Depois de tudo
De Jairo Carmo
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Depois de tudo - Jairo Carmo
Sumário
Aquarela de macaquinhos
Fim de tarde com vovô
A morena do papagaio
Era noite em Paris
Crônica de um escritor confinado
A bibliotecária
Quarto de casal
Esperando doutor Fausto
Duas mulheres
Amores vorazes
Abaporu
Um envelope branco
Lágrimas de salgar o mar
Mãezinha,
Sobre o autor
Texto de orelha
Para Monte Alegre, PA,
berço das minhas primeiras histórias.
Aos quinze anos, tudo é infinito.
machado de assis
Aquarela de macaquinhos
A alegria de Júlia devolve consciência ao avô, que cochila na frente do computador. Ainda é cedo, entre oito e nove da manhã. Júlia vem na leveza teatral dos sete anos, saltitando. Usa um vestidinho caseiro estampado. Entra no escritório, toca o rosto do avô, pede para ver chuva com música. Pois não, senhorinha, diz o avô abrindo o YouTube. Escreve Chuva com trovões
. Esfregando as mãozinhas, Júlia escolhe um dos quadros. Na tua idade, sussurra o avô, eu gostava do cheiro de terra molhada, não havia televisão nem computadores. Júlia pergunta o que o avô escrevia, se era coisa de advogado ou história inventada.
Pobre netinha, pensa o avô, diverte-se com chuvas eletrônicas. Chuvas de verdade inundavam seus tempos de criança, tempos idos de mais de meio século. Sempre que aparecia, Júlia desmontava a rotina do avô e invadia esse passado como um ciclone, interessada nas suas histórias de menino criado em cidadezinha do interior. Dizia o avô que todo início de noite os adultos se sentavam nas calçadas, formando um palco animadíssimo, regado a falas, cantos e até danças de salão. Que ele se metia junto aos adultos, ria tanto de dar dor na barriga. Júlia matava outras curiosidades: se o avô se perdeu na floresta, se gostava mais de rio ou igarapé, se caçava passarinho na mata. Naquela manhã, perguntou se é fácil imitar o canto dos pássaros, como curiós, bem-te-vis, sabiás. Antes de responder, o avô diz que primeiro ia falar de uma quase tragédia. Uma tarde ele corria atrás de borboletas gigantes, quando caiu num lamaçal pantanoso. Conta que seus pés grudaram no chão, não se moviam. Nisso de safar-me, prossegue o avô, desaba um toró daqueles, uma chuvarada grossa, nunca vi igual. Os pingos da chuva batiam na minha cabeça duros como pedras. O lamaçal pantanoso logo virou um rio no meio da enxurrada. Não era bem um rio, e era um rio caudaloso, temporário, violento.
— Vô, não vale mentir — protesta Júlia.
— Juro por todos os santos! — responde o avô.
Eu tentava manter a cabeça acima da enxurrada, ele continuou, pensei que fosse morrer, juro que tive medo. Perdi o controle da situação. Netinha, você não imagina meu desespero. Tirando as últimas forças, soltei um grito tão alto, mas tão alto, que dois indiozinhos de uma aldeia próxima ouviram meu grito desesperado e vieram afoitos me socorrer. Chorei de alegria ao ver os dois indiozinhos na ponta de um barranco.
— Conta os detalhes, vô, conta rápido — reclama Júlia.
Pois bem, os dois indiozinhos jogaram um cipó comprido na minha direção, dizendo para eu amarrar no pulso e segurar firme com as mãos, que eu confiasse, eles sabiam como me tirar da enrascada. Palavra de índio não volta vazia. Ao pisar na terra firme, são e salvo, os dois indiozinhos me abraçaram cheios de alegria. Impossível esquecer esse abraço que ganhei, recordo como hoje o sorriso de vitória no rosto deles. Os três viramos amigos de eles virem à cidade, morando na casa dos meus pais, e eu passar dias na aldeia. Você precisava conhecer essa história, porque foram esses dois amiguinhos índios que ensinaram seu avô a imitar o canto de alguns pássaros, menos a grasnada de araras em bando. Não consigo dobrar a língua do jeito certo, o som sai abafado, cuspido, é um horror. Por favor, não me peça.
— Mostra só um pouquinho, vô. Você não é mais criança.
— Peça tudo, menos isso. É feio rir de avô.
— E o YouTube, vamos pesquisar. Quero ouvir.
Sem alternativa, o avô assentiu com a cabeça. Júlia pergunta soletrando como se escreve grasnada
. O avô responde que não é c
. Já sei, pode deixar, ela retruca. Na altura, deitado sobre o tapete do escritório, o avô propõe a Júlia uma viagem à sua cidadezinha natal, na região Oeste do Pará. Estando lá, visitavam a aldeia dos dois amiguinhos índios. Você vai amar banho de cachoeira, verá o arco-íris de pertinho e o colorido das araras em bando. Aí, sim, de repente aprende a grasnar como elas. Ao entardecer, tem o pouso das garças na copa de árvores imensas, as quais, num piscar de olhos, são cobertas de branco, como se abrissem um lençol do tamanho de um estádio de futebol. É bonito o espetáculo das aves em voo suave, bem na hora do fechamento do comércio e das primeiras luzes que vão se acendendo. Sinto um friozinho de saudade, confessa o avô. É como se escutasse o dobrar dos sinos da capela de Santa Luzia, ele acrescenta, e se visse os trabalhadores na volta para casa, esticando conversa aqui e acolá com os vizinhos que vão enchendo as calçadas, ansiosos pelos últimos acontecimentos do dia. No avolumar das vozes, voavam farpas e pilhérias. Também rolava assunto sério. Me lembro, por exemplo, da doença de Haff, que os nativos chamam de urina preta
. Por cerca de um mês, ficamos proibidos de comer três tipos de peixes: pacu, tambaqui, pirapitinga. A explicação é que esses peixes transmitem a doença de Haff, que é grave, afeta os rins e pode matar.
— Vô, a ararinha-azul vai desaparecer, a professora disse — interrompe Júlia.
— Sim, o risco existe — confirma o avô.
— Por que a polícia não prende os caçadores dentro da floresta? — pergunta Júlia.
— Tinha de prender mais gente, netinha.
Então o avô comenta que as queimadas e a extração desordenada de madeira destroem os ninhos dos pássaros, milhões de espécies se perdem.
O avô de Júlia defende que o progresso humano devia educar as crianças a cuidarem da natureza como um dogma religioso. Ensinar que a mãe-Terra é nossa única fonte de sobrevivência. Se as escolas incutissem esse sentimento, ele garante, a ararinha-azul estava protegida, todos em luta contra os destruidores das florestas.
Enquanto Júlia se distraía ao som da chuva eletrônica, com raios e trovões, o avô lembrava de João Felício, filho de dona Vitória, festejado como o homem do tempo. O rapaz não errava o nível das enchentes, a hora dos temporais. Bem cedinho, o sol nascendo, ele observava os sinais. Perfilado no centro do quintal, debaixo de frondosa castanheira, mandava o povo anotar as novidades. Para algumas predições, João Felício colava a cabeça na terra, na intenção de perceber os avisos mais profundos. Vibrava com notícias de piracemas, indicando aos pescadores o lugar exato dos cardumes. Uma das histórias de João Felício tinha o Sol e a Lua por personagens. Segundo ele, Sol e Lua se apaixonaram, mas não podiam namorar, por culpa do Sol, que era tímido, não gostava de se mostrar. Permanecia no horizonte poucas horas, rápido como chuva de verão. Há milhares de anos atrás, as pessoas dormiam quase o dia todo. Com pena do Sol, Deus alterou a ordem natural do Universo. Sol e Lua deviam andar no passo dos namorados, tudo cronometrado para se encontrarem, a cada doze horas, nas dobras do firmamento.
— Vô, e a lenda da menina órfã, conta de novo.
— Conto se você prestar atenção — diz o avô. — É uma história tão linda, parece a da Cinderela. A diferença é que não tem baile de gala no castelo. Em compensação, ela brinca de princesa às margens de um fantástico lago dourado. E foi aí que a menina órfã percebeu a voz fraquinha do príncipe condenado pela bruxa a viver com os sapos.
Júlia segreda ao avô que sonhou que passeava às margens do lago dourado, mas não se lembra de ter visto a menina órfã.
— Me diga