Duas vezes dramática
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Duas vezes dramática - Natasha Centenaro
PREFÁCIO
Bendito seja o drama
fruto de nosso ventre
Nas mitologias pagãs das sociedades antigas, encontramos a presença de deidades associadas à função criador, do Universo e de uma série de faculdades humanas. À deusa celta Brígida, por exemplo, é atribuída a linguagem; à indiana Sarasvati, o alfabeto original. Hoje, podemos dizer que essas deusas encontram descendência nas dramaturgas, que buscam, através da reinvenção da linguagem, a criação de novas possíveis realidades.
Uma dessas escritoras, Natasha Centenaro, abre as pernas em seu díptico duas vezes dramática e dá à luz o grito que, de novo e mais uma vez, precisa ser ouvido; pois, como já disse a outra, há o direito ao grito, pelo menos este, quando tantos outros nos têm sido roubados. duas vezes draMática é inicialmente draMática gênero.
a NÃO origem do mundo, primeira das peças que a leitora ou o leitor encontra nesta publicação, inicia-se com UMA MULHER FALA (mulher-fala, em substantivação possível), em cujo texto lemosouvimos não uma, mas muitas vozes femininas e uns tantos questionamentos, alguns remontando à própria (não) origem do mundo.
Nas culturas onde encontramos as citadas mitologias, as mulheres são honradas pela ligação direta que apresentam com a Natureza, através de seu funcionamento cíclico. A estrutura patriarcal de grande parte das sociedades modernas, no entanto, ao relegar a mulher à condição de segundo sexo, deslegitima, quando não apaga de vez da memória coletiva, as narrativas nas quais as mulheres são representadas em sua fecundidade criadora.
E, se nessas narrativas, como diz a FILHA em dado momento, as mulheres são o mundo e cuidam do mundo – e, portanto, de si e entre si –, o resgate de uma sabedoria ancestral que tem sido realizado por diversos grupos feministas traz, em seu corolário, uma prática que, traduzida em uma palavra, vem acrescentando-se ao nosso vocabulário: sororidade. Podemos reconhecê-la na espécie de oração que abre a Cena III, onde lemos Do que restam pedaços / de mulheres, dessas de nós / Do silêncio de uma rotina / de pão compartilhado, entre nós / [...] Comungamos, comemos e nos / tornamos: o pão nosso de cada dia
.
Eis uma chave possível para a conquista do novo mundo, de gestação muito mais demorada, como diz a MÃE. Há, entre ela e a FILHA, uma escuta, se não plenamente efetivada, a todo o momento buscada, na repetição do trecho Mãe? / Fala, minha filha
. Escuta necessária ao diálogo entre gerações ou, como a peça coloca, entre dois mundos que, se convivem, é (assim esperamos) pelo tempo necessário à transição para o novo. Outro mundo, no qual as convenções sobre os desejos – orientados ou não para o sexo oposto, de ser ou não mãe, etc. – não sejam compulsoriedades, mas opções, e onde, antes de MÃE ou FILHA, vejamos MULHERES (de A-Z) e, de seu cio (propícia estação), não a castração, mas a expressão, como a que encontramos atravessando as falas masculinas de garotos obedientes na segunda peça deste díptico.
O côncavo das fantasias eróticas de uma mulher (celebremos!) é revelado ao longo do texto, mais particularmente em três momentos-poemas. O que ressabia é o fato de esses poemas, apesar do eu lírico feminino, serem enunciados por um homem, segundo a rubrica inicial sugere. Aqui, atentamos para a problemática questão do lugar de fala
dos discursos: pode um homem se colocar no lugar e falar em nome dos desejos de uma mulher? Que projetos podem estar por trás dessa atitude?
Também o binarismo da relação mulher-homem, no qual um só é forte na medida em que a outra é frágil, uma só é louca na medida em que o outro é normal e só é bela na medida do desejo do outro, é exposto na peça. Assim como suas consequências – o subjulgamento da mulher e a entrega total das responsabilidades sobre homens –, então insustentáveis.
Enfim, para além dos temas levantados, importa destacar o diálogo que essas peças estabelecem com as formas dramatúrgicas ditas contemporâneas, através da forte presença de aspectos líricos e de cenas que tanto podem ser lidas como textos a serem enunciados pela boca das atrizes/atores, quanto como rubricas ou réplicas da autora em diálogo com suas leitoras e leitores. Nesse limiar, caberá à encenação realizar suas escolhas. O convite está feito.
Nayara Brito