Corina
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Sobre este e-book
Este livro traz a biografia romanceada de Corina, baiana que se mudou ainda criança para Goiás. Os fatos narrados abrangem o período de 1923 a 2005 e mostram aspectos da migração de sua família da Bahia para o Estado de Goiás. A protagonista, Corina, é uma menina anêmica que esteve à beira da morte, mas sobreviveu à doença e se tornou a matriarca de uma enorme família. Na velhice, Corina costumava relembrar e repetir os fatos de sua vida para os netos, o que inspirou a escritora, sua neta mais velha, a registrá-los no livro agora disponível em forma de ebook.
Hilda Magalhães
Hilda Magalhães é uma pesquisadora brasileira.Doutora em Teoria da Literatura pela UFRJ, com pós-doutoramento na Université de Paris III e na EHESS(França), é autora de dezenas de obras na área de Literatura.
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Corina - Hilda Magalhães
CAPÍTULO I- UMA HISTÓRIA, UMA VIDA
O navio singra as águas profundas do Mar Mediterrâneo, deixando para trás as últimas imagens da Grécia. Estamos chegando a Israel, alguém avisa. Dentro de algumas horas estou dentro da Igreja da Natividade, o lugar sagrado onde Jesus nasceu. Espanto-me ao saber que o local sagrado é visitado com frequência por ladrões que surrupiam as prendas que os visitantes, reproduzindo o gesto dos reis magos, trazem para o menino Jesus.
Pouco depois, estamos andando nas ruas estreitas de Jerusalém, em busca dos traços da crucificação de Cristo. Com veneração, aproximo-me do local em que a cruz foi fincada e beijo aquele lugar sagrado não com os lábios, mas com a alma. Nas mãos trago um molho de rosários que, peço, sejam abençoados. Com eles vou presentear minha mãe, minha sogra e minha avó Corina, pessoas pelas quais rezo, estendendo os pedidos de graça, saúde e paz, e que Deus nos abençoe a todos, amém
Descemos do altar da crucificação e nos aproximamos da lápide que marca o local onde Cristo foi banhado e depois seguimos para o Santo Sepulcro. É um cômodo minúsculo localizado mais ou menos no centro do Templo, guardado dia e noite, em vigília, por um sacerdote de enorme barba, coberto, da cabeça aos pés, por uma veste negra.
Passo a mão trêmula no local onde Cristo depositou sua cabeça e todo o meu corpo e minha alma como que renascem. Quanto tempo teria durado aquele momento? Não saberia dizer. Mas de uma coisa estava certa: eu jamais seria a mesma depois daquela viagem mística. E, a partir daí, todo o trajeto ganhou um novo sentido: tudo o que eu via me ensinava muito mais do que o puramente histórico, o puramente literário ou o puramente científico. Aceitei com admiração e humildade as pirâmides do Egito, bem como as ruínas de Atenas e de Roma. Fazendo o caminho de volta, enterneci-me com as pequenas ilhas gregas, postais de uma época que nunca vivemos, mas que, historicamente, pertence a todos nós. Emocionei-me com as ruas de Florença e com as estátuas da Basílica de São Pedro.
Mas, de repente, eu senti que precisava voltar. Eu precisava voltar, e havia uma urgência nisso. Sentia saudades do sol, dos familiares, lembrava-me de meu avô, que havia ficado doente e estava de cama, e de minha mãe, que, viúva, havia deixado a fazenda e se mudado para a cidade. E, embora tenhamos permanecido apenas dois anos na França, esse tempo agora parecia enorme demais: descobri-me filha do sol e precisava voltar.
Sim, precisava voltar, mas voltava agradecida pelo aprendizado que o Velho Mundo havia me proporcionado e, por isso, quando desci as escadas douradas da Sorbonne pela última vez, o fiz com respeito. Desci cada degrau lentamente, enquanto entoava, em voz muda, a prece dos pós-doutores: que eu não coloque a razão acima de tudo, porque a vida é mais larga do que a luz da razão; que eu não menospreze os sentimentos, porque um profissional sem emoção não passa de um autômato; que eu não petrifique a intuição e a imaginação, porque um pesquisador que não possa criar não passa de uma fraude; que eu jamais me esqueça de que o diploma certifica o aprimoramento do intelecto, mas não o do ser humano, que é muito mais do que isso: é também sentimento, é também criação, é também sensação e espiritualidade. Que eu não me esqueça, finalmente, de que faço parte de uma rede cósmica e tudo que eu fizer contra ela será a mim que o estarei fazendo. Amém.
Num ensolarado dia do mês de maio de dois mil, o avião que me trazia aterrissou no chão de Goiás. Sei que voltei mudada, porque, como diria Drummond, perpassava em mim um novo sentimento do mundo, e, por isso, quando revi as pessoas que deixamos no Brasil, senti que o meu abraço agora era mais firme.
Percebi, entretanto, desde logo, que a viagem não estava concluída, apenas o roteiro havia mudado. Não leio mais Guimarães Rosa. Nem Clarice Lispector. Continuo admirando-os, mas sinto um grande cansaço, uma enorme lassidão que me impede de continuar a releitura. Em compensação, leio e releio Homero, Borhs, Capra, Morin e Boff. Também sinto urgência de ver minha avó. Antes de ir embora para Mato Grosso, onde dou aulas de Teoria Literária, eu a visito na Fazenda Funil, no Município de Silvânia, no Estado de Goiás, numa casa modesta de dois quartos, em que vive com meu avô, ele concluindo sua passagem por este mundo. Dois anos depois, num outubro chuvoso, ele falece e é enterrado em Silvânia, no mesmo cemitério onde jazem os seus filhos Oscar e Joana D'Arc.
Minha vó parece frágil como uma folha caída com os ventos de outono. Até sua roupa, larga e em tons marrons, parece indicar essa estação melancólica, que, em todos os seus signos, indica mudanças. Outubro passa lentamente, a mesma lentidão de novembro e dezembro. Os filhos resolvem vender umas cabeças de gado para comprar uma casa para ela em Silvânia, no Bairro Pedrinhas, na mesma rua em que reside sua filha mais velha, Olinda, minha mãe.
É nessa casa que continua minha viagem. Sou a neta mais velha de Corina e essa é a primeira vez que a visito depois que meu avô faleceu e que ela se mudou para Silvânia. Sei que está totalmente restabelecida. Os problemas de estômago e do coração estão controlados, mas minha mãe me avisa: o médico pediu cuidados especiais, que ela não deve andar sozinha, etc, etc.
Vamos as duas, minha mãe e eu, vê-la. Em menos de dois minutos fazemos o pequeno trajeto que separa as duas casas, entremeadas por duas ou três residências. Minha mãe leva nas mãos o copo de vitamina que as duas tomam, pontualmente, às três da tarde, uma mistura que inclui leite de vaca e de soja, fruta, mel, linhaça, chá verde, Biotônio Fontoura e óleo de bacalhau. Os passos rápidos e enérgicos de minha mãe expressam o vigor de seus sessenta e poucos anos, nenhum problema de saúde, conforme registram os exames médicos.
Minha avó está de pé na área dos fundos e nos recebe com alegria. Pergunto como está indo, e ela me responde que vai bem, reclama apenas da fraqueza, uma fraqueza sem fim que não a deixa nem mesmo fazer um almoço, sem precisar desligar as panelas e se deitar. Entramos. A casa é enorme. A pintura ainda cheira a novo. O piso é claro e brilhante. Os cômodos, amplos e frescos, recebem a luminosidade do sol através das largas janelas. O seu quarto, uma suíte com um banheiro enorme, tem uma cama de solteiro, um guarda-roupa novo e a máquina de costura, que a acompanha há quase cinco décadas. Ao lado de seu quarto, separados por outro banheiro, há mais dois quartos, sendo um bastante amplo, onde ficam os aposentos do filho caçula, casado com Vanete, pais da pequena Larissa.
No mesmo alinhamento da garagem há uma sala, uma copa transformada em sala de TV e a cozinha, mobiliada com uma geladeira, um armário, uma mesa oval e um bufê de madeira, estes dois últimos trazidos da fazenda depois que minha avó enviuvou. A pia, de granito, ocupa toda uma parede do cômodo e repousa sobre um armário de fórmica laranja, dando um tom pós-moderno à cozinha: era a única cor disponível na marcenaria, explica-me minha avó. Toda essa mobília compõe um curioso conjunto com o piso claro e o revestimento levemente acinzentado das paredes, ornado com um friso cinza brilhante, num tom acima daquele do revestimento. Na parede da pia vê-se um ramalhete de alho ou cebolas em gesso, em tons laranja, marrom e vermelho, um suporte para panos de prato em forma de peixe em tom cor-de-rosa e uma tábua de carne em madeira vermelha.
Minha mãe oferece à minha avó o copo de vitamina, que ela toma na sequência. Enquanto isso, sentamo-nos ao redor da mesa e conversamos amenidades. Então minha mãe se levanta e vai embora, levando o copo vazio nas mãos.
Como está frio, passamos, minha avó e eu, para a área dos fundos. É então que ouço o convite que minha vó, sem perceber, faz a todos que a visitam. É sempre um convite para viajar no tempo, pelo túnel da memória. O sol está quente. Corina tem apenas três para quatro anos,