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O Voo Do Vagalume
O Voo Do Vagalume
O Voo Do Vagalume
E-book325 páginas4 horas

O Voo Do Vagalume

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Sobre este e-book

O que somos capazes de fazer por vingança? O quão egoísta podemos ser em busca de nossos objetivos? A ambição nos transforma ou nos revela? Cecília é uma jovem que mora com o avô em uma humilde vila no interior de São Paulo. Cansada de sua vida monótona, vê no retorno do misterioso Abelard a chance de encontrar as respostas de que precisa para os segredos que envolvem sua família. Vendo sua vida virar de cabeça para baixo ao se envolver em um círculo de mentiras em que descobre que nem tudo, nem ninguém, é o que parece ser, ela decide por conta própria e a qualquer custo reescrever a história de todos que a cercam.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de set. de 2018
O Voo Do Vagalume

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    O Voo Do Vagalume - Vitor Zanardi Pires

    Todos veem o que você parece ser, mas poucos sabem o que você realmente é - Nicolau Maquiavel

    Achava, enfim, que pudesse sentir algum tipo de prazer naquela cena. Não que ver uma pessoa amarrada em um poste, com os membros inferiores quebrados e o rosto completamente desfigurado fosse prazeroso.

    Na verdade, achou aquilo nojento. Esperava que o resultado pudesse ser mais eletrizante, algo que arrepiasse seu corpo, mas não. Poderia, ao menos, ser reconfortante, mas também não era. Sentiu indiferença. Um pouco de pena, talvez?

    Quem era mais doente afinal, alguém capaz de sentir prazer naquilo tudo ou alguém que se mantinha impassível e forte perante o sangue e a morte. Podia continuar indiferente, mas não forte, e então, desmaiou!

    CAPÍTULO 1

    PRESENTE

    Abelard acordou cedo, como de costume. Não gostava de fazer caminhadas e achava que possuía uma forma física invejável para os seus 56 anos. No entanto, como o médico sempre lhe incentivava (na verdade, preferia dizer que lhe enchia o saco), decidira incluir essa atividade em seus hábitos.

    De fato, muitas mulheres, inclusive as mais jovens, olhavam para ele com certo desejo. Preferia acreditar que toda aquela atenção fosse por conta de seu porte físico e não pelo seu dinheiro, que supunham ser muito. Independente disso, gostava de ser admirado. Depois que sua mulher foi embora, sua amargura e baixa estima tornaram-se mais latentes. Receber olhares na rua funcionavam como uma espécie de terapia, um sinal de que ainda estava vivo.

    Após alguns quilômetros e muitos minutos, sentiu uma repentina necessidade de voltar para casa e se enfiar debaixo de uma ducha de água gelada. Correu um pouco mais rápido.

    Ao chegar ao portão de sua casa, exausto, notou que havia um bilhete em sua porta. Essa era a maneira de lhe darem recados.

    Abelard detestava telefones e a ideia de poder ser encontrado a qualquer momento. Apreciava seu isolamento. Além disso, não possuía muitos conhecidos ou amigos, o que excluía qualquer necessidade de possuir um aparelho barulhento e irritante que transforma as pessoas em zumbis modernos.

    Abelard pegou o pequeno papel nas mãos, bufando ao ler as poucas palavras escritas, e levemente incomodado com o fato de ter que sair de casa novamente. Tinha programado uma tarde inteira de leituras.

    O homem tomou seu tão desejado banho, colocando roupas leves e confortáveis. O calor de Cerro era infernal em qualquer época do ano e em qualquer período do dia, mas em março, às 11 horas da manhã, podia ser pior.

    Saiu de casa em direção ao centro da cidade, a pé. Se ele soubesse que haveria de sair de casa novamente, sob aquele sol, teria economizado alguns metros em sua caminhada matinal. Talvez compense amanhã, pensou ele.

    Abelard parou em frente à pequena porta de vidro do escritório, tomando coragem para entrar. Detestava cuidar de assuntos burocráticos e gostava bem menos de ser obrigado a socializar.

    - O que precisa?

    - Bom dia para você também, Abelard - disse Guilherme, sentado em sua cadeira atrás de uma mesa típica de escritório.

    - Desculpe, bom dia para você também - resmungou Abelard.

    - Algum problema ou é apenas sua irritação habitual? - caçoou.

    - Você sabe como essas coisas de contas e papelada me irritam. Por isso te pago, aliás - falou.

    - Sim, e faço tudo o que está ao meu alcance, mas dessa vez infelizmente isso não será possível - explicou Guilherme.

    - Por quê?

    - Estamos com um pequeno problema em uma de suas casas de Paraíso e acho que terá que resolver isso pessoalmente.

    - Acha ou tem certeza?

    - Tenho certeza.

    A ideia de voltar àquele lugar lhe causava frios na espinha. Sua desilusão acontecera lá, início, meio e fim. Há quase 20 anos, Abelard havia deixado Paraíso para sempre. Essa era a promessa que fizera a si mesmo, nunca mais voltar.

    - Mas você tem uma procuração! - esbravejou Abelard - Até onde eu sei, esse documento serve para isso, não?

    Guilherme tentou argumentar, mas Abelard não deixava margem para explicações. Alegou que a procuração era suficiente para ele representa-lo e que em hipótese alguma iria até Paraíso.

    - Não quero e fim de papo - sentenciou Abelard.

    Guilherme suportava Abelard desde a sua chegada a Cerro, quieto e misterioso. Especulavam que ele era muito rico e que havia sido abandonado por sua mulher e filhos após eles descobrirem que ele fora espião de Hitler.

    Sobre os mitos criados em torno de Abelard, Guilherme não tinha o que dizer, na verdade duvidava da maioria deles. Sobre seu dinheiro, no entanto, ele tinha plena certeza de que era real.

    Abelard era, de longe, o melhor cliente do escritório de contabilidade de Guilherme. Em uma cidade onde a alta sociedade era formada basicamente pelo prefeito, pelo gerente do banco, por alguns agricultores e donos de mercados, farmácias e lojas, o mal humor de Abelard era irrelevante perto de sua pequena fortuna.

    - Abelard, eu sou contador, não advogado - explicou o homem.

    - Não estou entendendo.

    - O pessoal da prefeitura de Paraíso me ligou ontem à tarde. Explicaram que precisam falar com você sobre uma desapropriação ou demolição de uma de suas casas. Não entendi muito bem. O problema é muito mais jurídico do que contábil.

    - Desapropriação?! Que diabos, era só o que me faltava - contestou o homem.

    - Por isso pedi para conversar com você.

    - Tudo bem, se a questão é jurídica, o Dr. Honório que se vire. Porque ele não está aqui?

    - O Dr. Honório está doente, não conseguirá te auxiliar - disse Guilherme.

    - Então, tudo bem, vamos esperar que ele melhore.

    - Não acho que seja possível - lamentou o contador.

    - Como não? - questionou Abelard, cada vez mais irritado.

    Guilherme então explicou que o advogado se encontrava com sérios problemas de saúde e que estava pensado inclusive em se aposentar.

    - O pessoal da prefeitura de Paraíso me esclareceu que o processo de desapropriação está tramitando em caráter de urgência.

    - E daí? - esbravejou Abelard.

    - Não acho que conseguiremos achar um advogado de confiança a essa altura dos acontecimentos. Digo, encontraremos alguém que lhe dará um suporte jurídico, mas até lá, o ideal seria que você mesmo adiantasse o assunto - explicou Guilherme.

    - Isso é o cúmulo!

    - Desculpe Abelard, mas ir até Paraíso é essa a solução mais fácil.

    - Para você! - gritou Abelard.

    - Para todo mundo - disse Guilherme, desculpando-se mais uma vez e pedindo para que Abelard considerasse àquela opção.

    Abelard disse que iria pensar sobre o assunto, mas que precisaria de pelo menos uma noite para isso. Bateu a grande porta de vidro com força, enquanto rogava pragas a Guilherme, Honório e à senhora Zulmira, que não tinha nada a ver com a história, mas teve a infeliz ideia de dar-lhe bom dia.

    Abelard sempre soube que um dia chegaria a hora de enfrentar seus demônios, principalmente Antônio, o maior de todos. Talvez aquela fosse a oportunidade.

    Durante a noite, pensou e repensou em diferentes maneiras de resolver aquilo. Não conseguiu dormir um minuto se quer, como na noite em que passou deitado no chão gelado daquela cela.

    Quando o dia amanheceu, sabia que tinha chegado a uma conclusão, mesmo que ela não o agradasse. Tentaria dormir um pouco e assim que acordasse, arrumaria as malas.

    CAPÍTULO 2

    PRESENTE

    Antônio levantou da cama disposto a repetir seu ritual de todas as manhãs. Lavou o rosto, trocou-se, tomou uma xícara de café e preparou a marmita com o que havia sobrado do jantar da noite anterior. Cecília havia feito um dos seus pratos prediletos com o pouco que conseguira comprar no mercado.

    Antes de ir para o trabalho, segurando uma sacola nas mãos, Antônio se despediu da neta beijando-a na testa. Verificou se o despertador estava ligado. Não queria que ela se atrasasse para a aula mais uma vez.

    Ainda estava amanhecendo quando abriu o portão de casa. A vila em que moravam ficava em um bairro distante do centro de Paraíso, na divisa com uma grande fazenda. A pastagem no fundo de casa e o cantar dos galos davam a sensação de que moravam no campo. Praticamente.

    Numa clássica cena de início de manhã, caminhava pelas ruas tranquilas de paralelepípedo, cumprimentando todos os que, assim como ele, partiam para mais um dia de trabalho. A maioria das pessoas da Vila Alemã era formada por trabalhadores rurais, o que explicava toda aquela movimentação às cinco horas da manhã.

    Antônio era admirado por todos. Mesmo aqueles que não frequentavam a pequena igreja do bairro a qual ele era pastor, sabiam que não existia na cidade homem melhor.

    A morte da esposa anos atrás, a doença da filha e o fato de cuidar de sua neta tocava o coração de todos. A sociedade, principalmente as interioranas, adora viúvos que criam sozinhos seus netos, filhos, sobrinhos... Isso lhes confere um aspecto altruísta, beirando à santidade. Com Antônio, não era diferente.

    Ele estava especialmente feliz naquele dia. Voltava a trabalhar como pedreiro após pouco mais de um ano fazendo bicos como cortador de cana-de-açúcar em uma usina perto da cidade. Além do dinheiro, a oportunidade de voltar à construção lhe dava, sobretudo, prazer.

    Chegando próximo ao portão de entrada da vila, onde pegaria o ônibus até o trabalho, Antônio percebeu uma movimentação atípica no local. Parados perto de uma van, com algumas mochilas e ferramentas nas mãos, alguns homens conversavam.

    Os boatos de que o prefeito construiria uma grande praça ali pareciam se confirmar. Dizia-se que o empreendimento seria enorme, demasiadamente exagerado para uma cidade de seis mil habitantes. Uma obra populista que teria como utilidade única despertar interesse e curiosidade suficientes para se garantir muitos votos.

    Antônio fazia questão de demonstrar a todos sua indignação. Falava sobre o assunto em suas pregações, nas rodas de conversas, sentado à beira das portas das casas ou até mesmo durante as sessões da Câmara Municipal.

    A possibilidade de ser político nem lhe passava pela cabeça. Já havia recusado diversos convites para se candidatar a diferentes cargos pelo fato de achar que não precisava disso para ajudar as pessoas.

    Mesmo sendo uma espécie de líder local, não demonstrava ser superior, mas sabia que tinha disposição para lutar por àquelas pessoas que ele tanto considerava. Mais que obrigação, ele encarava isso como uma missão, como sempre gostava de lembrar.

    Na porta do ônibus, ao olhar para trás, Antônio admitiu para si mesmo que por mais que não concordasse com a futura praça, sua vila ficaria mais bonita depois da demolição da velha casa amarela. O grande terreno tomado pelo mato e as paredes chamuscadas destoavam da calmaria transmitida pela vila. Mesmo sendo a primeira casa construída no local, ela parecia ter sido colocada ali de qualquer jeito, depois de tudo pronto. Algo que não se encaixava.

    Começou a simpatizar com a ideia de que as crianças teriam um lugar para brincar, um espaço onde poderiam esperar os domingos preguiçosos se arrastar por entre elas. Talvez a obra seja um bom investimento, afinal.

    Entrou no ônibus feliz.

    CAPÍTULO 3

    PRESENTE

    Cecília acordou atrasada, mesmo depois de o despertador tentar expulsá-la da cama inúmeras vezes. Levantou da cama, lutando contra a vontade de dormir, arrumou-se apressadamente e saiu sem comer nada. Estava sem fome e tempo.

    A preguiça não se resumia ao fato de acordar cedo e ter que caminhar até a escola. A verdade é que abominava aquele lugar. Mesmo depois de tanto tempo, ainda era apontada como a filha da prostituta que enlouqueceu. Isso sim a cansava. Tinha a sensação de que os olhares atravessados e a sucessão de conversas ao pé do ouvido a acompanhariam pelo resto da vista.

    Cecília tinha perdido as contas de quantas amizades haviam sido evitadas ou de quantos convites para um simples passeio nunca chegaram a ser feitos pelo fato de ela ser quem era, ou melhor, filha de quem era.

    Muitas vezes, andava três quarteirões a mais apenas para desviar de uma ou outra rodinha de garotos que, não raramente, se masturbavam enquanto a provocavam chamando pelo nome de sua mãe.

    É verdade que as pessoas, com o passar do tempo, foram encontrando assuntos mais fascinantes com que se preocupar. O interesse por Cecília foi substituído por adultérios, a mais nova grávida adolescente da cidade, o filho do dono do supermercado que se assumiu gay, a moça do restaurante que se separou do marido para se casar com a própria enteada...

    O fato é que mesmo odiando os apelidos que lhe davam e a forma como falavam de sua mãe, Cecília confidenciava a si mesma que toda aquela perseguição não era de todo mal. Afinal, eram os únicos momentos em que tinha algum tipo de atenção.

    Cecília sabia que só tinha algum resquício de prestígio na vila onde morava. Mesmo assim, nem era por mérito próprio e sim de seu avô. Fora dali, ninguém fazia questão de conhecê-la. Sentia-se desconjuntada e sem perspectiva, pensando que sua mãe talvez tivesse sorte por viver em um mundo paralelo.

    - Oi! - exclamou Henrique, apoiando sua mão sobre um dos ombros de Cecília. Ela estava sentada nos degraus da escada da biblioteca, terminando de comer um prato de sopa.

    - Ah! É você? - disse Cecília.

    - Quem mais poderia ser? - ironizou o menino.

    - É, tem razão, só podia ser você.

    - Porque não me esperou? A gente podia ter vindo juntos para a aula.

    - Hoje preferi vir sozinha - disse Cecília, com a voz desanimada.

    - Por quê? - perguntou Henrique.

    - Sei lá, Henrique. Precisava pensar! - respondeu impaciente.

    - Pensar em que? - insistiu.

    - Meu Deus! Não sei. Pensar! Pensar! Só isso - vociferou a menina.

    - Tudo bem - sorriu - Ainda precisa pensar?

    - Sim, por favor, saia - implorou Cecília.

    Henrique deu um leve sorriso de canto de boca, meio sem graça, e saiu. Ele sempre obedecia às ordens de Cecília.

    Ela fazia um grande esforço para aturar Henrique. Achava-o extremamente pegajoso e inconveniente, além de estupidamente infantil. Ele era apenas um ano mais novo que Cecília, mas parecia haver um abismo de uns dez anos entre os dois.

    Primeiramente, a menina se aproximara dele por questões de sobrevivência, afinal ele era o único que a tratava bem e se interessava pelo o que ela sentia ou dizia. Depois, continuou a suportá-lo por pena. No fundo, sabia que eles eram parecidos em sua insignificância.

    O problema era que Henrique era chato e pegajoso e Cecília havia descoberto que ele estava apaixonado por ela. Tinha decidido desde então que começaria a evitá-lo, o que era cada vez mais difícil de fazer. Sentia calafrios só de pensar na ideia dele tocando-a.

    Naquela tarde, mais uma vez, Cecília não conseguiu escapar. Henrique a estava esperando na saída da escola e propôs que voltassem juntos para a vila. Vendo que seria mais fácil aceitar a ter que inventar desculpas, aceitou a proposta do menino com a condição de que ele permanecesse calado. Estranhamente, funcionou.

    ****

    Cecília preferiu não almoçar, esperando que o lanche que havia comido na escola a sustentasse até o jantar. Achava sua comida uma porcaria e comê-la uma vez ao dia era mais que o suficiente.

    Esse era um dos únicos momentos em que sentia inveja de Henrique. Ela sabia que ao chegar em casa, ele encontraria a mesa posta e o almoço pronto. Depois, sua mãe lavaria sua roupa e faria faxina, dentre outros caprichos domésticos típicos das donas de casa de classe baixa. Marli era do tipo que podia estar passando fome, mas fazia questão de deixar o chão cheirando a lavanda e os móveis brilhando, escorregadios de tão excessivamente lustrados.

    Pensando nisso, Cecília foi até o criado mudo e pegou uma das únicas fotos que tinha com a mãe, quando ainda era um bebê de colo. Deu-lhe um beijo, passou o indicador por seus cabelos, boca e olhos tristes, como se estivesse desenhando. Sentia saudades dela. Saudades não, apenas falta. Não se pode ter saudades do que nunca se teve, pensou.

    Como Vitória nunca havia sido uma mãe para ela, na real acepção da palavra, era como se Cecília sentisse apenas necessidade de uma figura feminina dentro de casa. Enquanto outras meninas pensavam sobre qual roupa vestir para ir a uma festa, ela tinha que se preocupar se os ternos de Oxford do avô, pendurados no varal, estavam secos. Ela tinha só 16 anos e havia se tornado uma dona de casa antes mesmo de ser uma mulher.

    Subitamente, sentindo o coração disparar, perdido entre a raiva e a amargura, aproximou o porta-retrato da boca e deu-lhe um cuspe forte o suficiente para fazer a saliva escorrer por todo o vidro até cair no chão.

    Antes de guardar o objeto na gaveta do criado mudo, ouviu alguém bater palmas aceleradas no portão. Quem quer que fosse, tinha atrapalhado seus planos de tirar um cochilo.

    Ao abrir a porta, ainda calçando os chinelos, deu de cara com o delegado Ariovaldo, que já estava arrastando seu corpo gordo e suado pelo alpendre.

    Cecília o considerava uma figura importante, mas um completo banana. O pastor funcionava como uma espécie de guia para Ariovaldo, um dos cristãos mais fervorosos da cidade, dando-lhe conselhos espirituais e de ordem pública (que em Paraíso se resumia ao roubo de gado e às brigas nas lanchonetes do centro). Por isso, suas visitas eram frequentes e demoradas.

    - Desculpe eu ir entrando assim, menina Cecília, mas como ninguém atendia a porta...

    - Sem problemas.

    - Seu avô está? - perguntou, parecendo afobado.

    - Não, hoje ele voltou a trabalhar como pedreiro. Acho que chegará mais tarde.

    - Uma pena! Digo, que bom que Deus atendeu às nossas orações e concedeu essa graça a ele - falou, enquanto levantava as mãos para o céu - Mas é que precisava conversar com ele.

    - Já tentou o celular?

    - Só cai na caixa postal.

    - Aconteceu alguma coisa? - perguntou, preocupada ao notar certa aflição na voz do delegado.

    - Nada demais, menina. Assunto de amigos - respondeu de maneira vaga - Você poderia apenas dar um recado a ele?

    - Claro.

    - Diga que... - fez uma pausa tentando, de uma forma nada convincente, disfarçar seu nervosismo - O Belardo deve chegar à vila amanhã. Ele gostará de saber.

    - Tudo bem - respondeu, sem entender muita coisa.

    - Até mais, menina - disse, virando-se para ir embora.

    - Até!

    - Não se esqueça de dar o recado assim que seu avô pôr os pés em casa, hein! - Alertou-a, com um breve sorriso murcho, assim que entrou na viatura estacionada em frente à casa de Antônio.

    Cecília até tinha ficado curiosa, mas como sua impaciência em ouvir o delegado fora maior que seu interesse, decidiu não pedir explicações. Tinha certeza apenas que aquele nome não lhe era estranho.

    A menina voltou para dentro da casa, já sem sono, e permaneceu pensativa, sentada no sofá da sala por mais de meia hora. Tentava se lembrar quem era o personagem por trás daquele nome. Belardo, repetia para si mesma.

    Depois de revirar suas memórias, já empoeiradas pelo tempo e pela falta de respostas, levantou-se do sofá em um supetão. Teve certeza. Belardo era o padrinho de sua mãe, aquele que nunca podia ser mencionado, o amigo louco e mau caráter o qual seu avô falava com rancor. Ele estava voltando e Cecília teve a sensação de que nada seria como antes.

    CAPÍTULO 4

    PRESENTE

    Ao chegar à vila, pela manhã, Abelard não se deu ao trabalho de olhar para sua antiga casa, abandonada e imunda, em todos os sentidos.

    Imediatamente, avistou dois homens realizando o levantamento topográfico do lugar. Devido ao semblante carregado e desanimado, Abelard supôs serem da prefeitura. Típico dos funcionários públicos, pensou.

    Ele não conseguia descrever o que sentia a dar cada passo. Saudosismo e repulsa confundiam-se em seus pensamentos. O dia que saíra dali prometeu a si mesmo nunca mais retornar. Até aquele momento, tinha mantido a promessa. Arrependeu-se de aceitar a proposta de Guilherme.

    Enquanto andava pela rua principal da vila, logo após atravessar o portão de entrada, percebia por sua visão periférica as pessoas o observando com indiscrição. Ele era dono de todas as casas dali, com exceção da do capeta, um dos diferentes codinomes pelos quais chamava Antônio.

    Abelard não se considerava um proprietário ruim. Austero sim, mas não ruim. Não sabia se era seu sangue alemão, mas entendia que a vida é feita de planejamento e compromisso. Portanto, não tolerava inquilinos caloteiros, aquele tipo que deixa de pagar o aluguel para gastar com supérfluos.

    Certa vez, ao chegar do serviço, uma das vizinhas de Abelard encontrou todos os seus móveis na calçada. Como ela não pagava os aluguéis há mais de quatro meses, Abelard entendeu que tinha todo o direito de entrar em sua casa e retirar as tralhas da pobre infeliz com as próprias mãos. Seu filho, que ficava sozinho em casa enquanto a mãe trabalhava, passou o resto da tarde esperando por ela sentado no sofá, que àquela altura já estava na calçada. Esse episódio o marcou para sempre, dando a ele fama de ser um homem insensível e mesquinho.

    Muitas pessoas na vila não o conheciam, nem ao menos tinham o visto uma única vez que fosse. Para alguns dos moradores, Abelard era uma espécie de lenda urbana. Além da inequívoca inimizade, as pessoas nutriam por ele uma grande curiosidade.

    Passando pelas calçadas, avistou as poucas pessoas que sobraram dos tempos em que havia sido feliz naquelas ruas. Em um primeiro momento, pôde reconhecer apenas dona Socorro, Marli, Aparício e Ana.

    Os antigos vizinhos o fitavam como se vissem um fantasma. Abelard não gostaria de ter encontrado ninguém naquele momento, mas todos estavam a postos como se esperassem por ele. De longe, os cumprimentou, brevemente, como se os tivesse visto pela última vez no dia anterior.

    Abelard adentrou a casa de número 22 o mais

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