O Espelho Em Pedaços
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O Espelho Em Pedaços - Robson Gonçalves
O ESPELHO EM PEDAÇOS
Romance de vidas passadas
(edição ilustrada)
Robson Gonçalves
Robson Gonçalves
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O ESPELHO EM PEDAÇOS
O Espelho em
Pedaços
Romance de vidas passadas
3
Robson Gonçalves
4
O ESPELHO EM PEDAÇOS
O Espelho em
Pedaços
Romance de vidas passadas
Robson Gonçalves
Segunda Edição IlustradaC
Edição do Autor
São Paulo, 2015
5
Robson Gonçalves
6
O ESPELHO EM PEDAÇOS
À memória de meu pai,
Oswaldo Gonçalves (1934-2014).
7
Robson Gonçalves
8
O ESPELHO EM PEDAÇOS
Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?
Jesus, em Marcos 3:33.
"Há, portanto, duas espécies de famílias: as famílias por
laços espirituais e as famílias por laços corporais. As
primeiras, duradouras, fortificam-se pela purificação e se
perpetuam no mundo dos Espíritos, através das diversas
migrações da alma. As segundas, frágeis como a própria
matéria, extinguem-se com o tempo, e quase sempre se
dissolvem moralmente desde a vida atual."
Allan Kardec, O Evangelho
Segundo o Espiritismo, cap.
14:8.
"Na casa de meu Pai há muitas moradas; se assim não
fosse, eu vos teria dito"
Jesus, em João 14:2.
"Os Espíritos encarnados num mundo não estão ligados a ele
indefinidamente, e não passam nesse mundo por todas as
fases do progresso que devem realizar, para chegar à
perfeição. (...) Os mundos são as estações em que eles
encontram os elementos de progresso proporcionais ao seu
adiantamento. É para eles uma recompensa passarem a um
mundo de ordem mais elevada, como é um castigo
prolongarem sua permanência num mundo infeliz, ou serem
relegados a um mundo ainda mais infeliz, por se haverem
obstinado no mal."
Allan Kardec, O Evangelho
Segundo o Espiritismo, cap.
3:5.
9
Robson Gonçalves
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O ESPELHO EM PEDAÇOS
Prefácio do autor
Este volume nos leva mais uma vez ao interior fluminense
no início do século XIX. É a continuação da história da
família Gonzaga, do fazendeiro João de Deus e seus filhos,
de sua esposa Antonia, de Cícero e do Arquivista, Conrad
Müller. Mas, ao mesmo tempo, esta é outra história.
A Doutrina Espírita trata de forma ampla e
consistente o tema da reencarnação, tanto quanto outras
crenças espiritualistas, novas e antigas.
Mas o esquecimento do passado é uma peça
doutrinária intrigante e mais complexa do que pode parecer à
primeira vista. Sabemos que ele é, por assim dizer,
terapêutico e, via de regra, compulsório. Mas, quando
recuperamos memórias de vidas passadas, como é que
recontamos nossas histórias? Como remontamos o quebra-
cabeças?
É sabido que a maior mentira é aquela que
contamos para nós mesmos. Então, não haveria, de alguma
forma, a possibilidade de fraudarmos nossas próprias
memórias? E, se isso acontece, por que o fazemos?
11
Robson Gonçalves
Esse é um dos temas centrais deste volume, cujos
personagens principais são o mesmo Arquivista e Amália,
irmã de João de Deus. Mas há ainda outra questão.
Por alguma razão, conheci ao longo da vida
inúmeras pessoas que diziam – e ainda dizem – se sentir
pouco à vontade no Brasil. E uma parcela grande dessas
pessoas tem uma relação emocional forte com a Alemanha.
Por quê? Isso sempre me intrigou.
A nostalgia, essa saudade crônica, o desejo de estar
em outro lugar, por vezes, nos faz criar fantasias, idealizar
lugares que, talvez, jamais tenham existido. E quando esse
sentimento se instala, é comum desenvolvermos uma
sensação de não-pertencimento, uma falta de identificação,
um querer estar em outro lugar, um querer partir. Por quê?
É evidente que não tenho uma resposta. Mas, na
história que se segue, narrada pelo próprio Arquivista, acabei
por reunir as duas coisas: autoengano e nostalgia.
Como sempre, em cada página, sem exceção,
reflito sobre mim mesmo. Ao mesmo tempo, aqui e ali,
alguns de meus amigos, germanistas
ou não, vão se
reconhecer. E não à toa; é uma homenagem velada mesmo.
Ou talvez, nem tão velada assim.
São Paulo, julho de 2015
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O ESPELHO EM PEDAÇOS
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Robson Gonçalves
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O ESPELHO EM PEDAÇOS
Conteúdo
Prefácio do autor ................................................................ 11
Prólogo do narrador ........................................................... 19
PRIMEIRA PARTE................................................................ 17
I.
A sombra de Antonia .................................................. 25
II. Tempo passado, não esquecido ................................. 47
III. Preparando a volta ..................................................... 73
IV. O sonho de Amália ..................................................... 95
V. Casa nova, almas velhas ........................................... 117
VI. De volta a São Fidélis ................................................ 141
VII. Medo de ter medo.................................................... 167
VIII. Clara, a caixa, o poema ............................................. 189
IX. Culpa estéril .............................................................. 205
X. Quem é minha mãe? ................................................ 221
SEGUNDA PARTE .............................................................. 241
I.
O Grande Balanço ..................................................... 243
II. Magna Germânia ...................................................... 261
III. Arto e Allana ............................................................. 291
IV. O voo e a casca ......................................................... 317
V. Juntos outra vez........................................................ 343
VI. A viagem, a bagagem ................................................ 365
VII. Páginas arrancadas ................................................... 385
VIII. O desastre de Teutoburgo ........................................ 407
IX. Pequeno pelos pequenos ......................................... 431
X. Nosso lar perdido ..................................................... 451
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O ESPELHO EM PEDAÇOS
PRIMEIRA PARTE
Dois rios, muitas histórias
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Robson Gonçalves
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O ESPELHO EM PEDAÇOS
Prólogo do narrador
e certa forma, sou um privilegiado. Eu me lembro de cada
D uma das minhas mortes desde a primeira das encarnações
neste pequeno planeta. E lá se vão, recuando na bruma densa
do tempo, mais de sete mil anos. O plantador de arroz nas
várzeas dos rios da velha Índia, o soldado violento dos
exércitos da Acádia, a artesã inquieta no Egito. Aquele
contraiu febre e se foi jovem. Este teve uma lança inimiga
cravada em seu peito. A outra viveu mais de sete décadas, e
viu morrerem antes dela muitos de seus próprios netos.
Tantas máscaras, tantas vestes para o mesmo espírito
eterno, uma consciência antiga e tantas vezes disposta a
expressar toda sua mágoa da forma mais brutal. E a origem
dessa mágoa era o incompreendido e contínuo desejo da
volta, do retorno a um lar perdido que a memória já não
alcançava, mas por quem o coração ainda suspirava.
Mas o trabalho do tempo abrandou minha alma. Fui
curvado pelo tempo, pelas derrotas amargas do meu ego e
pelo amor infinito de Deus que não deixa de nos convidar ao
19
Robson Gonçalves
perdão e à renovação, dia após dia, desde sempre e pela
eternidade.
Mas, toda vez que procuro em mim a lembrança de
minhas vidas sobre a Terra, nem sempre tenho a mesma
clareza. É como se o registro das muitas mortes fosse mais
nítido em meu coração, escrito com letras grandes e
redondas. E por quê?
A cada morte, como faço agora, realizei um balanço
do que vivi. Repassei amores e dores, esperanças e angústias,
superações e decepções. E os resultados a que cheguei não
foram animadores na maioria das vezes.
Repeti erros milenares dizendo a mim mesmo que
não queria aprender, que força alguma me obrigaria a aceitar
o que quer que fosse e que tudo ao meu redor era injustiça.
Depois, foi o orgulho, a mesma arrogância que fazia morada
em mim há tanto tempo. Vaidade imensa por conta de tudo
que já tinha vivido, de tudo que já tinha aprendido. Tão cega
e tão mesquinha que me fazia deixar passar as oportunidades
de ir adiante, transformando o saber em amar, o conhecer em
realizar. Por fim, o desânimo. Depois de tudo, comecei a me
sentir cansado, pequeno diante da eternidade, incapaz de me
corrigir, de me superar. Foi então que caí. Passei por
vivências sombrias na matéria e habitei os lugares mais
cheios de desesperança do Umbral onde pude reencontrar
antigas amizades, brindando aos velhos tempos com taças
amargas de dor e de ressentimento.
Foi do solo, da posição mais baixa a que minha alma
já havia chegado que, por fim, compreendi que um instante
pode valer por séculos, que um breve olhar sobre nós
20
O ESPELHO EM PEDAÇOS
mesmos, sincero e sem véus, pode revelar aquilo que
tentamos esconder por milênios. Foi entre as margens do
Reno e do Elba que minha história começou a mudar. O
amparo de amigos dedicados e a vivência de provas difíceis
finalmente moveram meu ser na direção de Deus. E tudo isso,
pouco antes e pouco depois do nascimento de Cristo.
Revendo os registros daqueles tempos, finalmente
entendi a razão de ter tão poucas lembranças de minhas vidas
passadas nos tempos mais remotos. Eu tinha procurado
apagá-las cuidadosamente, sistematicamente. Não queria
diante de mim nem o mais simples traço dos meus muitos
erros e acabava por guardar apenas o que podia suportar.
Mas sempre chega o tempo em que o jarro transborda
e já não se pode mais esconder de si mesmo as próprias
memórias. Hoje, tendo finalmente compreendido que sou
pequeno de fato, mas, ao mesmo tempo, na minha pequenez,
posso superar a mim mesmo, decidi relatar o momento em
que revi algumas de minhas histórias sobre a Terra, sobretudo
o momento em que fiz meu Grande Balanço Reencarnatório
no Groβe Halle da colônia espiritual de Stille der Seele.
Abri, então, os porões da alma onde havia trancado
muitas das minhas lembranças e vi a mim mesmo sob muitos
ângulos, como se estivesse diante de um espelho em pedaços
ou, quem sabe, diante de muitos espelhos. E o que vi, não me
agradou. Saber que tentei esconder tantas memórias de mim
mesmo me envergonhou, muito mais do que os erros que
cometi.
Agora, renovado, redivivo, compartilho esse
patrimônio de lembranças através das páginas desse livro. E,
21
Robson Gonçalves
para ser mais sincero comigo mesmo, conto minha própria
história como se fosse a de outra pessoa. Pois acredito mesmo
que, hoje, já não sou mais aquele espírito rebelde.
Em algum momento da longa jornada, descobri a
mim mesmo, reencontrei a chama divina no meu íntimo,
perdida há milênios. E quando vivi entre o Brasil e a Europa,
entre os séculos XVIII e XIX, finalmente tive a coragem e a
vontade de juntar todos os pedaços daquele espelho partido,
reconstruindo minha imagem para poder seguir adiante.
É a história desse longo processo, de minha jornada
desde a Etrúria e a velha Germânia até o Império do Brasil,
que passo a narrar agora. O momento no qual eu finalmente
compreendi as razões da minha nostalgia em companhia de
amigos queridos e de velhos inimigos que pude finalmente
abraçar como irmãos. Uma história de mais de vinte séculos,
o tempo que levei da superação do rancor e da mágoa por um
lar perdido até a grande redescoberta de mim mesmo no
caminho para Deus.
22
O ESPELHO EM PEDAÇOS
Norte fluminense, inverno de 1822
23
Robson Gonçalves
24
O ESPELHO EM PEDAÇOS
I. A sombra de Antonia
Uma garoa fina caía sobre o jardim da casa de São Fidélis
naquela tarde. O inverno chuvoso do interior fluminense
estava começando e o Sol não se via há dias. Um leve cheiro
de umidade exalava das cortinas pesadas da sala de jantar e
era sentido meio sem notar pelo menino Pedro. Sentado sobre
uma velha cadeira acolchoada, o tronco torcido, o cotovelo
sobre o braço da cadeira, a mão direita segurando o queixo,
o rapazinho olhava através da janela, vendo a água que
gotejava, escorrendo pela beira do telhado da varanda.
Quem quer que o visse ali naquele grande cômodo,
sozinho, o olhar perdido e a expressão séria, certamente
gostaria de saber no que pensava o jovem de pouco mais de
treze anos. Seus olhos tinham um brilho triste e o rosto estava
com uma expressão tensa, talvez medo, talvez ansiedade.
25
Robson Gonçalves
Mas nenhum pensamento passava pela mente de
Pedro. Aquele não era um estado pensante. Ele apenas sentia,
daquela forma simples e sincera das crianças, daquela forma
que os adultos, quase todos, deixam de ser capazes quando
crescem.
A verdade é que Pedro sentia sua mãe. Não era uma
presença nem uma ausência, não era nem saudade. Ele apenas
sabia que aquele sentimento era, de alguma forma, a vibração
dela. Aquela mãe que havia morrido na fazenda, aquela mãe
de quem o pai ainda falava com ternura e de quem a irmã
mais nova já não conseguia se lembrar direito.
Lá fora, a chuva se tornou mais forte e um suspiro
fundo e incontido brotou no peito do jovenzinho. Foi só nesse
instante que ele notou que o pai falava com alguém ali perto,
na outra sala. Até então, ele não havia ouvido uma palavra
sequer, muito embora a conversa já durasse uma boa meia
hora àquela altura.
- Vai ser melhor para as crianças, senhor Gonzaga.
Acredite. Como o senhor iria educar os miúdos na fazenda,
se teima em não se casar novamente?
Assim falava padre Miguel Antunes, o velho novo
pároco do arraial. Ele já tinha seus mais de sessenta anos,
rosto enrugado, sobrancelhas muito grossas e totalmente
brancas, desgrenhadas, cabelos curtos, narigão. Padre
Antunes falava, falava, repetindo sempre as mesmas frases,
as mesmas ideias que eram muito poucas em sua cabeça
sempre preocupada com tudo, menos com o tempo dos que
tinham que ouvi-lo naquele seu tom maçante.
26
O ESPELHO EM PEDAÇOS
Mais de uma vez, tentando ser minimamente cordial
com o religioso que tinha assumido a igreja de São Fidélis
poucos meses antes, João de Deus Gonzaga sentiu imensa
vontade de encerrar o assunto e mandar o padre embora. Seu
desejo sincero era voltar para a fazenda, continuar vivendo
nas terras da família e criar seus três filhos por lá, fosse como
fosse. Mas seria uma descortesia imperdoável simplesmente
despachar o padre. Que remédio? Pensava o fazendeiro.
De tempos em tempos, tentando parecer mais
simpático, padre Antunes mudava a expressão facial, sempre
séria, carrancuda, e procurava sorrir. Mas aquele sorriso se
resumia a uma tentativa bizarra de esticar os lábios que se
abriam de leve, arreganhando a boca larga por natureza e
deixando ver os dentes amarelos e desalinhados. Nada mais.
Nessas horas, o velho sacerdote balançava a cabeça
lentamente como quem diz sim
e, por conta do esforço para
esticar os lábios, as orelhas se mexiam de forma involuntária
e as sobrancelhas também. Tudo isso junto dava ao tal sorriso
um ar de pura caricatura.
- Além de tudo – continuou o padre –, o menino
Pedro já passou da idade de ser catequizado! Isso não se pode
perdoar... Ah, não! Vai ser melhor assim, viverem aqui em
São Fidélis com a tia, que me parece tão boa cristã.
Enquanto ouvia o padre falar com aquela sua voz
meio rouca e monotônica, Pedro se esqueceu da mãe por uns
instantes. Olhando através da porta que separava as duas
salas, viu o padre de costas e seu pai sentado de frente para
ele. O menino compreendeu num instante que João de Deus
sentia um misto de tédio e apreensão. Por uma fração de
27
Robson Gonçalves
segundo, os olhares de pai e filho se cruzaram. Até ali, João
não tinha notado a presença do filho na outra sala, sentado
quietinho diante da janela que dava para o jardim. Foi apenas
um instante, mas aquelas almas amigas e ligadas por laços
muito antigos não precisavam nem de tempo nem de palavras
para se compreenderem. O menino soube o que o pai lhe
dizia, sem palavras. João, por sua vez, também intuiu algo.
Mas, com a mente em tumulto, não teve a mesma certeza do
menino.
Filho, dizia João Gonzaga sem palavras. Não quero
ficar longe de ti nem de tuas irmãs! Mas não tenho outro
remédio. Tia das Dores já está velha para cuidar de todos na
fazenda e não saberia vos educar. Vamos ter que pedir ajuda
para Amália, minha irmã. Mas ela não quer morar aqui, em
nossa casa. Tem medo. Que fazer, Deus do céu?
No caso de João, aquela lembrança de Deus,
sobretudo em um momento de angústia, era algo vazio. Um
suspiro, nada mais. Se ele tinha suas dúvidas religiosas antes
da morte da esposa, depois que Dona Antonia se foi, tinha
perdido a fé por completo. Só frequentava a missa e aceitava
receber a visita dos padres por pura convenção, puro respeito
aos costumes do seu tempo.
Enquanto o cura de São Fidélis era o padre Afonso,
ao menos João sabia que podia contar com um amigo, alguém
que conhecia bem sua família, que tinha convivido com os
Gonzaga durante o tempo difícil da doença e da morte de
Antonia. Mas aquele seu substituto, padre Antunes... Que
criatura difícil de suportar, pensava o fazendeiro, suspirando
outra vez.
28
O ESPELHO EM PEDAÇOS
Amália
29
Robson Gonçalves
Mas alguma coisa no olhar triste do filho Pedro fez
João sentir um fio de esperança. Era como se o filho lhe
dissesse: Mamãe nos pediu para sermos fortes. Temos que
honrar a memória dela! Firme, meu pai! Firme!
Como João desviou o olhar para não parecer
descortês com o sacerdote sentado diante dele, aquela
comunicação intensa entre as almas de pai e filho se desfez e
Pedro voltou a olhar através da janela. Isso bastou para que
ele mergulhasse outra vez na vibração de sua mãe. Era uma
sensação estranha de reconforto, misturada a uma espécie de
perfume que ele acreditava estar sentindo e que se misturava
com o cheiro enjoativo da velha cortina meio mofada.
Por alguns instantes, o jardim parecia não ser o
mesmo. As rosas plantadas lá fora eram, sim, as rosas de sua
mãe e cuidadas pelo negro Francisco. Mas também eram
outras rosas. A janela era a janela da casa de seu pai, mas
também era outra janela. Até a chuva era, a um só tempo,
aquela e outra.
Esses sentimentos, aparentemente confusos, não
pareciam estranhos para Pedro. Em nenhum momento ele
procurou compreender o que sentia, tamanho o bem-estar que
a vibração de sua mãe lhe transmitia. Tudo aquilo fazia
sentido para ele e pronto.
Na imensidão da existência, Pedro era único e muitos
ao mesmo tempo. Sua mãe estava morta, mas continuava
junto dele. Apesar da pouca idade, de ter acabado de sair da
infância, ele sabia que, se tentasse explicar aquele sentimento
para algumas pessoas, até mesmo para seu pai, elas não
entenderiam. Coisas assim aconteciam com ele desde que se
30
O ESPELHO EM PEDAÇOS
lembrava por gente. Mas ele compreendia tudo aquilo do seu
jeito e no fundo da alma. E isso lhe dava um sentimento de
serena saciedade. Não era preciso buscar explicações.
Na outra sala, ali ao lado, João de Deus estava à beira
do desânimo. O falatório de padre Antunes continuava sem
trégua e a cabeça do fazendeiro começava a doer levemente,
fazendo com que ele, sem notar, levasse a mão esquerda até
a têmpora, que massageava em um gesto lento e repetido.
Tocada por uma ventania repentina, a chuva foi
parando, parando, até estiar de uma vez. Foi nesse momento
que chegou Amália, a irmã de João de Deus.
Com quase cinquenta anos, tendo vivido no Rio de
Janeiro desde que se casara, ele tinha enviuvado cedo e, por
alguma razão, não tinha voltado a se casar. Alguns
acreditavam que ela não podia ter filhos e que, por isso,
permanecia sozinha, com medo de ser repudiada caso viesse
a se casar novamente.
Sem muitos recursos, havia pedido ao irmão que a
deixasse morar com ele e os filhos tão logo soube da morte
da cunhada, meses antes. Acolhida de boa vontade por João,
Amália tinha chegado a passar algum tempo na fazenda Bela
Vista. Mas o irmão falava tanto da esposa morta que Amália
acabou desenvolvendo um medo imenso de que a alma de
Antonia pudesse estar assombrando a família. Essa era uma
superstição sua muito antiga, uma fobia mesmo. A ideia de
morte lhe era sombria, assustadora. E, apesar de jamais ter se
deparado com nada de sobrenatural, Amália tinha certeza de
que almas perturbadas podiam voltar do Além para
aterrorizar os viventes.
31
Robson Gonçalves
Depois de poucos meses na Bela Vista, ela pediu para
se mudar com as crianças para a casa de São Fidélis, mas, em
questão de semanas, acabou concluindo que também não se
sentia bem por lá. Perguntava insistentemente para os
escravos onde Antonia dormia, em que posição da mesa se
sentava, quais eram as flores que ela havia plantado no
jardim. Queria por toda força e lei varrer a lembrança da
cunhada que mal tinha conhecido de toda parte ao seu redor.
Mas foi em vão. Quando Amália deu ordem para arrancar a
romãzeira preferida de Antonia, os escravos se recusaram a
obedecer e mandaram um moleque de recados até a Bela
Vista para avisar o patrão.
João largou tudo na fazenda e correu para o arraial
no mesmo dia. Chegou no meio da noite e brigou feio com a
irmã que, magoada, resolveu sair daquela casa, sendo
acolhida por amigos da família até resolver seu destino.
Pensou em voltar para o Rio de Janeiro, mas, sem posses, sem
ninguém que a amparasse, foi adiando a decisão até que padre
Antunes chegou a São Fidélis para assumir a igreja local. Por
seu conselho, Amália se dispôs a fazer as pazes com o irmão
e ajudar na educação dos sobrinhos. Mas em nenhuma
hipótese aceitou viver na casa da família ou na fazenda.
Queria que o irmão alugasse ou comprasse outro imóvel,
onde ela pudesse viver em paz. Com a velha casa onde
Antonia tinha vivido, ele que fizesse o que bem entendesse,
pensava.
Foi para tratar desse assunto que tinha sido marcada
aquela conversa entre os três. João sabia que não havia muita
escolha. Os filhos precisavam ser educados e, dado que ele
não se animava a casar novamente, era preciso apelar para a
32
O ESPELHO EM PEDAÇOS
ajuda de Amália e também do cura de São Fidélis. Um
menino de treze, catorze anos que ainda não havia feito a
primeira comunhão era coisa vista com muito maus olhos.
Antonia não aprovaria isso, pensava João consigo mesmo,
tentando se convencer de que era mesmo preciso ceder, reatar
com a irmã e tocar a vida adiante.
Amália entrou na sala quando a chuva já tinha parado
de vez havia quase meia hora, toda espavorida. Os pés
molhados, a barra do vestido também, chegou falando
consigo mesma, como era seu costume.
- Chuva infeliz que vai e vem... Logo hoje, esse
tempo! Estou toda descomposta, que coisa...! Os pés, então,
estão gelados dentro do calçado. Assim não está bem!
Ela foi dizendo essas frases e outras sem nem mesmo
cumprimentar os presentes enquanto uma mucama recolhia
seu xale que também estava meio úmido e outra escrava de
dentro de casa procurava limpar seus sapatos com um
paninho. Tarefa difícil esta última, pois Amália não parava
de se mexer e de reclamar, quase sapateando sobre o assoalho
de madeira da sala de estar.
Depois de alguns instantes, sentindo-se mais calma e
menos contrariada, a viúva cumprimentou os presentes.
Primeiro o padre, que saldou Amália com um daqueles seus
sorrisos-caricatura, depois o irmão.
João fez o possível para parecer sinceramente
hospitaleiro e receptivo. Ele gostava da irmã. Sabia dos
defeitos dela, mas os achava todos sem consequências, ainda
que sem propósito também. Tinha ouvido os conselhos
repetitivos de padre Antunes vezes demais e, naquele
33
Robson Gonçalves
momento, pretendia deixar clara a intenção de reatar com a
irmã e esquecer os desentendimentos recentes. Amália, por
sua vez, apertou a mão de João de Deus um tanto sem jeito,
com a cabeça baixa e olhando para ele de baixo para cima.
- Vamos minha irmã. Tome assento e vamos
conversar como se deve. – Disse ele.
- Isso! Isso mesmo! Como irmãos que devem se
entender de uma vez. – Completou padre Antunes.
- Tu sabes que não gosto de estar nesta casa, João. Tu
bem sabes disso! Cá estou por dever, não por vontade e muito
menos por satisfação.
- Ora, Amália. E onde mais se poderia conversar um
assunto de família? – Disse João à irmã. – Pois se na fazenda
tu também não te sentes bem.
- Que seja! – Disse a viúva, fazendo uma careta de
contrariedade mais ou menos resignada. – Deixa estar como
está. Não me custa vir aqui, desde que seja só por um pouco
e pelo bem dos teus pequenos, que são uns inocentes.
Amália se sentou e fez um sinal para uma das
escravas da casa que ela bem conhecia como que dizendo que
deviam lhe servir alguma coisa. A negra ficou sem ação. Não
sabia bem o que fazer. Afinal, não são as visitas que pedem
para serem servidas, pensava a negra.
João de Deus, homem acostumado ao trabalho rude
da lavoura, não notou o que se passava, muito embora visse
que a irmã estava incomodada com alguma coisa.
34
O ESPELHO EM PEDAÇOS
Não foram necessários mais do que dois minutos
para que Amália perdesse a paciência.
- O que essa tua negrinha está esperando, oh João?
Por que fica ali a me olhar com aquele olhar arregalado como
se estivesse abobada? Nem um chá para as visitas se serve
nesta casa? Vês o que se passa com um homem que não se
casa, que não tem mulher para cuidar do andamento das
coisas da família e do lar? Que vergonha! Oh padre
Antunes... Perdoe essa falta de jeito! Não julgue a família
toda por essas grosserias da escravaria de meu irmão!
E Amália falou ainda um bocado, enquanto padre
Antunes sacudia a cabeça, ora concordando com a viúva, ora
dando a entender que aquilo não tinha mesmo como ficar
como estava.
- Um homem em plena saúde que se nega a casar
outra vez tendo filhos para criar, senhor Gonzaga... As coisas
saem do lugar, a família fica em desarmonia, a casa em
desordem!
- Ser turrão é a marca dos homens de nossa família,
padre. O mano saiu ao nosso pai, que Deus tenha
misericórdia de sua alma. O velho José do Carmo era homem
de fibra, mas tinha uma cabeça de pedra. Eu bem sei...
Mandando que a escrava servisse logo algo para as
visitas, João ficou no meio do fogo cruzado despejado sobre
ele pela irmã e pelo cura. Era impressionante como os dois
falavam, falavam. Era como se um complementasse o outro
com perfeição, muito embora não dessem a mínima atenção
um para o outro. Eram dois monólogos em paralelo e o alvo
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Robson Gonçalves
comum era João de Deus Gonzaga. Que remédio? Pensava o
fazendeiro.
Quando finalmente o chá foi servido, e só então, João
achou uma brecha para dizer algo mais construtivo no meio
da falação. Queria acabar com aquilo duma vez e arranjar as
coisas.
- Então, minha irmã, saibas que vou fazer melhor.
Vou fazer diferente daquilo que me pedes. Já comprei um
terreno bem aqui, nesta nossa rua, um pouco mais perto da
matriz. Ontem mesmo comecei a arranjar com os pedreiros
do arraial a construção de uma casa nova...
A surpresa foi grande. Padre Antunes, que não
conhecia direito nem João, nem sua família, esperava que o
fazendeiro resistisse à ideia de deixar os filhos aos cuidados
da irmã e não tinha a mínima notícia de que ele estava
negociando a construção de uma nova casa.
Amália, então, de tão surpresa, ficou muda, uma
coisa muito rara nela, a boca aberta, a xícara de chá parada
entre o pires e a boca. O irmão estava sendo generoso e havia
tirado do nada um argumento forte demais oferecendo a ela
uma casa nova, novinha em folha.
Numa fração de segundo, ela começou a imaginar o
que seria seu futuro e se viu senhora de uma casa bonita,
espaçosa, arejada e, sobretudo, livre da sombra da cunhada
morta. Seu futuro em São Fidélis seria tudo o que a vida não
havia sido desde que deixara a casa do pai para se casar quase
trinta anos antes. Cuidaria dos sobrinhos, mas não seria
apenas uma tia velha a serviço de João de Deus, como era
Maria das Dores lá na fazenda. Isso não!
36
O ESPELHO EM PEDAÇOS
Finalmente, Deus atendeu as minhas preces e me fez
justiça, pensava ela.
Diante do silêncio do padre e da irmã que se
entreolhavam sem verem realmente um ao outro, tão
centrados estavam nos seus próprios pensamentos, João de
Deus compreendeu o efeito daquela sua proposta.
- Bom... Se ninguém me diz nada, acho que a ideia
não está de acordo com o que pensam vosmercês. – Disse ele
em tom de brincadeira
Só então padre Antunes conseguiu superar a enorme
surpresa, levantou-se e foi apertar a mão do fazendeiro.
- Deus seja louvado! Bem que padre Afonso me
garantiu que vosmercês, os Gonzaga, são gente de bem e
temente a Deus!
E, sempre com aquele sorriso bizarro na face, o padre
foi enfileirando elogios e ações de graça um depois do outro,
enquanto João, que já tinha se arrependido de fazer a
brincadeira que fizera, tentava soltar sua mão direita que o
religioso apertava e sacudia sem parar.
Por fim, virando-se para Amália, padre Antunes quis
saber.
- E a senhora, não diz nada? Não está de acordo?
A pobre viúva foi arrancada de repente da imagem
da nova casa que, a cada momento, parecia maior e mais bela
em sua mente agitada. Compreendendo que aquele seu
silêncio poderia parecer ingrato e desrespeitoso para com o
velho padre e o irmão, Amália se levantou da cadeira onde
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Robson Gonçalves
estava quase num pulo, deixou a xícara de chá sobre a
pequena mesa à sua frente e, caminhando na direção do
irmão, foi gaguejando.
- Eu... Essa tu... tua oferta é... Eu pen... penso que
não... não...
Mas antes que ela pudesse concluir qualquer
pensamento que fosse, Amália viu que o padre se afastou uns
dois passos e o irmão, emocionado, abriu os braços num
gesto sincero de reconciliação. Queria abraçar Amália como
fazia quando eram mais jovens, como fazia quando eram
crianças na fazenda Bela Vista.
A viúva hesitou, ergueu os olhos que ainda estavam
baixos, tentou dizer alguma coisa, olhou para o padre, tornou
a olhar para o irmão, mas não conseguiu dar nem mais um
passo.
Conhecendo bem a timidez da irmã e o quanto ela
havia sofrido com aquele seu casamento sem filhos e com a
incerteza da viuvez no Rio de Janeiro, João foi ao seu
encontro e, muito embora Amália resistisse se encolhendo,
assustada, abraçou a irmã com sincera ternura. Foi demais
para ela.
Dizendo palavras sem sentido, soltas e vazias,
Amália chorou como há muito tempo não fazia. Apertou o
irmão contra o peito sem coragem de encará-lo de frente. Até
padre Antunes ficou comovido e quase eufórico.
- Deus seja louvado. Deus seja louvado! – Dizia o
cura sem parar.
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O ESPELHO EM PEDAÇOS
Ouvindo os soluços da tia, o menino Pedro saiu da
cadeira onde estava na sala ao lado e veio se juntar aos
adultos. Não teve como deixar de achar estranho a tia, sempre
tão amarga e dura, chorando nos braços do pai e este, por sua
vez, tão sombrio desde a morte de esposa, dizendo palavras
de consolo para ela e sorrindo de sincera satisfação.
Pedro pôde notar que entre os irmãos havia uma
imensa vibração de afeto. Eles não estavam apenas abraçados
um ao outro, mas realmente unidos por uma energia muito
intensa. Se o menino Pedro pudesse ver através da bruma dos
tempos, saberia que aquele gesto se repetia ali quase que
exatamente como já tinha acontecido mais de uma vez. Mas
para o garoto de treze anos, aquilo era apenas uma certeza,
pura, simples e inexplicável. Uma coisa óbvia. Ao menos
para ele, no fundo de sua