como se quisessem proteger-me do sol abrasador. Vim a descobrir, mais tarde, que um dos maiores prazeres de Ita era ficar à janela, vendo a molecada do bairro colher e chupar os seus frutos dourados, matando depois a sede numa torneira de água límpida e refrescante, canalizada desde uma fonte perene, situada em algum lugar nos fundos da casa.

    Tomando alento, cruzei o pátio e subi os três degraus que levavam à entrada principal. Com o coração batendo forte, introduzi a chave maior na fechadura e girei-a, destravando-a com facilidade.

    Antes de abrir a pesada porta, examinei com admiração as oito almofadas que a constituíam, cada uma delas com uma figura cuidadosamente esculpida e que, apesar de não ter a menor ideia do que representavam, passaram-me uma estranha sensação de algo profundo e significativo.

    Ali estava eu, tremendo dos pés à cabeça, olhando para todos os lados sem nada ver, esmagado pelo peso das histórias que circulavam na família em tom de profundo mistério e que tinham, naturalmente, seu foco principal na figura de Ita.

    Sem que eu pedisse, e apesar dos meus esforços em afastá-las da memória, esvoaçavam em torno de mim, como morcegos num sótão escuro, as lembranças mais estapafúrdias e assustadoras que povoaram minha vida desde a infância mais remota.

    Lembrei-me dos comentários tenebrosos, feitos por um tio, irmão de Ita e também já falecido, de que minha avó praticava bruxaria em casa; que passava os dias ao redor de uma fogueira, onde misturava numa enorme panela os ingredientes mais estranhos, enquanto murmurava palavras cabalísticas e incompreensíveis. Outros diziam que ela jamais dormia, vagando à noite como alma penada. Houve até quem garantisse que já ouvira seus gritos solitários, pronunciados em linguagem que não podia ser deste mundo.

    Tudo isso, e muito mais, ocorreu-me num átimo de segundo, fazendo com que eu sentisse meu coração como um cubo de gelo, mergulhado numa massa trêmula e viscosa, na qual meu corpo parecia ter-se transformado.

                Não sei exatamente quanto tempo permaneci ali parado, meditando sobre tudo o que já ouvira. Só sei que, a certa altura, a curiosidade começou a renascer em mim e, com ela, uma certa dose de coragem, impulsionando-me, ambas, a prosseguir na minha insólita expedição ao âmago da casa que um dia fora de minha avó.

                Finalmente, entrei.

    Passeando o olhar cuidadosamente à minha volta, dei-me conta de que estava numa espécie de vestíbulo, na companhia de um vetusto mancebo, ainda depositário de uma sombrinha cor-de-rosa e uma capa de chuva bege.

    Bem à minha frente, uma porta entreaberta conduzia à grande sala de refeições, usada, em épocas razoavelmente remotas, para reuniões de família que quase levavam Ita à loucura.

    Aproximei-me da comprida mesa de madeira e, respeitosamente, passei a mão sobre o tampo. Sim, ainda era o mesmo móvel de carvalho daquele tempo. O contato com a madeira continuava agradável e acolhedor.

    Ao longo da parede à direita, um aparador também de carvalho repousava sua antiguidade. Sobre ele, era possível ver a célebre coleção de estatuetas de Ita, além de dois vasos de porcelana colorida, que exibiam botões de rosas brancas, frescas e perfumadas. Uma pequena moringa de barro completava a decoração.

    Voltei, então, meus olhos para cima.

    Do alto das paredes, pintadas de um azul suave, quadros com nítida inspiração sacra pendiam enormes, mas em perfeita harmonia com o ambiente, atestando o reconhecido bom-gosto de Ita.

    O único toque de individualidade consistia de um óleo que a retratava e ao meu avô, ainda jovens. Ele, sentado, trajando um bem talhado terno cinza-escuro, enormes bigodes com as pontas recurvadas e um olhar severo que quase desmentia sua fama de seresteiro e bom copo. Ela, em pé ao seu lado, num vestido azul escuro com detalhes brancos e a aparência deslumbrante que sempre a caracterizara. Pousava suas mãos sobre os ombros de um rapazola de ares travessos, usando calças curtas e gravata borboleta. Nele reconheci meu pai, prematuramente falecido num acidente de trânsito.

    Com o coração um tanto pesado pelas recordações familiares, dirigi-me à parte da casa que sempre me encantara. À minha esquerda, portas corrediças de vidro separavam a sala onde me encontrava do elegantíssimo jardim de inverno, que era considerado a obra-prima de minha avó. As cortinas brancas e diáfanas estavam afastadas, como que para permitir a passagem da claridade.

    Depositei sobre a mesa a pequena maleta que trouxera com alguns poucos pertences para viagem e, quase me persignando, entrei naquele lugar maravilhoso, que se tornara uma das raras e agradáveis memórias de infância que me restavam da casa.

    A vasta área, totalmente cercada por paredes forradas por bem aparada hera e recobertas de flores, recebia iluminação natural vinda do alto, amenizada por uma enorme claraboia, que resplandecia numa luz suave, perfumada, fresca e acolhedora.

    Ao centro, um jardim maravilhosamente cuidado, onde arbustos e outras plantas ornamentais circundavam uma pequena fonte, que vertia água sobre pedras alvas e cristais em diversos matizes de rosa e lilás. Bancos de jardim, brancos em sua maioria, espalhavam-se por ali, numa cuidadosa desordem.

    Era, sem dúvida, impossível não se sentir bem naquele lugar.

    Mais ao fundo, o local favorito de Ita: parcialmente separadas do restante do ambiente por biombos indianos, algumas cadeiras austríacas, delicadamente talhadas, cercavam um belo piano branco de famosa marca. Junto à parede da esquerda, uma estante encontrava-se recoberta de livros e discos de música clássica.

    Nada de televisão, telefone ou computadores.

    Era ali que Ida passava o seu tempo livre e onde raríssimas pessoas tinham sido convidadas a entrar.

    Tudo era tão branco e limpo que os contornos e detalhes dos móveis surgiam esmaecidos, como que olhados contra um sol forte.  O conjunto parecia não pertencer a este mundo.

    Um tanto incomodado com esse pensamento, comecei, respeitosamente, a circular pelo local.

    Sem saber bem o porquê, tirei os sapatos e prossegui descalço na minha incursão.

    Todo o final da tarde transcorreu em meio àquelas lembranças.

    Inseguro, coloquei um disco de 78 rotações numa antiga vitrola, sem ter bem a certeza de que conseguiria fazê-la funcionar. Após um intervalo longo o suficiente para fazer-me suspeitar de que fizera alguma bobagem, Mozart encheu gloriosamente a sala, com sua música maravilhosa.

    Era uma das raras obras clássicas que eu conseguia identificar, e até hoje suspeito que Ita deixara tudo preparado, antevendo minha visita.

    A seguir, minha curiosidade levou-me à estante, para saber, enfim, o que minha avó tanto lia.

    Para meu espanto, encontrei livros em inglês, francês, russo e vários outros idiomas, que eu sequer conseguia identificar. Posteriormente, vim a saber que ela se tornara fluente em muitas línguas, como, além das já citadas, o espanhol, o alemão, o italiano, o sueco, o hebreu, o árabe e até o finlandês. Lembrei-me de que Ita, há muitos anos, ensinara-me que esta última não guardava semelhança com qualquer outra língua no planeta, exceto, talvez, o antigo sumério.

    Engraçado! Nunca me esquecera disso.

    Mais admirado fiquei ao verificar que Ita também lia e se expressava em sânscrito e em vários dialetos e línguas mortas já quase desaparecidas.

    Boquiaberto com tamanha erudição, passei a analisar os títulos existentes em português.

    Em destaque, via-se um exemplar traduzido da Bíblia Sagrada. O Corão, o Zohar, os Vedas e demais livros sagrados árabes, judeus e indianos enfileiravam-se na mesma prateleira. Seguia-se a obra completa de Helena Blavatsky e dos principais teosofistas conhecidos. Um alentado exemplar chamado O Livro de Urântia, coberto de anotações a lápis, também se destacava no conjunto.

    Meio tonto, já que nunca cultivara o hábito da leitura, parei minha pesquisa, deixando para tomar conhecimento do restante do acervo em datas posteriores, temendo que elas nunca viessem a acontecer.

    Sentei-me, cansado, num dos bancos de jardim próximos à fonte e procurei relaxar, deixando meus pensamentos vagarem.

    O primeiro que me ocorreu foi sobre a manutenção da casa. Afinal, Ita falecera já há algumas semanas, porém tudo se encontrava na mais perfeita ordem e limpeza. Era impossível encontrar um único grão de poeira em qualquer lugar que se fosse. Não havia parasitas nos jardins e as rosas, sobre o aparador, estavam frescas como se tivessem sido colhidas hoje. Quem, afinal, fazia esse serviço? Nas suas cuidadosas orientações escritas em vida, minha avó, que sempre fora tão cuidadosa quanto aos serviços caseiros, não fizera qualquer observação sobre empregados domésticos ou qualquer pessoa contratada para esse fim.

    Teria sido esquecimento? Ou fora proposital, como tantas coisas que, suspeito, ela tenha feito?

    Resolvi passar a noite na casa, para ver se, no dia seguinte, alguém apareceria para cobrar honorários, ou algo parecido.

    Também me preocupava, e muito, o destino que daria à residência. Passar a viver ali me parecia muito difícil, pois significaria deslocar a família da cidade onde morávamos, com sérias implicações para o emprego de minha esposa, escola dos filhos, etc.

    Por outro lado, vender tudo soava-me como uma heresia. Quem saberia valorar a história que impregnava cada metro quadrado construído? E o que fazer com tantos livros, quadros e recordações? Como calcular o preço de tudo? Levar esses objetos para o meu apartamento seria inviável. Muito pequeno para isso.

    Voltei a considerar a hipótese de viver ali. De imediato, vieram-me as imagens dos meus dois filhos adolescentes. Com certeza, jamais abandonariam os amigos, as festas e principalmente a praia, que frequentavam assiduamente. Não pude deixar de sorrir, pensando no tipo de música que ouviam. Garanto que aqueles ambientes jamais tinham reboado ao som de música eletrônica, funk e outras monstruosidades da moderna sociedade.

    Acho que Ita viria pessoalmente do além e nos colocaria no olho da rua.

    Como naquele instante eu não resolveria absolutamente nada, deixei de preocupar-me com o assunto, empurrando-o também para o dia seguinte.

    Em meio a todas essas considerações, e embalado pelo cansaço da viagem, comecei a ficar sonolento.

    O calor do dia dera lugar ao frescor do início da noite, e eu me levantei para tomar as providências necessárias ao pernoite.

    Atravessando a sala de jantar, peguei minha maleta sobre a mesa e cruzei a enorme cozinha ao lado, tomando a ala que levava aos quartos de hóspedes, aos banheiros e às dependências de serviço.

    Eram quatro, os dormitórios. O curioso é que cada um deles se caracterizava por determinada cor, que estava presente na tinta das paredes, nas roupas de cama, nos azulejos dos banheiros e até nas toalhas utilizadas. O maior deles era azul, e os demais, amarelo, rosa e violeta. Tudo escrupulosamente limpo e funcionando perfeitamente.

    Escolhi o violeta, não só pela cor, que era a minha favorita, como por se encontrar mais perto da porta de saída do que os outros.

    Senti-me invadindo toda aquela organização mas, apesar de certo constrangimento, fiz a higiene pessoal e preparei-me para deitar.

    É bem verdade que, a princípio, uma ponta de receio tomou conta de mim, como se uma serpente se insinuasse silenciosamente entre as cobertas.

    Permaneci atento a todos os pequenos ruídos que escutava, procurando identificar suas origens. Mais de uma vez, sentei-me bruscamente, julgando ter ouvido passos, o rangido de uma porta ou uma fechadura sendo forçada. Até um gemido pareceu-me soar, e vindo do quarto vizinho!

    Aquela situação estava me matando. Meus cabelos, de tão arrepiados, chegavam a doer. Intensos calafrios cruzavam o meu corpo.

    Todas as histórias que ouvira sobre Ita tomaram vida, subitamente. Seria ela, realmente, uma bruxa? Estaria seu espírito vagando pelo quarto, preparando peças para assustar-me?

    Finalmente, resolvi tomar uma providência, ou não chegaria vivo ao dia seguinte.

    Respirei fundo, juntei toda a coragem que possuía e, como um guerreiro que parte para a batalha, acendi a luminária de cabeceira, mergulhei no travesseiro e puxei as cobertas até cobrir a cabeça!

    Seja pelo imenso esforço que me custou tamanho ato de bravura, ou por qualquer outro motivo, o fato é que adormeci, num sono pesado e sem sonhos.

    Depois de um

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1