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E-book588 páginas8 horas

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Sobre este e-book

Já com vários livros publicados, Limite é uma incursão do autor em um romance em realismo fantástico, englobando conspirações, agressão ao meio ambiente, reação de forças da Natureza, política, religião etc. Tudo muito bem costurado e baseado em ampla e profunda pesquisa. A trama, em futuro próximo, mas indeterminado, começa com um projeto agrícola de muito grande porte que para se tornar viável precisa expandir as fronteiras agrícolas sobre áreas protegidas. Mas tudo tem seu preço. Forças da Natureza reagem a estas tentativas de destruição ambiental que já não é pequena no país. Mas, até que ponto, o homem, já além do bom senso, aumentaria a agressão ao meio ambiente? A partir de que ponto a Natureza reagiria? De que forma? Como governos, religiões, acadêmicos explicariam essa reação ou mesmo a existência de Forças da Natureza capazes de reagir? Essas são as questões que o autor desenvolve numa história cheia de possibilidades. Possível? Bom, o tempo dirá. O certo é que caminhamos em passos céleres para nossa própria destruição. Talvez a reação da Natureza às agressões que vem sofrendo seja o fim que nós mesmos preparamos destruindo nascentes, envenenando águas, terras, animais e plantas, derrubando matas, enfim, tudo fazendo para nos matarmos de fome e sede. Talvez as forças da Natureza que possam barrar as destruições sejamos nós mesmos. Uma leitura que vale a pena e nos leva a pensar.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de jul. de 2017
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    Limite - Luiz Carlos Marasco

    Copyright © 2017 by Luiz Carlos Marasco

    Capa e Formatação Gráfica

    Gustavo Marchetti

    Foto da Capa

    Luiz Carlos Marasco

    Revisão

    Luis Carlos Calil

    Os personagens, falas e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção. Personagens públicas eventualmente citadas, além de falas e situações a eles creditados o são em contextos exclusiva e tão somente ficcionais.

    [2017]

    Todos os direitos desta edição reservados à

    Luiz Carlos Marasco

    luiz.marasco@gmail.com

    Aos diletos amigos

    Miriam Sprecher, Pedro Luiz Andrade Boemer,

    Renata Beiro, Renê Germiniani, Vilma Madeira,

    e tantos mais que, por falha nossa, acabaram não mencionados,

    meus agradecimentos pelo incentivo

    muitas vezes insistentes para que eu terminasse este livro.

    Meus agradecimentos ao

    Pr. Irland Pereira de Azevedo da Igreja Batista da Liberdade

    que gentilmente nos orientou sobre questões ecológicas

    viz-à-viz o Livro da Genesis do Antigo Testamento

    Agradecimento especial ao amigo Luis Carlos Calil

    que gentilmente fez a apresentação e realizou a revisão de todo o texto

    Agradecimento muito especial ao meu sobrinho Gustavo Marchetti que gentilmente fez a editoração, formatação gráfica e capa

    Sem essas amizades e apoios esse livro não teria acontecido

    Eu vi o Homem

    Uma mata derrubar

    Vi uma nascente morrer

    Pela sombra que não há¹

    Capítulo 01

    Roberto fechou a porta da toalete da diretoria da ConsAgra, no oitavo andar do prédio da Rua Bela Cintra², a duas quadras da Avenida Paulista³, em São Paulo⁴. Uma rápida olhada em volta, confirmou que estava sozinho. Não precisava, mas abriu a torneira da pia. Felizmente, ele podia deixar a torneira aberta, agora que a crise de água que atormentara o estado de São Paulo⁵ havia sido superada já há alguns anos depois da saída daquele que parecia ser governador eterno do estado. Ter torneiras sem temporizador nos lavatórios era um dos pequenos luxos a que a diretoria da ConsAgra tinha direito. Não havia desperdício propriamente dito, uma vez que o prédio tinha um poço artesiano próprio, coletava água da chuva e reciclava a água utilizada em todos os lavatórios. Roberto considerou que o momento justificaria alguma despreocupação com desperdício que não seria muito, afinal. Já tinha passado por aquela situação antes: se chegasse alguém, poderia rapidamente disfarçar levando as mãos até a água e fingir que as lavava. Era justificável. O que queria mesmo era olhar sua imagem no espelho. Estava contente consigo mesmo e precisava se ver, mais uma vez, como aquele sujeito que todos olham e apontam como o que tinha trazido o grande projeto de consultoria para a empresa. Aquele que havia motivado grandes grupos agropecuários nacionais e dois multinacionais a contratar os serviços da ConsAgra depois da palestra que havia realizado meses atrás.

    A ConsAgra era uma empresa de consultoria empresarial especializada no agronegócio e que oferecia aos seus contratantes estudos e indicadores sobre tendências nacionais e internacionais naquela indústria. Também realizava projetos especiais por encomenda e, de tempos em tempos, organizava seminários sobre projetos, problemas ou tendências no campo. A diretoria era composta por quatro engenheiros agrônomos que ocupavam a presidência e as diretorias técnica, administrativa e financeira, e de análises de dados. Roberto, também engenheiro agrônomo, mas com especialização em economia internacional, era vinculado a esta última e preparava relatórios de análise de evolução e de tendências de indicadores.

    Mas agora tudo iria mudar. Chega daqueles repetitivos boletins de tendências de mercado. Agora era a vez de um grande projeto, o maior do Brasil. E fora ele quem havia proposto.

    A proposta original levava em consideração a situação econômica antes da crise financeira mundial do final da primeira década do século XXI. O crescimento econômico nos países emergentes levava a um aumento da renda per capita de suas populações e certamente provocaria um aumento de demanda por alimentos e outras commodities⁶. O mesmo crescimento melhoraria a confiança na capacidade destes países em honrar as importações que fizessem para atender suas necessidades. O aumento da demanda, por outro lado, provocaria um aumento dos preços das commodities. A oportunidade estava no potencial de crescimento agropecuário que, em termos mundiais, só era possível no Brasil⁷ e Argentina⁸, com considerável vantagem para o primeiro principalmente por conta do clima e da disponibilidade de água. Este era o projeto: alavancar o agronegócio brasileiro aproveitando o momento do aumento da demanda e as possibilidades de crescimento da área no Brasil.

    A ideia era conseguir um aumento na safra maior do que o que viera posteriormente em 2010/11 e que já havia sido bem expressivo. Isto teria que ser obtido principalmente com a expansão das plantações de soja e outros grãos, mas principalmente da soja, uma vez que os técnicos informavam que a substituição das plantações de soja pelas de milho nos EUA⁹ aliada ao crescente consumo na China¹⁰ e Índia¹¹ aumentava a lucratividade da soja brasileira. Mas não bastava aumentar a área plantada (e isto não ocorria de forma significativa no Brasil há décadas), era preciso aumentar também a produtividade por hectare e o caminho para isto era usar e abusar de novas variedades transgênicas, fertilizantes, defensivos, além de muita mecanização e, se possível, total. Roberto conseguira vender o projeto para grandes grupos nacionais e multinacionais. Todo o ciclo fora coberto. Desde o preparo da terra até a infraestrutura de armazenagem e transporte, passando pelo acordo com as multinacionais que forneceriam as sementes, fertilizantes e implementos. Tudo fechado e coberto. Roberto recebia sorrisos e tapinhas nas costas dos diretores da ConsAgra que antes nem sabiam seu nome.

    Mas veio a crise financeira mundial de 2008 e com ela o desabamento das cotações dos preços das commodities. A crise se anunciou no segundo semestre de 2007 com o fim da bolha especulativa no mercado imobiliário dos Estados Unidos e começou a se espalhar internacionalmente. Finalmente, com a queda do Lehman Brothers¹² em setembro de 2008 arrastando outros importantes bancos americanos, europeus e até asiáticos, no chamado setembro negro da economia mundial, a crise se explicitou e explodiu levando o mundo todo a uma recessão e crise sem precedentes na história, e com efeitos que já perduraram por mais de uma década. Nada era localizado. Com a intensa globalização e internacionalização de mercados o problema afetava o mundo todo. E, pior de tudo, o projeto de Roberto era baseado num aumento de oferta de commodities para atender uma esperada demanda crescente, e a crise mundial balançou o projeto e a situação de Roberto na empresa.

    Roberto precisava encontrar uma saída e salvar sua proposta. Analisou todas as notícias que chegavam sobre os centros mais afetados com a crise, sobre os preços internacionais, sobre as medidas tomadas pelas principais economias e sobre a situação dos países emergentes, principalmente a China e Índia.

    Concluiu, para justificar a proposta de crescimento de volumes, que a demanda por enorme quantidade de grãos, necessários para atender os mais de 1,4 bilhões de chineses e um pouco menos de hindus, ainda existiria. Os preços iriam se recuperar, mas dificilmente chegariam perto dos patamares pensados para a proposta original, pelo menos no médio prazo. O problema era viabilizar a relação entre os custos envolvidos para o projeto e os preços desanimadores que estavam sendo praticados.

    Nem todas as notícias eram ruins para o projeto. O desastre ecológico da British Petroleum no Golfo do México em 2010¹³ que destruiu a fauna e flora do sul dos EUA, e com elas a indústria pesqueira da região, provocara uma enorme pressão política e popular contra o uso dos combustíveis fósseis e isto aumentara a pressão sobre os preços do milho e outros grãos usados para os biocombustíveis. E ainda podiam contar com as frequentes quebras das safras de grãos russas.

    Mais uma vez concluiu que haveria alguma recuperação de preços, mas a viabilização do projeto exigiria redução drástica de custos para tranquilizar os investidores que temiam novos tropeços no futuro.

    Se não havia muito que fazer com as sementes, pois parecia haver um limite genético de aumento de produtividade que estava próximo de ser atingido, a queda de preços do petróleo poderia reduzir os custos dos fertilizantes. Mas não era suficiente. Se houvesse alguma recuperação de preços das commodities, o petróleo iria subir também. Era preciso cortar mais e isto só seria possível cortando o preço da terra. E para isto só havia um jeito: expandir a área plantada para onde a terra fosse muito barata, ou seja, nas áreas de floresta tropical¹⁴ e cerrado¹⁵ no centro-oeste¹⁶ e parte da região norte¹⁷ do Brasil. Não se poderia invadir a Amazônia¹⁸, pelo menos não muito, para evitar os ataques dos crescentes e cada vez mais influentes grupos e ONGs ecológicos. Era preciso se antecipar e usar as áreas de pastagens já degradadas antes que alguma iniciativa governamental desse incentivo a projetos de recuperação de matas nativas. Era preciso aproveitar o desconhecimento do que era de fato a Amazônia Legal¹⁹ e da menor importância que se dava a outras regiões ainda preservadas de florestas de Mata Atlântica²⁰ e de cerrados. Era preciso aproveitar a ansiedade por investimentos e desenvolvimento dos governadores e prefeitos do Mato Grosso²¹, Mato Grosso do Sul²², Goiás²³, Tocantins²⁴, Maranhão²⁵, Piauí²⁶, Pará²⁷, Amapá²⁸, Amazonas²⁹, Rondônia³⁰, Roraima³¹ e Acre³². Havia algumas restrições técnicas em termos de infraestrutura de transporte, qualidade do solo e mesmo de preço em algumas áreas, mas com certeza dava para fazer muita coisa. Roberto estimava ser possível obter até mais 25% de terras agriculturáveis com preços baixos. Isto significava pelo menos mais 10 milhões de hectares de plantações, ou um aumento de algo em torno de 30 milhões de toneladas na produção de grãos em um ou dois anos. Sendo pessimista, pelo menos mais de 20 milhões de toneladas ou um aumento de 14% na oferta de alimentos para um mundo disposto a comprar. Pagando menos, mas ainda com fome. Se ainda alguém levantasse algo sobre a falta de financiamentos internacionais para as operações de exportação, ele lembraria as enormes reservas acumuladas pelos principais compradores, principalmente a China, mas até mesmo o Brasil, que além de se tornar o principal financiador da implantação do projeto, poderia ser convencido a ser o grande financiador das operações de exportação, já que a exportação de grãos poderia ser literalmente a salvação da lavoura para o próprio governo. Os ganhos políticos para todos, governo central, governadores e até prefeitos, situação e oposição, seria a pedra de toque para convencê-los. Tudo isto sem falar nos chamados estímulos políticos não ortodoxos que poderiam ser utilizados à mão-cheia. Afinal, o Brasil era o país certo para estas coisas.

    Roberto partiu de suas conclusões para o convencimento da diretoria da ConsAgra e dos antigos parceiros do projeto original. Conseguiram a convocação de uma reunião com quase todos os parceiros envolvidos. O projeto perdera alguns empresários que acreditavam que a crise ainda demoraria a passar e seria muito profunda. Todavia, os que permaneceram queriam dar uma nova chance ao consultor que havia formatado o projeto original. Concluíram que se o projeto era bom antes, talvez pudesse ser viável agora, mesmo com a crise. E do jeito que andava o mundo, já que se avizinhava uma terceira onda de quebradeira de países arrastando bancos, mesmo que o projeto fosse menor que antes, ainda merecia ser analisado. Se fosse o caso, poderia ficar engavetado até nova oportunidade. Por outro lado, se a crise passasse logo, seria melhor ainda: haveria subida de preços, os custos estariam lá embaixo, o mundo estaria com fome e eles teriam muito que vender. A aposta valia o risco. Valia a pena ouvir o consultor da ConsAgra e era essa a esperança de todos: que Roberto trouxesse uma solução. E Roberto tinha o que propor e sabia como defender suas ideias.

    Roberto deu um último sorriso para o espelho. Um diretor, Jorge, diretor técnico, entrou no toalete e Roberto rapidamente completou o que teria sido o final da lavação de mãos. Retribuiu o sorriso preocupado do diretor enquanto enxugava as mãos. O olhar do diretor deixava claro que havia muita ansiedade na sala de reuniões.

    É melhor se apressar, aconselhou Jorge. Todos já chegaram. E é bom que você faça uma boa apresentação ou não vai sair vivo de lá.

    Já estou indo, disse Roberto. Fique tranquilo que eu estou muito seguro. E saiu.

    A sala de reuniões era no mesmo andar e muito próxima da toalete usada. À medida que Roberto se aproximava da sala mais e mais ele podia ouvir o conversar das pessoas. Falavam um pouco alto o que confirmava a ansiedade reinante.

    A sala de reuniões era grande o suficiente para acomodar uma vintena de pessoas em volta da impecável mesa de madeira de lei, em confortáveis cadeiras de estilo moderno, mas de gosto duvidoso. Quase ninguém estava sentado. Em dois ou três grupos conversavam perto da enorme parede envidraçada que permitia ver os telhados das casas próximas. Num dos cantos, meio que esquecida, estava uma mesa com café e água, de que ninguém se servia. Na parede, em frente a uma das extremidades da mesa, havia um quadro-branco para projeção e um suporte para flip-chart³³. Havia pincéis coloridos, apagador. No teto, apontando para o quadro branco havia um projetor de última geração. A ponta do cabo de conexão ao projetor aparecia por uma abertura no tampo da mesa, juntamente com um controle remoto. Na mesa, no centro, no sentido do comprimento, apareciam algumas tomadas de energia para quem quisesse ligar um notebook e não ficar sem bateria. A sala ainda disponibilizava acesso à Internet sem fio, com boa velocidade de acesso e excelente sinal que era garantido por algumas antenas espalhadas pelo andar. Sobre a mesa ainda havia uma caneca com lápis e canetas além de folhas de papel branco.

    Roberto entrou na sala de reuniões e ganhou um significativo sorriso da secretária. Todas as conversas pararam e todos rapidamente se sentaram. Abel, o diretor presidente da ConsAgra fez a abertura da reunião, mas ninguém estava interessado nele. Todos queriam ouvir a nova proposta. Rapidamente o presidente passou a palavra e, então Roberto se levantou, ligou o projetor, pediu que fechassem as persianas verticais da parede envidraçada, o que era desnecessário, tal a qualidade do projetor, mas criava a dramaticidade que ele esperava. Conectou seu notebook ao projetor e mostrou seus levantamentos e números.

    Mostrou que mesmo a demanda por alimentos estando momentaneamente diminuída, ela ainda seria crescente no médio prazo e aceleraria no longo prazo; mostrou as consequências do acidente no Golfo do México pressionando de forma crescente os preços dos grãos; mostrou que os preços do momento não se manteriam por muito tempo; mostrou que ainda havia a crescente influência das mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global; mostrou que as safras de grãos do Canadá estavam mais fracas que o normal em razão das constantes chuvas e que isto deveria se manter nos próximos anos ou até mesmo se agravar; mostrou que por razão inversa, ou seja, seca extrema, o mesmo se dava com a Rússia, Ucrânia e Cazaquistão; mostrou que os acidentes climáticos do final de 2010 e começo de 2011, que haviam arrasado a produção de grãos australiana, iriam se repetir; mostrou que o mesmo professor Nouriel Roubini³⁴ que previu a crise de 2008, estava prevendo uma crise de abastecimento com aumento crescente do preço das commodities, grãos obviamente incluídos; mostrou que o projeto ainda era viável, mas poderia ser melhorado com ajustes de custos para garantir o curto prazo; mostrou que não era possível avançar nos custos envolvidos nas sementes e no aumento da produtividade, que a queda dos preços do petróleo já reduzia os custos dos fertilizantes e que o terceiro ponto de custos é que deveria ser atacado: reduzir o custo da terra. E o meio para isto seria a expansão das fronteiras agrícolas para o norte e centro-oeste.

    Neste ponto houve um frisson³⁵ na sala de reuniões. Todos queriam falar ao mesmo tempo lembrando as dificuldades para avançar para o norte e centro-oeste por causa da legislação ambiental e pressão ecológica internacional. Esta reação preocupou a diretoria da ConsAgra que olhava assustada para Roberto. Este esperou diminuir o ruído e retomou a palavra. Ele estava realmente preparado.

    Lembrou a todos que a legislação poderia ser alterada. Lembrou que a senadora da CNA³⁶, agora sem tantas brigas com o governo, aliás, até com alguns afagos depois da criação do novo partido, era liderança forte no Congresso para provocar a mudança e que mesmo alguns expoentes esquerdistas se renderiam a alguns bons agrados, apoio para alguns cargos importantes e bem remunerados votos no Congresso, além dos sempre presentes financiamentos de campanha. Isto já havia sido feito em 2010 quando reduziram as restrições para desmatamento e manutenção de mata ciliar³⁷. Só precisavam de uma pequena alteração que se estendesse os privilégios dos pequenos agricultores para os médios e grandes. Por conta da isonomia de tratamento até o Judiciário apoiaria. E ainda poderiam avançar no período normalmente seco, de julho a setembro, quando ocorrem milhares de queimadas no país e ninguém pergunta por que elas ocorrem. Lembrou como era fácil contar com o apoio da imprensa acenando para as necessidades para o desenvolvimento do agronegócio. Lembrou como os comentaristas econômicos disputavam entre si quem rendia mais homenagens aos empresários do agronegócio. E quanto à pressão internacional, a fartura de grãos aliviaria a discussão. Haveria alguns problemas, é claro, mas seriam localizados e rapidamente resolvidos. Qualquer ecochato³⁸ seria facilmente silenciado com um financiamento para um projeto aqui ou acolá, uma reserva assim ou assado. Mesmo aquela ex-senadora do Norte, mais tinhosa e recalcitrante na defesa quase religiosa da legislação ambiental, ficaria isolada e rapidamente cederia. Isto também já acontecera antes com a questão de Belo Monte, por exemplo, e podia ser feito novamente.

    Alguns ainda perguntaram por que insistir nos grãos e não partir para a cana e produção de etanol ou de biodiesel, já que a tendência era a substituição do petróleo. Roberto lembrou que o objetivo do projeto era fazer algo que os outros países não poderiam fazer. Oferecer algo sem ou com pouca concorrência. Os EUA, a Europa e até a África poderiam produzir etanol ou até poderiam inventar carros movidos à água, mas só o Brasil e a Argentina poderiam aumentar sua produção de alimentos o suficiente para atender a demanda do mundo, principalmente da China e Índia os quais, com crise ou sem crise, continuariam comprando e tendo dinheiro para comprar. Lembrou também que o potencial de crescimento para o Brasil era muito superior ao da Argentina, levando-se em consideração a extensão territorial, o clima, disponibilidade de água e a situação econômica dos dois países.

    Alguém lembrou que a crise de 2008 ainda manteria a quase recessão mundial por alguns anos e que isto manteria os preços das commodities baixos. Roberto retrucou que se a crise se aprofundasse como todos estavam prevendo, dada a atual situação de vários países europeus, particularmente a Grécia, Espanha e Itália, e arrastando com eles vários bancos importantes, a crise seria longa e isto, de fato, afetaria para baixo o preço das commodities. Por outro lado, com o aumento do risco mundial e com a inevitável recuperação econômica dos EUA, o dólar se valorizaria em relação ao real, o que compensaria uma eventual redução de preços. Havia, é claro, o risco contrário, de os países mais afetados pela crise, precisando salvar seus bancos e reativar suas economias, injetarem muito dinheiro em seus mercados internos como já fizera os EUA. Se isto acontecesse, muito provavelmente esse dinheiro viria buscar rentabilidade nos países emergentes, Brasil incluído, o que poderia provocar desvalorização do dólar e afetar as exportações pretendidas. Todavia, a maior aposta deveria ser feita para migração de capitais para o dólar por conta da recuperação econômica dos EUA e do susto com a crise, e isso manteria a relação dólar x real favorável às exportações do projeto.

    Roberto lembrou que os principais compradores de alimentos, Índia e China, não haviam sido muito afetados pela crise e que a crise econômica havia sido contrabalançada com as reviravoltas da Primavera Árabe acontecidas no Oriente Médio: a menor oferta de petróleo aumentando os preços do óleo, aumentava a pressão sobre os grãos para a produção de biocombustíveis, diminuindo a oferta para alimentação e agroindústria, o que, finalmente, voltava a aumentar os preços dos grãos. Lembrou, por fim, que até mesmo o Brasil estava ajudando este desvio da utilização dos grãos, tendo que importar etanol dos EUA.

    Esta última frase provocou na mesa uma troca de olhares de reprovação silenciosa às políticas agrícolas brasileiras.

    Roberto ainda lembrou que o projeto poderia levar vantagens com a prevista, embora temporária, redução dos preços do petróleo, já que baixaria também os custos dos defensivos e fertilizantes. Além do mais, os outros fatores mencionados manteriam os preços dos grãos em um patamar que garantiria o retorno.

    Aos poucos todos foram fazendo expressões de concordância. Ainda pediram alguns números e projeções que Roberto rapidamente mostrou. Mais um pouco e apareceram alguns sinais de entusiasmo e logo todos estavam convencidos. Roberto, mais uma vez, vencera. O projeto novamente se aprumou. Os empresários remanescentes cobririam os investimentos que seriam feitos pelos que deixaram o projeto. Na verdade, o dinheiro viria do governo, como sempre, mas eles assumiriam os riscos dos contratos e, é claro, os lucros.

    Alegria geral. Voltaram os sorrisos e tapinhas nas costas de Roberto. Rapidamente definiu-se a contratação da ConsAgra para detalhar os planos e os papéis de cada agente, com a exigência quase unânime de que Roberto ficasse à frente do projeto. A diretoria da ConsAgra respirou aliviada e a secretária piscou para o Roberto.

    Um dia fui passear

    Lá no reino encantado

    E em cima de um cupim

    Eu vi o Saci sentado

    Com os olhos cheios d’água

    Que há pouco tinha chorado³⁹

    Capítulo 02

    Antônio acordou e levantou rapidamente. Não precisava de despertador, mas nunca acordava depois das cinco da manhã. Parecia até que o primeiro clarão do céu, bem antes do Sol despontar, era o seu despertador. Vendo por outro lado, não havia grandes motivações para continuar na cama, já que no acampamento, quase no limite da mata naquele fim de mundo do sul do Pará, o calor e a umidade eram demais e o conforto da cama de campanha muito pouco. Preferia dormir em rede, mas daquela vez tinha que usar camas de armação. De qualquer maneira, sem o que fazer à noite, sempre dormia muito cedo, ele e seus outros seis companheiros do projeto. Além de qualquer coisa havia muito que fazer e já estavam atrasados. O projeto era grande, o ganho bom, mas só receberiam por trabalho feito e não por dia corrido. E o trabalho não andava.

    Antônio já de pé, vestiu o macacão até a cintura, as botas, e foi até o lavatório improvisado.

    Este lavatório não passava de alguns tambores plásticos de água colocados em cima de uma carreta puxada por trator, o único meio de transporte sobre rodas daquele lugar. Saindo dos tambores, havia um arranjo de mangueiras que terminava em uma ponta com uma torneira de onde se tirava a água para tudo o que precisavam: beber, lavar, cozinhar... A cabine do banheiro era uma armação que apenas protegia as vergonhas de quem usava o buraco sanitário que fizeram ao chegar.

    Buscar a água do aguapé que havia ali por perto, manter os barris cheios e limpos, além de preparar o rancho⁴⁰, era tarefa do José, ou Seu José, ou Seu Zé, ou simplesmente Zé, dependendo de quem chamava por ele, que era cozinheiro de mão cheia e que fazia milagres para ter sempre uma comida gostosa por lá. Parecia que conhecia cada folha, cada raiz, cada peixe e cada pequeno animal de caça que havia por ali, por mais escondidos que estivessem, e sempre conseguia dar uma bela incrementada nos suprimentos que haviam trazido da cidade.

    Antônio terminou de usar o banheiro, jogou um pouco de terra por cima e foi se lavar. Jogou água na cabeça, lavou o rosto, escovou os dentes, fez a barba e penteou os cabelos olhando no espelho minúsculo que estava pendurado por ali, terminou de vestir o macacão e foi para o barracão do rancho para o café da manhã.

    Pouco antes de chegar ao barracão já sentiu o aroma do café. Danado do Seu Zé. Aqui no meio do mato e parece que estou chegando num restaurante da cidade, ia pensando Antônio. E tinha café, e tinha leite, e tinha broa de milho, e tinha manteiga, e tinha até um pedaço de queijo minas e umas frutas que ninguém imaginava onde ele tinha conseguido. Tudo quentinho e fresquinho. Dava gosto de comer naquele rancho. Todos sentados na mesa elogiavam a comida olhando uns para os outros e sacudindo as sobrancelhas. Por mais que gostassem, ninguém nunca falava algo para o Seu José sobre a comida. Era o jeito deles. José sabia que gostavam e até já havia visto os elogios silenciosos, mas também ficava quieto. Era o jeito deles.

    Terminado o café, Antônio preparou e acendeu um cigarro de palha, suspirou e pensou "o que será que vai acontecer hoje? Dez dias que estamos aqui e só deu para trabalhar dois. Todo dia tem alguma coisa. Parece que encantado! " Olhou para Ramirez que estava pensando em coisa semelhante e depois para Raul que estava ainda mais desanimado.

    Cadê o Juca? E o Caio? Perguntou.

    O Caio ainda não apareceu e o Juca já foi para o campo. Disse que ia olhar as máquinas.

    Antes mesmo de a resposta terminar, Caio foi chegando. Depois de dar um bom dia sonolento para todos, atacou o café da manhã e, como os outros, também elogiou com as sobrancelhas e um sorriso. Perto do fogão, José também deu um sorriso. Era o jeito deles.

    Caio acabou o café, acendeu um cigarro e, como se ninguém tivesse pensado nisto, perguntou O que será que vai acontecer hoje?

    Os outros olharam para ele e sacudiram a cabeça.

    Vai saber... , resmungou Raul.

    Hoje não vai acontecer nada errado e vamos recuperar o tempo perdido. Não tem mais nada para dar errado. Já rasgou pneu de trator, já furou tanque, já soltou roda, já desconectou bateria e até o engate de corrente já quebrou. Chega! , falou Antônio.

    Foi aí que chegou o Juca e parecia preocupado.

    O que foi agora? , perguntou Antônio.

    Nenhum dos tratores quer funcionar. Quase acabei com as baterias e nada. Tentei na manivela e também nada, mas aí precisava de ajuda e vim chamar vocês.

    Pareceu um choque de fio desencapado. De um pulo todos saíram correndo e foram ver as máquinas que não estavam muito longe do barracão, coisa de menos de duzentos metros, mas, andando na picada aberta no mato, com aquela umidade e calor, parecia mais de quilometro. Antônio subiu no primeiro e Raul no segundo. Ligaram os motores que giraram, mas não pegaram. Tentaram de novo e nada. Uma terceira vez, mais demorada, e nada. Antônio mandou parar para não acabar com as baterias.

    Mas que merda que está acontecendo agora? Por que não pegam? Deixem as chaves ligadas e vamos na manivela. , comandou.

    E tentaram, e tentaram, e nada. O suor já pingava grosso do rosto de todos. Não só pelo calor e umidade que já eram uma grandeza, mas pela situação, pelo atraso no trabalho, pelo prejuízo de todos.

    Buscaram as caixas de ferramentas e foram tentar descobrir o que estava errado. Olha daqui, olha dali, mexe aqui, mexe ali, aperta aqui, aperta ali. Tenta, tenta e nada. Todos já estavam ensopados de suor com a manhã já perdida.

    Foi Caio quem acabou descobrindo o problema no primeiro trator: os cabos das velas e distribuidor estavam todos lá, mas conectados nos lugares errados. Não tinha motor que funcionasse desse jeito. Foram olhar o segundo trator e acharam a mesma coisa.

    Ninguém falou nada. Colocaram os cabos nos lugares certos e deram a partida. Os motores ligaram. Ninguém ainda falou nada, nem ficou contente, nem nada. Todo o resto que já acontecera podia ser creditado na conta do azar, mas não tem azar ou sorte que troque cabos de lugar. A explicação era uma só: sabotagem. Alguém não queria que o projeto andasse.

    Sem combinar nada, subiram nos tratores e os levaram para o rancho. Tinham que conversar.

    Antônio parou o primeiro trator, desceu junto com Raul e ficaram esperando o segundo, só que ele não chegou ao rancho, ficando parado há uns cem metros antes. Antônio apoiou as mãos na cintura e ficou esperando alguma explicação. Foi Ramires quem a trouxe: Parou. Morreu e não pega mais.

    Antônio subiu novamente no trator, ligou e voltou até o trator parado para rebocá-lo até o rancho. Trouxeram o trator e foram investigar o que era. Depois de muito procurar descobriram que o tanque estava cheio de terra e que as mangueiras estavam entupidas. O motor só tinha funcionado com o combustível que havia nas mangueiras. Quando precisou de mais, não tinha como chegar.

    Novamente, olharam uns para os outros sem dizer nada. Estava claro que havia sabotagem. Mas quem? Todos trabalhavam juntos e se conheciam há muito tempo para confiar totalmente uns nos outros. Mas não havia mais ninguém. Ou havia?

    Foi aí que Caio chamou a atenção dos demais para a poça de óleo embaixo do motor do primeiro trator. Não tinham percebido antes por causa do mato, mas agora, no terreno nu perto do rancho o problema ficou visível. Se usassem aquele trator mais um pouco, teriam perdido o motor.

    Sem dizer nada, entraram todos no rancho. Precisavam conversar. Seu José pôs uma garrafa de café e uns copinhos na mesa e todos sentaram em volta. Foi Antônio que começou Se foi algum de vocês é bom falar já que isto não tem graça nenhuma. Muito pelo contrário!

    E todos olharam para o Caio que era o gozador da turma.

    Nem vem com este papo que eu também estou no prejuízo, retrucou Caio.

    Era verdade. Fosse qualquer um deles, estaria dando prejuízo a si mesmo. Não fazia sentido. Tinha que ser alguém de fora. Mas quem? Desde que chegaram ao local não tinha ouvido ou visto nenhuma pessoa além do grupo deles mesmo.

    Combinaram que enquanto Juca e Ramires consertavam os tratores, os outros iam dar uma batida na floresta ainda em pé para ver se encontravam alguma pista. José ficaria para cuidar do almoço que já estava atrasado. E assim fizeram.

    Duas horas depois Antônio, Raul e Caio voltaram. Não encontraram nem um sinal de nada e de ninguém. Resolveram almoçar e depois todos ajudariam a finalizar os consertos nos tratores. Mais um dia perdido, mais atraso, mais prejuízo.

    Na mesa, todos estranharam que o almoço estava mais simples que o de costume e, ao contrário do que sempre faziam, perguntaram ao José Que houve Seu Zé? Perdeu a inspiração?

    Não é bem isto. Também tive problemas na cozinha, disse com a cara preocupada. Todos os ovos que peguei estavam estragados, o sal estava ensopado, o alho sumiu, outras coisas também e nem achei as caixas de fósforos. Usei meu isqueiro para acender o fogo. Fiz o que deu.

    A coisa era mais séria do que parecia. Fosse quem fosse quem estava aprontando não tinha medo de entrar no rancho.

    Mais uma vez, sem falar ou combinar algo, todos se levantaram e foram para seus guardados. Todos queriam suas armas. Pegaram as armas, mas não acharam as balas. E as armas sem as balas não serviam de nada.

    Não havia dúvidas, alguém estava dentro do rancho e queria sabotá-los. Pior, estava conseguindo.

    Voltaram para o rancho e resolveram mudar seus guardados, camas e tudo o mais para o rancho. Dormiriam e ficariam todos juntos. Fariam turnos de vigília. Além disto, um deles seria escolhido para pegar um dos tratores e ir até a vila mais próxima para ligar para o escritório em Belém para informar a situação e pedir ajuda. Assim combinados, Juca e Ramires voltaram aos tratores enquanto os demais fizeram as mudanças.

    Quando um dos tratores ficou pronto já passava das três da tarde, mas assim mesmo Antônio, o escolhido, foi para a vila. Iria gastar pelo menos duas horas para chegar até lá, ligaria para o escritório, dormiria por lá e voltaria na manhã seguinte com notícias.

    Quando terminou o conserto do segundo trator o dia já tinha acabado. O jantar foi semelhante ao almoço, muito mais simples que o habitual, mas ninguém comentou ou reclamou. Rapidamente ajudaram o Seu Zé a arrumar e lavar pratos e panelas, e voltaram a se sentar à mesa. O problema é que não havia muito que conversar. Como já estava escuro, resolveram deitar e tentar dormir. Organizaram a noite: fariam turnos de vigia de 2 horas e, por sorteio, o primeiro turno seria do Ramirez, depois seria Juca, Caio, Raul e por último Seu Zé. Mas não aconteceu nada ou, pelo menos, não perceberam nada de estranho no lugar. Só de manhã, quando foram pegar suas botinas e viram todos os seus cadarços trançados.

    *****

    Como sempre, o calor estava insuportável àquela hora da tarde no centro de Mato Grosso, a 300 km ao norte de Cuiabá⁴¹. Joel descansava à sombra de um cumaru⁴² enquanto pensava no que iria dizer ao pessoal do escritório da fazenda em Cuiabá sobre o que estava observando na plantação de soja. Também pensava se devia dizer alguma coisa. E se ele estivesse errado? Ele já tinha percebido algo semelhante na safra anterior, mas era coisa pouca. Um pé aqui, outro acolá. Agora parecia que a coisa iria derrubar a produção, pois dava para perceber em qualquer lugar que se olhasse. Talvez fosse só cisma sua, e fossem apenas plantas atrasadas, mas ele conhecia as manhas da soja. Pelo menos metade da plantação estava daquele jeito. Era sempre a mesma história, a plantação brotava, subia, abria as folhas, parecia que ia florir, mas parava no botão. E se não floria, não dava vagem, e se não dava vagem, não dava grão. Era prejuízo certo. Além disto, e já não era pouco, estavam aparecendo ervas daninhas que não deveriam aparecer, já que haviam usado muito do tal herbicida glicosado⁴³ que haviam recebido com a promessa de nunca mais ter problemas com as ervas daninhas. Promessa maior ainda: podiam aplicar sem medo que a soja modificada era resistente a estes herbicidas.

    Joel era meio como São Tomé: ver para crer. E agora, com o que estava vendo, não estava acreditando nem um pouco. Alguma coisa não estava funcionando. Ou a soja não era tão boa assim, ou o tal herbicida, além de não matar o que devia, afetava as plantas e elas não davam grão, ou alguma outra coisa estava acontecendo e ele não tinha ideia do que poderia ser. Decidiu que não iria chegar à conclusão alguma naquela hora e resolveu encerrar o dia. Subiu no trator e voltou para a sede.

    Gustavo, o agrônomo mandado pelo escritório estava esperando Joel sentado na varanda da sede com uma guampa⁴⁴ de tereré⁴⁵ na mão esquerda para espantar o calor. E o mate gelado do tereré ajudava bastante. Quando Joel subiu à varanda ele só acenou com a mão livre: estava muito quente para levantar. Joel entrou na sede, foi até a cozinha, reabasteceu sua garrafa térmica com a água gelada, e voltou à varanda, sentou-se em uma cadeira perto do agrônomo, e preparou sua própria guampa de tereré.

    Hoje está de rachar de tão quente, disse o visitante, sorvendo mais um pouco do tereré.

    Joel, como a maioria de lá, sabia que estava quente, sempre estava quente. Considerava este tipo de comentário desnecessário, próprio de quem não era de lá. Fez uma careta disfarçada, mas resolveu não responder. Esticou as pernas e tomou um belo gole. A bebida desceu sua garganta de forma deliciosamente refrescante. Era o necessário para criar coragem para conversar com o agrônomo.

    Como estão as coisas nas outras fazendas? Tudo normal? , perguntou Joel.

    Gustavo olhou para Joel sem virar a cabeça como se ficasse imaginando a razão da pergunta e respondeu sem grandes explicações Tudo em ordem. Um probleminha aqui, outro ali, mas tudo normal. Agora é só esperar mais um mês e começar a colheita. Tomara que não chova muito. Se bem que podia dar um refresco neste calor.

    Se chover abafa ainda mais, respondeu Joel para torturar Gustavo. Aqui é sempre assim. Tem que acostumar ou ir embora.

    Gustavo fez de conta que não havia entendido a intenção do comentário e perguntou "Por que a pergunta? sabendo de alguma coisa? "

    Não, não. Nada mesmo. Só puxando conversa ... , respondeu Joel.

    Gustavo balançou um pouco a cabeça e continuou olhando além da varanda. Dali dava para ver boa parte da plantação e ela estava com um verde muito bonito e uniforme.

    A plantação está bonita. A safra vai ser boa, comentou.

    Tomara, respondeu Joel.

    Não tem jeito. Com estas sementes e com estes novos herbicidas não tem erro. Se não tiver problemas com o tempo, a colheita é certa. E com muito boa produtividade. Você vai ver.

    Tem uma coisa que me preocupa. Pode ser apenas uma cisma e nem queria falar, mas ...

    Fala ... O que é?

    Olha, eu não sou agrônomo, mas conheço plantação de soja há muito tempo e sei como as plantas se desenvolvem. E eu acho que vamos ter problemas.

    Por quê? , perguntou Gustavo agora bem interessado e olhando de frente para Joel.

    Tem muita planta que não vai florir, disse Joel.

    Gustavo arregalou os olhos e perguntou: Por quê?

    Porque eu não sei. Isto é coisa aí com você. Mas que vamos ter problemas, vamos.

    Explica Joel.

    E Joel contou que já tinha percebido isto na safra passada, mas com poucas plantas. Agora ele estava percebendo em muitas e espalhadas por toda a plantação. A planta brota, cresce, fica cheia de folhas e brotos, mas a maioria dos brotos não vira flor e, sem flor, não vêm vagens, e sem as vagens, não tem grão.

    Eu não percebi isto antes ..., disse Gustavo.

    Joel olhou Gustavo com um olhar meio crítico e disse É que é preciso andar no meio da plantação para perceber. Daqui da varanda não dá para ver.

    Gustavo não pode disfarçar o constrangimento, já que Joel havia sido muito claro na crítica. E que era certeira, ele não podia negar. Resolveu reagir Hoje não dá mais tempo, mas amanhã logo cedo vamos ver esta história.

    Joel concordou balançando a cabeça e não voltaram mais ao assunto. Mais um pouco e Joel se levantou para um banho antes do jantar, o que foi uma boa desculpa para encerrar a conversa. Jantaram só falando da comida e de comidas. Terminaram, conversaram ainda um pouco e logo Joel foi se deitar. Gustavo ainda ficou um pouco, vendo TV.

    No dia seguinte, logo depois do café, subiram num trator e foram até a plantação. Joel mostrou a diferença que ele estava percebendo nas plantas e o agrônomo teve a oportunidade de mostrar algum conhecimento, para surpresa de Joel. Mesmo assim Joel só ficava olhando o suor empapar a camisa do agrônomo. Este cara vai ter um treco aqui e vai me dar trabalho, pensou Joel.

    Gustavo percebeu que em muitas plantas os brotos não estavam se desenvolvendo como esperado, embora a própria planta e as folhas estivessem normais e aparentemente sadias. Com uma lupa que Joel não sabia de onde ele havia tirado, procurou por sinais de algum inseto ou fungo, mas não encontrou nada. Resolveu colher algumas amostras para enviar ao laboratório, para análise.

    Isto pode ser sério, foi o único comentário que fez.

    *****

    A reunião estava tensa. As notícias não eram boas. Estavam aparecendo problemas em todas as frentes do enorme projeto que alcançava várias fazendas em vários estados. Era muito azar, muita incompetência, muita coincidência ou muita qualquer outra coisa, mas já começava a preocupar.

    Era normal que uma frente de desmatamento encontrasse resistência de ecologistas ou posseiros ou índios ou igrejas ou de qualquer outro grupo. Era normal que houvesse eventualmente problemas com o desenvolvimento de algumas plantas. Era normal equipamento quebrar, pessoas se demitirem, adoecerem ou até morrerem. Era normal ter seca ou cair chuvas em excesso, ou pragas etc. Enfim, era normal ocorrerem problemas aqui e ali, mas não de todo tipo, em todos os lugares e tudo ao mesmo tempo.

    Quando chegou a notícia da sabotagem no Pará, a solução era fácil: polícia para botar ordem que era para isto que pagavam todas as propinas. Mas a polícia foi até lá, não encontrou nada nem ninguém para prender, ou bater, ou pior. Apesar disso, comeram e beberam o que tinham no rancho e foram embora. Mas foi o tempo de saírem e os problemas recomeçarem.

    Dois laboratórios caros e cheios de técnicos e equipamentos não souberam explicar o que estava acontecendo com as plantações em Mato Grosso e que começou a também aparecer no Maranhão e Tocantins. O fornecedor das sementes não encontrara problema semelhante em nenhum outro país e não sabia o que dizer ou fazer. O fornecedor dos fertilizantes dizia que os

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