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O Espelho Em Pedaços
O Espelho Em Pedaços
O Espelho Em Pedaços
E-book493 páginas6 horas

O Espelho Em Pedaços

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Sobre este e-book

Edição ilustrada do romance O Espelho em Pedaços, sequência de Bela Vista, do mesmo autor
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de out. de 2015
O Espelho Em Pedaços

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    O Espelho Em Pedaços - Robson Gonçalves

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    Romance de vidas passadas

    (edição ilustrada)

    Robson Gonçalves

    Robson Gonçalves

    2

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    O Espelho em

    Pedaços

    Romance de vidas passadas

    3

    Robson Gonçalves

    4

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    O Espelho em

    Pedaços

    Romance de vidas passadas

    Robson Gonçalves

    Segunda Edição IlustradaC

    Edição do Autor

    São Paulo, 2015

    5

    Robson Gonçalves

    6

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    À memória de meu pai,

    Oswaldo Gonçalves (1934-2014).

    7

    Robson Gonçalves

    8

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?

    Jesus, em Marcos 3:33.

    "Há, portanto, duas espécies de famílias: as famílias por

    laços espirituais e as famílias por laços corporais. As

    primeiras, duradouras, fortificam-se pela purificação e se

    perpetuam no mundo dos Espíritos, através das diversas

    migrações da alma. As segundas, frágeis como a própria

    matéria, extinguem-se com o tempo, e quase sempre se

    dissolvem moralmente desde a vida atual."

    Allan Kardec, O Evangelho

    Segundo o Espiritismo, cap.

    14:8.

    "Na casa de meu Pai há muitas moradas; se assim não

    fosse, eu vos teria dito"

    Jesus, em João 14:2.

    "Os Espíritos encarnados num mundo não estão ligados a ele

    indefinidamente, e não passam nesse mundo por todas as

    fases do progresso que devem realizar, para chegar à

    perfeição. (...) Os mundos são as estações em que eles

    encontram os elementos de progresso proporcionais ao seu

    adiantamento. É para eles uma recompensa passarem a um

    mundo de ordem mais elevada, como é um castigo

    prolongarem sua permanência num mundo infeliz, ou serem

    relegados a um mundo ainda mais infeliz, por se haverem

    obstinado no mal."

    Allan Kardec, O Evangelho

    Segundo o Espiritismo, cap.

    3:5.

    9

    Robson Gonçalves

    10

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    Prefácio do autor

    Este volume nos leva mais uma vez ao interior fluminense

    no início do século XIX. É a continuação da história da

    família Gonzaga, do fazendeiro João de Deus e seus filhos,

    de sua esposa Antonia, de Cícero e do Arquivista, Conrad

    Müller. Mas, ao mesmo tempo, esta é outra história.

    A Doutrina Espírita trata de forma ampla e

    consistente o tema da reencarnação, tanto quanto outras

    crenças espiritualistas, novas e antigas.

    Mas o esquecimento do passado é uma peça

    doutrinária intrigante e mais complexa do que pode parecer à

    primeira vista. Sabemos que ele é, por assim dizer,

    terapêutico e, via de regra, compulsório. Mas, quando

    recuperamos memórias de vidas passadas, como é que

    recontamos nossas histórias? Como remontamos o quebra-

    cabeças?

    É sabido que a maior mentira é aquela que

    contamos para nós mesmos. Então, não haveria, de alguma

    forma, a possibilidade de fraudarmos nossas próprias

    memórias? E, se isso acontece, por que o fazemos?

    11

    Robson Gonçalves

    Esse é um dos temas centrais deste volume, cujos

    personagens principais são o mesmo Arquivista e Amália,

    irmã de João de Deus. Mas há ainda outra questão.

    Por alguma razão, conheci ao longo da vida

    inúmeras pessoas que diziam – e ainda dizem – se sentir

    pouco à vontade no Brasil. E uma parcela grande dessas

    pessoas tem uma relação emocional forte com a Alemanha.

    Por quê? Isso sempre me intrigou.

    A nostalgia, essa saudade crônica, o desejo de estar

    em outro lugar, por vezes, nos faz criar fantasias, idealizar

    lugares que, talvez, jamais tenham existido. E quando esse

    sentimento se instala, é comum desenvolvermos uma

    sensação de não-pertencimento, uma falta de identificação,

    um querer estar em outro lugar, um querer partir. Por quê?

    É evidente que não tenho uma resposta. Mas, na

    história que se segue, narrada pelo próprio Arquivista, acabei

    por reunir as duas coisas: autoengano e nostalgia.

    Como sempre, em cada página, sem exceção,

    reflito sobre mim mesmo. Ao mesmo tempo, aqui e ali,

    alguns de meus amigos, germanistas ou não, vão se

    reconhecer. E não à toa; é uma homenagem velada mesmo.

    Ou talvez, nem tão velada assim.

    São Paulo, julho de 2015

    12

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    13

    Robson Gonçalves

    14

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    Conteúdo

    Prefácio do autor ................................................................ 11

    Prólogo do narrador ........................................................... 19

    PRIMEIRA PARTE................................................................ 17

    I.

    A sombra de Antonia .................................................. 25

    II. Tempo passado, não esquecido ................................. 47

    III. Preparando a volta ..................................................... 73

    IV. O sonho de Amália ..................................................... 95

    V. Casa nova, almas velhas ........................................... 117

    VI. De volta a São Fidélis ................................................ 141

    VII. Medo de ter medo.................................................... 167

    VIII. Clara, a caixa, o poema ............................................. 189

    IX. Culpa estéril .............................................................. 205

    X. Quem é minha mãe? ................................................ 221

    SEGUNDA PARTE .............................................................. 241

    I.

    O Grande Balanço ..................................................... 243

    II. Magna Germânia ...................................................... 261

    III. Arto e Allana ............................................................. 291

    IV. O voo e a casca ......................................................... 317

    V. Juntos outra vez........................................................ 343

    VI. A viagem, a bagagem ................................................ 365

    VII. Páginas arrancadas ................................................... 385

    VIII. O desastre de Teutoburgo ........................................ 407

    IX. Pequeno pelos pequenos ......................................... 431

    X. Nosso lar perdido ..................................................... 451

    15

    Robson Gonçalves

    16

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    PRIMEIRA PARTE

    Dois rios, muitas histórias

    17

    Robson Gonçalves

    18

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    Prólogo do narrador

    e certa forma, sou um privilegiado. Eu me lembro de cada

    D uma das minhas mortes desde a primeira das encarnações

    neste pequeno planeta. E lá se vão, recuando na bruma densa

    do tempo, mais de sete mil anos. O plantador de arroz nas

    várzeas dos rios da velha Índia, o soldado violento dos

    exércitos da Acádia, a artesã inquieta no Egito. Aquele

    contraiu febre e se foi jovem. Este teve uma lança inimiga

    cravada em seu peito. A outra viveu mais de sete décadas, e

    viu morrerem antes dela muitos de seus próprios netos.

    Tantas máscaras, tantas vestes para o mesmo espírito

    eterno, uma consciência antiga e tantas vezes disposta a

    expressar toda sua mágoa da forma mais brutal. E a origem

    dessa mágoa era o incompreendido e contínuo desejo da

    volta, do retorno a um lar perdido que a memória já não

    alcançava, mas por quem o coração ainda suspirava.

    Mas o trabalho do tempo abrandou minha alma. Fui

    curvado pelo tempo, pelas derrotas amargas do meu ego e

    pelo amor infinito de Deus que não deixa de nos convidar ao

    19

    Robson Gonçalves

    perdão e à renovação, dia após dia, desde sempre e pela

    eternidade.

    Mas, toda vez que procuro em mim a lembrança de

    minhas vidas sobre a Terra, nem sempre tenho a mesma

    clareza. É como se o registro das muitas mortes fosse mais

    nítido em meu coração, escrito com letras grandes e

    redondas. E por quê?

    A cada morte, como faço agora, realizei um balanço

    do que vivi. Repassei amores e dores, esperanças e angústias,

    superações e decepções. E os resultados a que cheguei não

    foram animadores na maioria das vezes.

    Repeti erros milenares dizendo a mim mesmo que

    não queria aprender, que força alguma me obrigaria a aceitar

    o que quer que fosse e que tudo ao meu redor era injustiça.

    Depois, foi o orgulho, a mesma arrogância que fazia morada

    em mim há tanto tempo. Vaidade imensa por conta de tudo

    que já tinha vivido, de tudo que já tinha aprendido. Tão cega

    e tão mesquinha que me fazia deixar passar as oportunidades

    de ir adiante, transformando o saber em amar, o conhecer em

    realizar. Por fim, o desânimo. Depois de tudo, comecei a me

    sentir cansado, pequeno diante da eternidade, incapaz de me

    corrigir, de me superar. Foi então que caí. Passei por

    vivências sombrias na matéria e habitei os lugares mais

    cheios de desesperança do Umbral onde pude reencontrar

    antigas amizades, brindando aos velhos tempos com taças

    amargas de dor e de ressentimento.

    Foi do solo, da posição mais baixa a que minha alma

    já havia chegado que, por fim, compreendi que um instante

    pode valer por séculos, que um breve olhar sobre nós

    20

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    mesmos, sincero e sem véus, pode revelar aquilo que

    tentamos esconder por milênios. Foi entre as margens do

    Reno e do Elba que minha história começou a mudar. O

    amparo de amigos dedicados e a vivência de provas difíceis

    finalmente moveram meu ser na direção de Deus. E tudo isso,

    pouco antes e pouco depois do nascimento de Cristo.

    Revendo os registros daqueles tempos, finalmente

    entendi a razão de ter tão poucas lembranças de minhas vidas

    passadas nos tempos mais remotos. Eu tinha procurado

    apagá-las cuidadosamente, sistematicamente. Não queria

    diante de mim nem o mais simples traço dos meus muitos

    erros e acabava por guardar apenas o que podia suportar.

    Mas sempre chega o tempo em que o jarro transborda

    e já não se pode mais esconder de si mesmo as próprias

    memórias. Hoje, tendo finalmente compreendido que sou

    pequeno de fato, mas, ao mesmo tempo, na minha pequenez,

    posso superar a mim mesmo, decidi relatar o momento em

    que revi algumas de minhas histórias sobre a Terra, sobretudo

    o momento em que fiz meu Grande Balanço Reencarnatório

    no Groβe Halle da colônia espiritual de Stille der Seele.

    Abri, então, os porões da alma onde havia trancado

    muitas das minhas lembranças e vi a mim mesmo sob muitos

    ângulos, como se estivesse diante de um espelho em pedaços

    ou, quem sabe, diante de muitos espelhos. E o que vi, não me

    agradou. Saber que tentei esconder tantas memórias de mim

    mesmo me envergonhou, muito mais do que os erros que

    cometi.

    Agora, renovado, redivivo, compartilho esse

    patrimônio de lembranças através das páginas desse livro. E,

    21

    Robson Gonçalves

    para ser mais sincero comigo mesmo, conto minha própria

    história como se fosse a de outra pessoa. Pois acredito mesmo

    que, hoje, já não sou mais aquele espírito rebelde.

    Em algum momento da longa jornada, descobri a

    mim mesmo, reencontrei a chama divina no meu íntimo,

    perdida há milênios. E quando vivi entre o Brasil e a Europa,

    entre os séculos XVIII e XIX, finalmente tive a coragem e a

    vontade de juntar todos os pedaços daquele espelho partido,

    reconstruindo minha imagem para poder seguir adiante.

    É a história desse longo processo, de minha jornada

    desde a Etrúria e a velha Germânia até o Império do Brasil,

    que passo a narrar agora. O momento no qual eu finalmente

    compreendi as razões da minha nostalgia em companhia de

    amigos queridos e de velhos inimigos que pude finalmente

    abraçar como irmãos. Uma história de mais de vinte séculos,

    o tempo que levei da superação do rancor e da mágoa por um

    lar perdido até a grande redescoberta de mim mesmo no

    caminho para Deus.

    22

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    Norte fluminense, inverno de 1822

    23

    Robson Gonçalves

    24

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    I. A sombra de Antonia

    Uma garoa fina caía sobre o jardim da casa de São Fidélis

    naquela tarde. O inverno chuvoso do interior fluminense

    estava começando e o Sol não se via há dias. Um leve cheiro

    de umidade exalava das cortinas pesadas da sala de jantar e

    era sentido meio sem notar pelo menino Pedro. Sentado sobre

    uma velha cadeira acolchoada, o tronco torcido, o cotovelo

    sobre o braço da cadeira, a mão direita segurando o queixo,

    o rapazinho olhava através da janela, vendo a água que

    gotejava, escorrendo pela beira do telhado da varanda.

    Quem quer que o visse ali naquele grande cômodo,

    sozinho, o olhar perdido e a expressão séria, certamente

    gostaria de saber no que pensava o jovem de pouco mais de

    treze anos. Seus olhos tinham um brilho triste e o rosto estava

    com uma expressão tensa, talvez medo, talvez ansiedade.

    25

    Robson Gonçalves

    Mas nenhum pensamento passava pela mente de

    Pedro. Aquele não era um estado pensante. Ele apenas sentia,

    daquela forma simples e sincera das crianças, daquela forma

    que os adultos, quase todos, deixam de ser capazes quando

    crescem.

    A verdade é que Pedro sentia sua mãe. Não era uma

    presença nem uma ausência, não era nem saudade. Ele apenas

    sabia que aquele sentimento era, de alguma forma, a vibração

    dela. Aquela mãe que havia morrido na fazenda, aquela mãe

    de quem o pai ainda falava com ternura e de quem a irmã

    mais nova já não conseguia se lembrar direito.

    Lá fora, a chuva se tornou mais forte e um suspiro

    fundo e incontido brotou no peito do jovenzinho. Foi só nesse

    instante que ele notou que o pai falava com alguém ali perto,

    na outra sala. Até então, ele não havia ouvido uma palavra

    sequer, muito embora a conversa já durasse uma boa meia

    hora àquela altura.

    - Vai ser melhor para as crianças, senhor Gonzaga.

    Acredite. Como o senhor iria educar os miúdos na fazenda,

    se teima em não se casar novamente?

    Assim falava padre Miguel Antunes, o velho novo

    pároco do arraial. Ele já tinha seus mais de sessenta anos,

    rosto enrugado, sobrancelhas muito grossas e totalmente

    brancas, desgrenhadas, cabelos curtos, narigão. Padre

    Antunes falava, falava, repetindo sempre as mesmas frases,

    as mesmas ideias que eram muito poucas em sua cabeça

    sempre preocupada com tudo, menos com o tempo dos que

    tinham que ouvi-lo naquele seu tom maçante.

    26

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    Mais de uma vez, tentando ser minimamente cordial

    com o religioso que tinha assumido a igreja de São Fidélis

    poucos meses antes, João de Deus Gonzaga sentiu imensa

    vontade de encerrar o assunto e mandar o padre embora. Seu

    desejo sincero era voltar para a fazenda, continuar vivendo

    nas terras da família e criar seus três filhos por lá, fosse como

    fosse. Mas seria uma descortesia imperdoável simplesmente

    despachar o padre. Que remédio? Pensava o fazendeiro.

    De tempos em tempos, tentando parecer mais

    simpático, padre Antunes mudava a expressão facial, sempre

    séria, carrancuda, e procurava sorrir. Mas aquele sorriso se

    resumia a uma tentativa bizarra de esticar os lábios que se

    abriam de leve, arreganhando a boca larga por natureza e

    deixando ver os dentes amarelos e desalinhados. Nada mais.

    Nessas horas, o velho sacerdote balançava a cabeça

    lentamente como quem diz sim e, por conta do esforço para

    esticar os lábios, as orelhas se mexiam de forma involuntária

    e as sobrancelhas também. Tudo isso junto dava ao tal sorriso

    um ar de pura caricatura.

    - Além de tudo – continuou o padre –, o menino

    Pedro já passou da idade de ser catequizado! Isso não se pode

    perdoar... Ah, não! Vai ser melhor assim, viverem aqui em

    São Fidélis com a tia, que me parece tão boa cristã.

    Enquanto ouvia o padre falar com aquela sua voz

    meio rouca e monotônica, Pedro se esqueceu da mãe por uns

    instantes. Olhando através da porta que separava as duas

    salas, viu o padre de costas e seu pai sentado de frente para

    ele. O menino compreendeu num instante que João de Deus

    sentia um misto de tédio e apreensão. Por uma fração de

    27

    Robson Gonçalves

    segundo, os olhares de pai e filho se cruzaram. Até ali, João

    não tinha notado a presença do filho na outra sala, sentado

    quietinho diante da janela que dava para o jardim. Foi apenas

    um instante, mas aquelas almas amigas e ligadas por laços

    muito antigos não precisavam nem de tempo nem de palavras

    para se compreenderem. O menino soube o que o pai lhe

    dizia, sem palavras. João, por sua vez, também intuiu algo.

    Mas, com a mente em tumulto, não teve a mesma certeza do

    menino.

    Filho, dizia João Gonzaga sem palavras. Não quero

    ficar longe de ti nem de tuas irmãs! Mas não tenho outro

    remédio. Tia das Dores já está velha para cuidar de todos na

    fazenda e não saberia vos educar. Vamos ter que pedir ajuda

    para Amália, minha irmã. Mas ela não quer morar aqui, em

    nossa casa. Tem medo. Que fazer, Deus do céu?

    No caso de João, aquela lembrança de Deus,

    sobretudo em um momento de angústia, era algo vazio. Um

    suspiro, nada mais. Se ele tinha suas dúvidas religiosas antes

    da morte da esposa, depois que Dona Antonia se foi, tinha

    perdido a fé por completo. Só frequentava a missa e aceitava

    receber a visita dos padres por pura convenção, puro respeito

    aos costumes do seu tempo.

    Enquanto o cura de São Fidélis era o padre Afonso,

    ao menos João sabia que podia contar com um amigo, alguém

    que conhecia bem sua família, que tinha convivido com os

    Gonzaga durante o tempo difícil da doença e da morte de

    Antonia. Mas aquele seu substituto, padre Antunes... Que

    criatura difícil de suportar, pensava o fazendeiro, suspirando

    outra vez.

    28

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    Amália

    29

    Robson Gonçalves

    Mas alguma coisa no olhar triste do filho Pedro fez

    João sentir um fio de esperança. Era como se o filho lhe

    dissesse: Mamãe nos pediu para sermos fortes. Temos que

    honrar a memória dela! Firme, meu pai! Firme!

    Como João desviou o olhar para não parecer

    descortês com o sacerdote sentado diante dele, aquela

    comunicação intensa entre as almas de pai e filho se desfez e

    Pedro voltou a olhar através da janela. Isso bastou para que

    ele mergulhasse outra vez na vibração de sua mãe. Era uma

    sensação estranha de reconforto, misturada a uma espécie de

    perfume que ele acreditava estar sentindo e que se misturava

    com o cheiro enjoativo da velha cortina meio mofada.

    Por alguns instantes, o jardim parecia não ser o

    mesmo. As rosas plantadas lá fora eram, sim, as rosas de sua

    mãe e cuidadas pelo negro Francisco. Mas também eram

    outras rosas. A janela era a janela da casa de seu pai, mas

    também era outra janela. Até a chuva era, a um só tempo,

    aquela e outra.

    Esses sentimentos, aparentemente confusos, não

    pareciam estranhos para Pedro. Em nenhum momento ele

    procurou compreender o que sentia, tamanho o bem-estar que

    a vibração de sua mãe lhe transmitia. Tudo aquilo fazia

    sentido para ele e pronto.

    Na imensidão da existência, Pedro era único e muitos

    ao mesmo tempo. Sua mãe estava morta, mas continuava

    junto dele. Apesar da pouca idade, de ter acabado de sair da

    infância, ele sabia que, se tentasse explicar aquele sentimento

    para algumas pessoas, até mesmo para seu pai, elas não

    entenderiam. Coisas assim aconteciam com ele desde que se

    30

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    lembrava por gente. Mas ele compreendia tudo aquilo do seu

    jeito e no fundo da alma. E isso lhe dava um sentimento de

    serena saciedade. Não era preciso buscar explicações.

    Na outra sala, ali ao lado, João de Deus estava à beira

    do desânimo. O falatório de padre Antunes continuava sem

    trégua e a cabeça do fazendeiro começava a doer levemente,

    fazendo com que ele, sem notar, levasse a mão esquerda até

    a têmpora, que massageava em um gesto lento e repetido.

    Tocada por uma ventania repentina, a chuva foi

    parando, parando, até estiar de uma vez. Foi nesse momento

    que chegou Amália, a irmã de João de Deus.

    Com quase cinquenta anos, tendo vivido no Rio de

    Janeiro desde que se casara, ele tinha enviuvado cedo e, por

    alguma razão, não tinha voltado a se casar. Alguns

    acreditavam que ela não podia ter filhos e que, por isso,

    permanecia sozinha, com medo de ser repudiada caso viesse

    a se casar novamente.

    Sem muitos recursos, havia pedido ao irmão que a

    deixasse morar com ele e os filhos tão logo soube da morte

    da cunhada, meses antes. Acolhida de boa vontade por João,

    Amália tinha chegado a passar algum tempo na fazenda Bela

    Vista. Mas o irmão falava tanto da esposa morta que Amália

    acabou desenvolvendo um medo imenso de que a alma de

    Antonia pudesse estar assombrando a família. Essa era uma

    superstição sua muito antiga, uma fobia mesmo. A ideia de

    morte lhe era sombria, assustadora. E, apesar de jamais ter se

    deparado com nada de sobrenatural, Amália tinha certeza de

    que almas perturbadas podiam voltar do Além para

    aterrorizar os viventes.

    31

    Robson Gonçalves

    Depois de poucos meses na Bela Vista, ela pediu para

    se mudar com as crianças para a casa de São Fidélis, mas, em

    questão de semanas, acabou concluindo que também não se

    sentia bem por lá. Perguntava insistentemente para os

    escravos onde Antonia dormia, em que posição da mesa se

    sentava, quais eram as flores que ela havia plantado no

    jardim. Queria por toda força e lei varrer a lembrança da

    cunhada que mal tinha conhecido de toda parte ao seu redor.

    Mas foi em vão. Quando Amália deu ordem para arrancar a

    romãzeira preferida de Antonia, os escravos se recusaram a

    obedecer e mandaram um moleque de recados até a Bela

    Vista para avisar o patrão.

    João largou tudo na fazenda e correu para o arraial

    no mesmo dia. Chegou no meio da noite e brigou feio com a

    irmã que, magoada, resolveu sair daquela casa, sendo

    acolhida por amigos da família até resolver seu destino.

    Pensou em voltar para o Rio de Janeiro, mas, sem posses, sem

    ninguém que a amparasse, foi adiando a decisão até que padre

    Antunes chegou a São Fidélis para assumir a igreja local. Por

    seu conselho, Amália se dispôs a fazer as pazes com o irmão

    e ajudar na educação dos sobrinhos. Mas em nenhuma

    hipótese aceitou viver na casa da família ou na fazenda.

    Queria que o irmão alugasse ou comprasse outro imóvel,

    onde ela pudesse viver em paz. Com a velha casa onde

    Antonia tinha vivido, ele que fizesse o que bem entendesse,

    pensava.

    Foi para tratar desse assunto que tinha sido marcada

    aquela conversa entre os três. João sabia que não havia muita

    escolha. Os filhos precisavam ser educados e, dado que ele

    não se animava a casar novamente, era preciso apelar para a

    32

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    ajuda de Amália e também do cura de São Fidélis. Um

    menino de treze, catorze anos que ainda não havia feito a

    primeira comunhão era coisa vista com muito maus olhos.

    Antonia não aprovaria isso, pensava João consigo mesmo,

    tentando se convencer de que era mesmo preciso ceder, reatar

    com a irmã e tocar a vida adiante.

    Amália entrou na sala quando a chuva já tinha parado

    de vez havia quase meia hora, toda espavorida. Os pés

    molhados, a barra do vestido também, chegou falando

    consigo mesma, como era seu costume.

    - Chuva infeliz que vai e vem... Logo hoje, esse

    tempo! Estou toda descomposta, que coisa...! Os pés, então,

    estão gelados dentro do calçado. Assim não está bem!

    Ela foi dizendo essas frases e outras sem nem mesmo

    cumprimentar os presentes enquanto uma mucama recolhia

    seu xale que também estava meio úmido e outra escrava de

    dentro de casa procurava limpar seus sapatos com um

    paninho. Tarefa difícil esta última, pois Amália não parava

    de se mexer e de reclamar, quase sapateando sobre o assoalho

    de madeira da sala de estar.

    Depois de alguns instantes, sentindo-se mais calma e

    menos contrariada, a viúva cumprimentou os presentes.

    Primeiro o padre, que saldou Amália com um daqueles seus

    sorrisos-caricatura, depois o irmão.

    João fez o possível para parecer sinceramente

    hospitaleiro e receptivo. Ele gostava da irmã. Sabia dos

    defeitos dela, mas os achava todos sem consequências, ainda

    que sem propósito também. Tinha ouvido os conselhos

    repetitivos de padre Antunes vezes demais e, naquele

    33

    Robson Gonçalves

    momento, pretendia deixar clara a intenção de reatar com a

    irmã e esquecer os desentendimentos recentes. Amália, por

    sua vez, apertou a mão de João de Deus um tanto sem jeito,

    com a cabeça baixa e olhando para ele de baixo para cima.

    - Vamos minha irmã. Tome assento e vamos

    conversar como se deve. – Disse ele.

    - Isso! Isso mesmo! Como irmãos que devem se

    entender de uma vez. – Completou padre Antunes.

    - Tu sabes que não gosto de estar nesta casa, João. Tu

    bem sabes disso! Cá estou por dever, não por vontade e muito

    menos por satisfação.

    - Ora, Amália. E onde mais se poderia conversar um

    assunto de família? – Disse João à irmã. – Pois se na fazenda

    tu também não te sentes bem.

    - Que seja! – Disse a viúva, fazendo uma careta de

    contrariedade mais ou menos resignada. – Deixa estar como

    está. Não me custa vir aqui, desde que seja só por um pouco

    e pelo bem dos teus pequenos, que são uns inocentes.

    Amália se sentou e fez um sinal para uma das

    escravas da casa que ela bem conhecia como que dizendo que

    deviam lhe servir alguma coisa. A negra ficou sem ação. Não

    sabia bem o que fazer. Afinal, não são as visitas que pedem

    para serem servidas, pensava a negra.

    João de Deus, homem acostumado ao trabalho rude

    da lavoura, não notou o que se passava, muito embora visse

    que a irmã estava incomodada com alguma coisa.

    34

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    Não foram necessários mais do que dois minutos

    para que Amália perdesse a paciência.

    - O que essa tua negrinha está esperando, oh João?

    Por que fica ali a me olhar com aquele olhar arregalado como

    se estivesse abobada? Nem um chá para as visitas se serve

    nesta casa? Vês o que se passa com um homem que não se

    casa, que não tem mulher para cuidar do andamento das

    coisas da família e do lar? Que vergonha! Oh padre

    Antunes... Perdoe essa falta de jeito! Não julgue a família

    toda por essas grosserias da escravaria de meu irmão!

    E Amália falou ainda um bocado, enquanto padre

    Antunes sacudia a cabeça, ora concordando com a viúva, ora

    dando a entender que aquilo não tinha mesmo como ficar

    como estava.

    - Um homem em plena saúde que se nega a casar

    outra vez tendo filhos para criar, senhor Gonzaga... As coisas

    saem do lugar, a família fica em desarmonia, a casa em

    desordem!

    - Ser turrão é a marca dos homens de nossa família,

    padre. O mano saiu ao nosso pai, que Deus tenha

    misericórdia de sua alma. O velho José do Carmo era homem

    de fibra, mas tinha uma cabeça de pedra. Eu bem sei...

    Mandando que a escrava servisse logo algo para as

    visitas, João ficou no meio do fogo cruzado despejado sobre

    ele pela irmã e pelo cura. Era impressionante como os dois

    falavam, falavam. Era como se um complementasse o outro

    com perfeição, muito embora não dessem a mínima atenção

    um para o outro. Eram dois monólogos em paralelo e o alvo

    35

    Robson Gonçalves

    comum era João de Deus Gonzaga. Que remédio? Pensava o

    fazendeiro.

    Quando finalmente o chá foi servido, e só então, João

    achou uma brecha para dizer algo mais construtivo no meio

    da falação. Queria acabar com aquilo duma vez e arranjar as

    coisas.

    - Então, minha irmã, saibas que vou fazer melhor.

    Vou fazer diferente daquilo que me pedes. Já comprei um

    terreno bem aqui, nesta nossa rua, um pouco mais perto da

    matriz. Ontem mesmo comecei a arranjar com os pedreiros

    do arraial a construção de uma casa nova...

    A surpresa foi grande. Padre Antunes, que não

    conhecia direito nem João, nem sua família, esperava que o

    fazendeiro resistisse à ideia de deixar os filhos aos cuidados

    da irmã e não tinha a mínima notícia de que ele estava

    negociando a construção de uma nova casa.

    Amália, então, de tão surpresa, ficou muda, uma

    coisa muito rara nela, a boca aberta, a xícara de chá parada

    entre o pires e a boca. O irmão estava sendo generoso e havia

    tirado do nada um argumento forte demais oferecendo a ela

    uma casa nova, novinha em folha.

    Numa fração de segundo, ela começou a imaginar o

    que seria seu futuro e se viu senhora de uma casa bonita,

    espaçosa, arejada e, sobretudo, livre da sombra da cunhada

    morta. Seu futuro em São Fidélis seria tudo o que a vida não

    havia sido desde que deixara a casa do pai para se casar quase

    trinta anos antes. Cuidaria dos sobrinhos, mas não seria

    apenas uma tia velha a serviço de João de Deus, como era

    Maria das Dores lá na fazenda. Isso não!

    36

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    Finalmente, Deus atendeu as minhas preces e me fez

    justiça, pensava ela.

    Diante do silêncio do padre e da irmã que se

    entreolhavam sem verem realmente um ao outro, tão

    centrados estavam nos seus próprios pensamentos, João de

    Deus compreendeu o efeito daquela sua proposta.

    - Bom... Se ninguém me diz nada, acho que a ideia

    não está de acordo com o que pensam vosmercês. – Disse ele

    em tom de brincadeira

    Só então padre Antunes conseguiu superar a enorme

    surpresa, levantou-se e foi apertar a mão do fazendeiro.

    - Deus seja louvado! Bem que padre Afonso me

    garantiu que vosmercês, os Gonzaga, são gente de bem e

    temente a Deus!

    E, sempre com aquele sorriso bizarro na face, o padre

    foi enfileirando elogios e ações de graça um depois do outro,

    enquanto João, que já tinha se arrependido de fazer a

    brincadeira que fizera, tentava soltar sua mão direita que o

    religioso apertava e sacudia sem parar.

    Por fim, virando-se para Amália, padre Antunes quis

    saber.

    - E a senhora, não diz nada? Não está de acordo?

    A pobre viúva foi arrancada de repente da imagem

    da nova casa que, a cada momento, parecia maior e mais bela

    em sua mente agitada. Compreendendo que aquele seu

    silêncio poderia parecer ingrato e desrespeitoso para com o

    velho padre e o irmão, Amália se levantou da cadeira onde

    37

    Robson Gonçalves

    estava quase num pulo, deixou a xícara de chá sobre a

    pequena mesa à sua frente e, caminhando na direção do

    irmão, foi gaguejando.

    - Eu... Essa tu... tua oferta é... Eu pen... penso que

    não... não...

    Mas antes que ela pudesse concluir qualquer

    pensamento que fosse, Amália viu que o padre se afastou uns

    dois passos e o irmão, emocionado, abriu os braços num

    gesto sincero de reconciliação. Queria abraçar Amália como

    fazia quando eram mais jovens, como fazia quando eram

    crianças na fazenda Bela Vista.

    A viúva hesitou, ergueu os olhos que ainda estavam

    baixos, tentou dizer alguma coisa, olhou para o padre, tornou

    a olhar para o irmão, mas não conseguiu dar nem mais um

    passo.

    Conhecendo bem a timidez da irmã e o quanto ela

    havia sofrido com aquele seu casamento sem filhos e com a

    incerteza da viuvez no Rio de Janeiro, João foi ao seu

    encontro e, muito embora Amália resistisse se encolhendo,

    assustada, abraçou a irmã com sincera ternura. Foi demais

    para ela.

    Dizendo palavras sem sentido, soltas e vazias,

    Amália chorou como há muito tempo não fazia. Apertou o

    irmão contra o peito sem coragem de encará-lo de frente. Até

    padre Antunes ficou comovido e quase eufórico.

    - Deus seja louvado. Deus seja louvado! – Dizia o

    cura sem parar.

    38

    O ESPELHO EM PEDAÇOS

    Ouvindo os soluços da tia, o menino Pedro saiu da

    cadeira onde estava na sala ao lado e veio se juntar aos

    adultos. Não teve como deixar de achar estranho a tia, sempre

    tão amarga e dura, chorando nos braços do pai e este, por sua

    vez, tão sombrio desde a morte de esposa, dizendo palavras

    de consolo para ela e sorrindo de sincera satisfação.

    Pedro pôde notar que entre os irmãos havia uma

    imensa vibração de afeto. Eles não estavam apenas abraçados

    um ao outro, mas realmente unidos por uma energia muito

    intensa. Se o menino Pedro pudesse ver através da bruma dos

    tempos, saberia que aquele gesto se repetia ali quase que

    exatamente como já tinha acontecido mais de uma vez. Mas

    para o garoto de treze anos, aquilo era apenas uma certeza,

    pura, simples e inexplicável. Uma coisa óbvia. Ao menos

    para ele, no fundo de sua

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