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Obras Completas
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E-book706 páginas11 horas

Obras Completas

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Sobre este e-book

Escrever é uma catarse, uma terapia, uma maneira de manter os demônios que querem sair sob controle, pois coloco eles no devido lugar: a imaginação. As coisas tem ficado cada vez piores com a idade, pois os demônios clamam por sair e se vingar por tanto tempo presos, por isso voltei a escrever. Todas essas obras foram escritas muito antes de eu completar 25 anos, assim o espírito de vingança está mais forte que agora, com 43, mas os tempos mudaram e o mundo mudou para pior: Os demônios gritam por sair e aqui foi só uma pequena amostra do que eles conseguem criar de louco, violento e destrutivo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de dez. de 2018
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    Obras Completas - Fabiano Viana Oliveira

    Fabiano Viana Oliveira

    OBRAS COMPLETAS

    (tempos obscuros)

    capa.jpg

    Direitos autorais, capa e diagramação

    FABIANO VIANA OLIVEIRA

    Fabiano Viana Oliveira

    OBRAS COMPLETAS

    (tempos obscuros)

    Salvador

    2016

    Sumário

    ARPEJO - 006

    A SUA HASTE MAIS CURTA - 166

    24/09/97 MONSTRO EM MIM - 314

    MORTE DO INDIVÍDUO OCULTO - 578

    TORTURA A.B.I. E AS VÍSCERAS DA SAMAMBAIA - 607

    TRUE BELIEF IN THE GRAPE MOUNTAIN - 683

    ARPEJO

    Quando acordamos suados e tensos à noite, sem lembrar com clareza com o que sonhávamos, é o momento em que nossos instintos mais primitivos clamam por satisfação... É o que sem o nosso conhecimento nos faz fazer coisas sem se saber porque... Provoca culpa, orgulho e depressão... É a fuga da corrente humana...

    Dedico esta obra à confusão e à incerteza... nos levam a querer conhecer a nós mesmos; cada vez mais!

    Choque e lei

    A beleza do nascer do sol começa a iluminar o Jesus. A singela estátua que vislumbra o mar da Barra durante noites e dias. Os raios surgidos no horizonte, rasgando o oceano ao longe, começam a iluminar cada parte do Cristo em mármore. Primeiro a cabeça e vagarosamente descendo à medida que a luz vai subindo, passa pelo corpo, os pés e finalmente chega ao chão: o gramado onde a estátua repousa; no alto de uma colina que de um lado alcança o mar e do outro a avenida. Mas naquela manhã, algo mais que a grama e a estátua ornamentava o nascer do sol da Barra... Era um corpo.

    Suas vísceras expostas e o sangue já coagulado, manchando boa parte da grama e da estátua, dificultavam o estabelecimento do sexo. Era branca, a pessoa, podia-se ver pelos membros, únicos salvos das atrocidades. O cabelo era longo, na altura do ombro, mas não se podia ter certeza com tantos jovens hoje usando cabelos compridos. Somente algum observador atento, especialmente um policial, poderia e deveria se aproximar para ver de perto e identificar o sexo daquele corpo. E seria muito difícil, para qualquer pessoa, mesmo um policial, chegar tão perto de tal horror. O rosto, a marca pessoal que diferencia cada ser humano do planeta, também não foi poupado. Ele, como boa parte do corpo, era uma mancha de sujeira vermelha e mal cheirosa, esparramada aos pés do filho do divino criador.

    2

    5:15 da manhã. O sol começa a atrair as pessoas que querem manter a forma. Pessoas vindas de toda a cidade aportam na Barra todas as manhãs. Elas correm, andam de bicicleta, caminham, se exercitam... Pessoas de todas as idades: velhos que não querem envelhecer, adultos que querem se manter jovens e jovens que querem continuar jovens. Especialmente nesta época: é setembro, a primavera está começando e um lugar quente como Salvador pede que as pessoas mostrem o corpo no verão... E todos querem se mostrar jovens. Expor as suas belezas interiores através de um exterior bem cuidado.

    Correndo desde sua casa, em Ondina, bairro vizinho à Barra, seguindo a orla, uma jovem de vinte e um anos é a primeira pessoa atenta o suficiente para notar o corpo deitado ao sol, no gramado, abaixo da estátua do Cristo. Talvez fosse uma falha cruel do destino que a fizesse ser a primeira a entrar em contato com tal coisa...

    Ela parou de correr, não de súbito - ela sabe cuidar do corpo e sabe que não deve parar de correr de um momento para o outro. Ela mantém um pouco o ritmo e o vai diminuindo à medida que se encaminha para a colina... Andando, ela começa a ir em direção ao gramado. São uns trinta metros da calçada da avenida até a estátua. Ela se aproxima um pouco tímida. Achava que devia ser um mendigo dormindo ao relento, como muitos na cidade, mas tinha que averiguar... Uma curiosidade além do controle a havia tomado, e a cada passo aumentava. Ela estava a uns oito metros quando avistou a primeira mancha de sangue na estátua. Sua primeira reação foi se virar e ir embora, mas queria ver mais. Confirmar o que sua mente já imaginava... Ela deu mais três passos e lá estava: era uma pessoa morta, e mais que isso, estava completamente dilacerada por uma selvageria não humana. Ela pôs a mão na boca. Só tinha tomado um suco de laranja antes de sair para correr e por isso sentia como se fosse colocar seus órgãos internos para fora. Ela fecha os olhos e põe a outra mão no estômago. A visão ainda estava em sua mente, como uma fotografia. Foi quando uma inoportuna rajada de vento levou do corpo em sua direção aquele terrível cheiro de carne exposta, e nesse momento ela não resiste: vomita o que comeu e o que não comeu. O mal-estar era tão grande que ela sentia convulsões no ventre. Seus olhos se encheram de lágrimas com a terrível sensação. Nunca vira um corpo (morto) antes e tal visão estava muito além do que aquela jovem garota poderia imaginar... mas infelizmente, estava ali.

    3

    Os policiais a cercavam. Mesmo com toda sua beleza ela nunca tinha recebido tanta atenção. Seus olhos avermelhados ainda demonstravam seu choque com a cena de vinte minutos atrás. Seu estômago se contorcia toda vez que relembrava a fatídica imagem.

    As perguntas surgiram ao seu redor, feitas pelos policiais. Mas ela não tinha capacidade de manter a atenção...

    • Você viu alguém por perto ?

    • Você conhece a vítima?

    • Como disse ser seu nome? - Todas essas perguntas soavam como ecos nos ouvidos da trêmula garota. Na mente dela ainda havia a pergunta, vinda de seu íntimo: Como alguém pôde fazer isso?...

    • O nome dela é Carolina! - A voz vinha de trás o círculo de policiais. Ela levantou a vista e na sua frente apareceu um rosto familiar e amigo.

    • Luciano... - Ela se levanta e o abraça, como se procurasse um refúgio de toda aquela conturbação.

    • O senhor a conhece, detetive? - Ela o soltou e o olhou em seus olhos...

    • É uma velha amiga.

    • Foi ela que achou o corpo, senhor. - Ele olhou para ela lembrando da imagem da garotinha que conheceu anos atrás.

    • Eu sinto por você ter de assistir tal coisa, Carol! - Havia sentimento no que o jovem detetive da Polícia Civil dizia, mas também uma certa dureza; talvez necessária para conviver com tais atos durante um dia de trabalho. Com a voz trêmula e insegura, ela fala:

    • Não sabia que tinha chegado a detetive, Lu!

    • Só tem alguns meses.

    • Como alguém pode fazer isso com outro ser humano!?

    • Eu sei qual é a sensação... Não acredito que você precise ficar aqui já que não viu nada. - Ela suspira de gratidão.

    • Eu vou levá-la pra casa e volto em seguida. Não mexam no corpo até eu voltar. A polícia técnica deve estar chegando.

    • Sim, senhor. - Luciano pega Carolina pelo braço cuidadosamente e a conduz até o carro. Na mente do policial muitas perguntas surgiram. Não era só o assassinato que ele começaria a investigar. Ele olhava para aquela linda mulher, com um corpo escultural, usando malha de ginástica e tentava ligá-la com a moça que conhecera quando estava na academia de polícia... Lembrava dela como a irmã mais nova de um colega de treinamento, cuja casa frequentava tanto que terminou por ficar amigo de toda família. Ele observava o silêncio, a beleza e a consternação dela e sentia que a visão daquele corpo a havia afetado muito. Suas memórias eram todas de uma mera garota de colégio, mas o momento mostrava uma mulher que o deixava intrigado e curioso.

    Eles chegaram em frente ao prédio onde Carol mora:

    • Obrigado, Lu. Eu espero que achem o monstro que fez aquilo.

    • Não se preocupe. Uma coisa daquela não vai virar rotina aqui em Salvador... Não enquanto eu estiver aqui. - Ele falava como nos filmes americanos, que ele e o irmão dela tanto gostavam de assistir enquanto estavam na academia. Não era uma influência muito realista, mas o jovem detetive de vinte e oito anos parecia saber o que estava fazendo. Uma fachada séria, própria de um policial em serviço, dava uma certa credibilidade às palavras de alguém que Carolina havia conhecido como um simples rapaz brincalhão; o melhor amigo de seu irmão.

    Ela deu um sorriso meio morto antes de sair do carro e entrar no prédio. Luciano a acompanhou com o olhar por alguns segundos antes de partir. Ele sabia que não iria precisar dela na investigação que estava por vir, mas aquele corpo o chamava para perto da irmã de seu amigo morto há mais de dois anos: Cristiano.

    4

    De volta à cena do crime, Luciano vê uma roda de curiosos em torno do corpo, que já começava a cheirar muito mal...

    • O pessoal do Nina ainda não chegou, detetive. O que a gente faz?

    • Cubram o corpo e tirem esse pessoal daqui. - Os policiais cobrem o corpo disforme com um lençol. As pessoas ao redor olhavam com curiosidade, medo e nojo. A maioria morava nas redondezas e temia por ver coisa tão repulsiva ser encontrada ali.

    Com o seguir da manhã todos foram se dispersando, principalmente depois que a polícia técnica e o pessoal do Instituto Médico Legal chegaram e se encarregaram de levar o corpo. Só restaram as manchas de sangue na grama e na estátua. Todos olhavam e imaginavam como aquilo poderia ter acontecido. A morbidez parecia ter chegado à cidade de Salvador, onde até esse momento só se falava em festa e sol... Luciano olhava a cena do crime e via mais que um simples assassinato. Havia algo de morbidamente novo nos ares da Bahia. Algo além dos olhos...

    Presente

    Outra presença observava a cena final daquele terrível crime. Seus olhos, diferentes dos outros, não viam só manchas de sangue cobrindo o local onde estava o corpo dilacerado. Ele vê o acorde final de uma música que ele mesmo começou a tocar na noite anterior. Uma leve lágrima se forma em seu rosto enquanto ele olha fixamente aquela borra de sangue. Ele começa a rever passo a passo seus atos. O começo do arpejo.

    Noite. Ele vê a sua vítima se aproximar... Para o carro em frente à sua casa. Os olhos na janela acompanham todos os movimentos. O plano já estava em sua mente. Era insano. Mas ele sente poder com a insanidade. A hostilidade dentro dele era como uma droga; dando-lhe poder, incentivando-o e eventualmente, viciando-o. A porta é aberta...

    Nesse momento ele volta sua visão para o mar. A lembrança da noite anterior é somente um eco de um arpejo de violência que ele não conseguiu controlar. A vida deveria ser mais do que aquilo. Alguma coisa tinha que restar após todo aquele retardo. Ele vê a calmaria do mar e a quer sentir, mas não pode.

    O Corpo

    Luciano já havia presenciado muitas autópsias. Além de ser policial investigador, fez curso de um ano no Instituto Nina Rodrigues sobre polícia técnica. Não se compara a algo do porte do FBI, mas um exame de corpo delito podia revelar muitas coisas durante a investigação de um crime. E nesse caso, qualquer coisa seria melhor do que o que já se tinha... O que era nada, pois nem o sexo da vítima se conhecia ainda.

    O doutor Manoel Azevedo começa a fala no gravador enquanto percorre aquele pedaço de carne que um dia foi um ser humano. Luciano e mais dois policiais assistem atentos:

    • A vítima é branca. Tem um metro e 63 centímetros de altura. O peso deve estar em volta de 57 quilos. Observação preliminar do envelhecimento dos órgãos internos indica uma idade aproximada entre 19 e 25 anos. Nota: reconhecimento claro de um útero. A vítima é do sexo feminino...

    O legista continua sua análise inicial. Luciano olhava atento. Muito do que era dito era irrelevante para o caso. A não ser pelo fato de se saber que era uma mulher e jovem, dizer que ela foi morta com extrema violência e crueldade era desnecessário; até mesmo para quem encontrou o corpo pela primeira vez... E era nessa pessoa que Luciano pensava naquele momento. A lembrança de Carolina abatida ao seu lado, no carro, ainda naquela manhã, vinha em ondas; junto com a visão dela própria, como mulher. Ele não conseguia evitar esse pensamento, mesmo vindo logo em seguida a lembrança do irmão dela, seu amigo, Cristiano, morto, abatido por um traficante durante uma invasão. E também a visão seguinte, que aparecia à sua frente, real e clara: aquela garota que fora morta pelo monstro assassino que agora rondava a cidade sem controle.

    • ...Os dentes foram arrancados junto com partes do rosto. E as pontas dos dedos foram cortadas. Isso torna impossível uma identificação. Só sobrando algum sinal particular que precisa ser reconhecido por alguém próximo. As avaliações químicas devem demonstrar algo mais através dos seus resultados. Nota: as unhas dos pés são pintadas com esmalte de boa qualidade. Sugestão de procurar em pessoas desaparecidas para possível identificação da família. Nota final: seja quem for que fez isso sabia exatamente como ocultar os meios de identificação. Sugere força, frieza e meticulosidade.

    O doutor desliga o gravador e retira suas luvas. Mesmo com toda sua experiência ele parecia afetado por uma visão tão chocante. O humor negro presente nessa classe de profissionais tão obscura - a Medicina Legal - parecia ter sucumbido diante de tais atrocidades contra a fragilidade humana.

    Luciano e os outros dois policiais olham com visível frustração o corpo que estava sendo encaminhado para as geladeiras. Não havia muito por onde começar. A criatura louca que tinha feito aquilo não tinha deixado traços visíveis. Seria no tato. - Eles pensavam.

    Na mente de Luciano voltava a aparecer Carolina. Parecia até uma compensação. Ele tinha um corpo dilacerado pelo assassino monstruoso. Tinha a investigação às cegas para conduzir. Mas em compensação ele tinha aquela linda mulher que não lhe saía da cabeça. E junto com a lembrança do amigo morto, poderia ser a oportunidade de um novo começo.

    Lágrimas do passado no presente

    O telefone toca na casa de Carolina. São oito da noite e sua mãe atende com voz séria:

    • Carol, por favor. - Diz o interlocutor.

    • Ela não está falando com ninguém. Hoje de manhã ela... - Mas a voz a interrompe.

    • Eu sei dona Carmem. Aqui é Luciano. Eu estou encarregado do caso.

    • Ah! Olá, Luciano. Como você está?

    • Não muito bem. Todos estão abalados...

    • É... Eu ouvi no noticiário sobre o corpo. E Carol falou da coisa horrível que ela viu.

    • É por isso que eu estou ligando. Eu a deixei em casa hoje de manhã e queria saber como ela estava.

    • Ela me disse. Eu agradeço o que você fez.

    • Nada...

    • Mas ela passou o dia muito abalada. Não foi à faculdade, nem ao estágio. Muitos amigos dela ligaram, mas ela não quis falar com nenhum.

    • Talvez ela queira falar comigo. A senhora poderia perguntar?

    • Está bem...Mas... Ela não vai ter de se envolver com isso, vai?

    • Eu acredito que não. Ela só fez, infelizmente, encontrar o corpo.

    • Nem me fale... Eu vou falar com ela. Só um momento.

    A mente de Luciano ainda estava consternada com a frustração que passara durante o dia. Ele queria - além de saber como Carol estava - ouvir uma voz de um passado suave, quando era apenas um cadete da polícia; uma voz, que naquela manhã também tinha uma fonte que ele não podia evitar de se sentir atraído. Mesmo tendo na memória Cristiano e o corpo dilacerado, agora congelado em uma das gavetas do Nina... Ele sente.

    • Alô, Luciano. Aqui é Carol.

    • Oi. Que bom que resolveu atender. Como se sente? - A voz dela estava arrastada. Como de alguém que saísse do coma.

    • Hum! Horrível! - Ela se olha no espelho da sala e pensa que está horrível de mais de uma maneira. Mas também, Luciano não a via.- Será que eu posso fazer alguma coisa pra ajudar?

    • Não sei. Você sabe fazer lavagem celebral? - Ela tenta rir da própria piada. Foi infeliz...

    • Eu imagino como se sente. - Ele queria segurar a conversa, mas não sabia o que dizer. Felizmente ela quebrou o silêncio. Mais por atenção ao interesse de Luciano que ao próprio, ela pergunta:

    • Descobriram alguma coisa?

    • Bom ... Descobrimos que era uma garota por volta de 20 anos...

    • Ai, meu Deus! - Subitamente Luciano se lembra que está falando com uma.

    • Desculpe, Carol. Eu queria poder ter te poupado disso, mas saiu.

    • Tudo bem. Eu perguntei...

    • Escute... Uma coisa que eu aprendi é que se fechar não vai tirar as lembranças da cabeça. Volte à sua vida normal.. Você está saindo com alguém?

    • Não.

    • Então procure alguém. - Luciano se segurou para a frase seguinte. Mas a disse, tentando ao máximo ser natural. - fale comigo se precisar.

    • Eu não sei.

    • Desde que seu irmão... Bom; tem tanto tempo que nós não nos vemos. Eu deveria ter ficado perto de vocês quando tudo aconteceu, mas preferi me isolar e me dedicar ao trabalho. Hoje eu sinto falta. E sinto mais ainda pelo reencontro ter sido numa circunstâcia tão... terrível.

    • Talvez você esteja certo. Me agarrar ao sombrio só me faz sentir pior.

    • Isso. - A chama da esperança surgia naquela fraca voz... Mas:

    • Passe aqui amanhã e jante conosco. - Encontros familiares não eram do agrado de Luciano, lembravam-lhe sua própria família... mas já era uma possibilidade. Algo mais do que ele tinha no momento: ele próprio.

    • Tudo bem, Carol... tente passar uma noite tranqüila. Eu te vejo amanhã.

    • Obrigada, Luciano.. Por tudo... Eu me sinto um pouco melhor. Fico feliz que tenha ligado. - Ela conseguia liberar um sorriso, finalmente; arrastado como a maré. Era quase uma terapia. Se despedia de Luciano e olhava ao redor sem saber muito o que fazer. Todo aquele dia parecia ter sido uma travessia; sentia um terrível peso no corpo: era a própria consciência... Voltou para o quarto.

    Luciano estava quase radiante ao desligar o telefone. À sombra de um assassinato, provavelmente insolúvel, e da lembrança de um amigo morto aos seus pés, ele via a possibilidade de ter ao seu lado uma mulher muito especial: alguém que pudesse, junto com ele, juntar os pedaços de uma vida confusa e com o sórdido direcionamento para o lado mais escuro do ser humano; o que chamam de crime... Um policial.

    2

    Na cama, durante a madrugada, Carol ainda não dorme. Ela realmente se sentia melhor após falar com Luciano, mas ainda não conseguia conter a tristeza. Era como uma gripe, que a derrubava, mesmo ela querendo se erguer: a visão do corpo aos pés do cristo. A lembrança do irmão mais velho morto. A imagem da vítima... uma garota como ela, podendo até ser ela em outra circunstância... Ela não podia evitar. Carol chora de dor em silêncio. Era uma tristeza sólida, que nunca tinha sentido antes. Algo que parecia surgir além do seu corpo e de sua mente: uma incontrolável vontade de se deixar levar pela mesma corrente que dolorosamente trazia as suas lágrimas. Eram lágrimas!...

    Só um

    O suor escorre pelo seu rosto. As imagens se agitam em sua mente enquanto seu organismo conduz os atos. São poucos os momentos que o levam do prazer à melancolia. Por que tem de ser assim? A solidão do seu quarto o rodeia enquanto seu corpo se contorce. Ele tenta se convencer de que é normal, mas uma raiva de si mesmo, de sua incapacidade ou hostilidade, o domina nos momentos finais. Ele sente o salgado do próprio suor da boca. O cheiro singular se espalha pelo quarto. Duas imagens femininas se revezam em sua mente agora. Uma de um passado recente e outra do presente vivo. Não há culpa ou pecado, só frustração. É uma energia subtilizada. Seus movimentos aceleram. É bom. É triste. É grotesco. Será que elas já fizeram também? - Ele pensa... É doloroso estar sozinho. Ele teme pela própria sanidade. A hostilidade pode um dia lhe dominar por completo e aí não haverá volta. Ele deseja. Ele quer. Ela está em sua mente agora. Cada lembrança se consolida naquele momento final. Ele sente. A sombra atrás de tudo. Frustração. Incapacidade. Rejeição. Um lampejo final e ele termina. Seu rosto é desolado. Ele se imagina agora. Não é um ser humano. Não é um homem. Não é nada. Ele tenta se recompor e afastar os pensamentos. Mas ele sabe que tudo estará lá na próxima vez. Ele não sabe por quanto tempo vai suportar isso até explodir de novo. Hostil. Doce. Triste. Como um fotograma de cada momento de sua vida: ele está só.

    Difícil retorno

    Voltar à faculdade parecia um ato heróico depois do choque do dia anterior. Carolina está no terceiro ano do curso de Publicidade da Universidade Católica do Salvador. Era o que se podia chamar de começo de vida integrada: estudar Publicidade, uma profissão em ascedência. Fazer estágio em uma das maiores agências do estado... Ela gostava da vida que parecia vir à sua frente... mas naquela manhã, entrar no carro, olhar para frente, conter a tristeza, viver, pareciam barreiras a serem transpostas. Sua alegria de viver parecia consumida pela forma como um monstro usou da fragilidade da vida para destruir um ser humano. E daquele modo... E de certa maneira, tão próximo dela própria. Talvez por nem ter sido possível reconhecer as feições daquela pessoa, de tão massacrada que estava, a proximidade parecia ainda maior. Como num pesadelo, em que o personagem se torna o espectador e vice-versa... Ela sacode a cabeça fazendo seus cabelos negros e longos, pesados de molhados, baterem em seu rosto; era um lembrete: ela ainda está viva. Não foi ela quem morreu. Quer continuar assim... Finalmente liga o carro e vai embora.

    Chegando ao campus ela estaciona o carro. Já está cheio. Ela está consideravelmente atrasada. Não é do seu feitio, mas considera-se perdoada... Quase todos os seus amigos já deveriam saber do ocorrido. Além do noticiário, sua mãe atendeu vários telefonemas do dia anterior e contou o fato...Ela caminha devagar. Não tem muita certeza de como deve agir. Tenta se manter normal, casual. Mas estava difícil. Algo de anormal ou anti-ético parecia afetar o comportamento de qualquer um diante daquela situação... A atitude certa simplesmente não existe. Por um segundo ela deseja que fosse uma pessoa totalmente ignorante e alienada, assim não seria tão afetada... Com certeza!

    Ela entra calada na sala. Olhos a fitam e ela os sente. Um olhar em especial se mantém fixo mais que os outros; como vem fazendo nas últimas semanas. Ela tenta não encarar ninguém, ainda. Se sente um pouco nua com tanta atenção. Mas o olhar fixo daquele que mais a olha, ela não pode evitar de encarar. É após alguns segundos que ele cede, envergonhado e deslocado, desviando o olhar. Carol conhece. Ela sabe. Mas hoje não era dia.. talvez ele não soubesse. Mas os que sabiam não lhe pouparam alentos na primeira oportunidade... Obrigação e/ou prazer; não importava: cada um, inclusive o dono daquele olhar, se sentia agradavelmente abalado pelo momento de Carol...

    Todos estão ao seu redor. Eles revezam palavras de conforto. Perguntas difíceis de responder. E consternação pela violência do mundo... Milhares de pessoas morrem a cada dia, mas a dor só é sentida quando a pancada é muito perto: é um fator humano, auto defesa... Carol tenta se manter firme. Recebendo toda aquela compaixão, as sensações davam voltas como numa montanha russa. De um certo modo ela se sente bem por saber que tem tantos amigos e que eles se preocupam com ela. Talvez Luciano estivesse certo. Mas provavelmente iria demorar um pouco para poder apagar aquilo da memória. Talvez nunca... Ver toda aquela afeição ao seu redor, lembrar da atenção de Luciano no dia anterior, sentir cada dor daquele dia; tudo faz Carol sentir que ainda merece a vida, mais do que nunca... Aquele corpo ainda chocava sua memória, mas também lhe dava vontade de viver.

    O resto do dia transcorreu o mais normal possível. Em uma certa hora no meio do dia ela foi ao banheiro e sentiu vontade de chorar: não foi até o fim... Não sabia porque queria chorar. Não sabe porque não o fez. Era realmente um retorno difícil. Como um dia pode ser tão diferente do outro! É apenas uma garota de 21 anos. Teve um mórbido despertar para um outro lado, obscuro, da vida. Era estranho. Era triste. A vida parecia passar à sua frente enquanto aquele dia passava. Podia parecer um dia como outro, mas todo mundo era diferente. Tudo era diferente... Ela estava diferente. Um recomeço seria o mais apropriado, mas tudo exigia tempo; até o próprio tempo que Carol passava: o da tristeza, confusão e inconfluência.

    A volta à faculdade foi difícil, mas já estava melhor. Ainda tinha o estágio à tarde e estava indo embora. Voltando para o carro ela pensa em seus amigos. Um leve espasmo a atinge no estômago. Ela ainda estava confusa com toda aquela mistura de lembrança mórbida e fraternidade. Naquele momento ela só queria seguir em frente: como de manhã antes de sair, ela sacode a cabeça. O gesto de alívio teria que vir. Tempo em tempo.

    Enquanto ela estava no carro não notava aquele olhar fixo nela, novamente. Ela tinha motivos para não notar, após um dia tão incerto...Mas ele a nota. E a deseja. Não muito tempo atrás... na verdade parece ter sido agora: ele está apaixonado e como no passado, foi rejeitado. São os olhos de alguém com problemas. Ela gosta dele, mas há coisas que não se pode forçar... Ele sabe, mas não para de sentir. É uma pena haver tanta dor num coração tão jovem e são esses os corações que sempre sofrem mais... Fernando vai para casa, mas sua mente está num mar; se afogando em dor, desespero e solidão. Carol!- Ele pensa.

    O início de uma nova canção

    Carol atende à porta. A visita já esperada a recebe com um sorriso amigo no rosto.

    • Lu. Que bom ver você! - Ela estava realmente alegre.

    • Vejo que está bem melhor. - Seus olhos a percorriam enquanto ele entrava.

    • Sem dúvida. Você estava certo: voltar à vida normal foi o melhor remédio.

    • Eu não disse! - Luciano era um policial e sabia usar seu poder de observação. Ao cumprimentar os pais de Carolina, logo notou o quanto a presença dele os faziam lembrar de Cristiano. Não os via desde o enterro do filho, mas eles pareciam os mesmos: cordiais e familiares. E emotivos até certo ponto com a presença de tantas lembranças que ele trazia.

    Carol demonstrava ainda muita confusão por trás daquele véu de alegria e receptividade. Ele imaginava como aquela imagem da manhã anterior deveria estar sendo reprisada em sua cabeça. Deixando-a sempre muito perturbada... Perturbava a ele, que já devia estar acostumado com tal violência... Ele sentia que havia uma alma quebrada dentro daquele corpo tão expressivo. Corpo que também não parava de deixá-lo admirado com tanta perfeição. Luciano a conhecera franzina e pequena. E agora ela tinha uma forma atlética e firme. Não devia passar de um metro e 65 centímetros, mas era todo um conjunto perfeito. Por um momento ele se pega tendo pensamentos que ofenderiam até mesmo seus colegas policiais; todos acostumados com todo tipo de perversão e baixaria. Também era um policial, mas ao rever aquela família, que nos anos de academia era a sua família, ele chega a se repreender pelos seus pensamentos; assim podendo seguir o resto da noite com um mínimo de paz no seu interior e no deles também.

    Na mesa de jantar:

    • Vocês já têm alguma pista? - Perguntou o pai de Carol.

    • Infelizmente não. Os... - Ele olha para Carol, para sua mãe e em seguida para a comida à sua frente. Ele ia dizer, com naturalidade, que os dedos e os dentes da vítima tinham sido arrancados; mas ao invés, prefere amenizar o assunto... se podendo, até extinguindo-o.

    • ...A identificação não foi possível. Estamos à cegas.

    • É uma pena... Um maluco desses por aí!. - Luciano nota Carol baixar a cabeça. Aquilo visivelmente a incomodava.

    • E aí Carol; você está na faculdade de que mesmo? - Levantando o rosto e mudando levemente a feição, ela responde... Luciano ficava satisfeito por poder se livrar daquilo. Não era apenas por querer aliviar a pressão sobre Carol: a mudança de assunto tinha afetado todos à mesa. Era um conforto voltar para o mundo seguro em que todos pairam longe de uma selva interior que afeta a tudo... Também ele queria se livrar do desconforto de falar sobre um caso sem pistas, que além de pôr à prova a própria competência dele e da polícia, atingia pontos intocados do comportamento humano: algo chamado de mal, mas puramente era relativo ao próprio homem... Afirmar que a situação tinha fonte na possível incapacidade da polícia era uma defesa de cada elemento: se agarrar ao ponto mais próximo antes que a onda o atinja... É uma terra onde a imagem da polícia é maculada por corrupção, conformismo e alienação diante de uma violência já existente... Esse meio de defesa de cada um perante a instituição dava certa revolta em Luciano. Mas ver a mudança daquelas pessoas à sua volta para um estado de maior conforto por fugir de um assunto vigente, dava uma visão de ambos os lados daquele mesmo momento... Outro mundo, talvez... Ele lembra do corpo no Nina Rodrigues: também estava incomodado; não parecia ser uma atitude tão revoltante, afinal, apenas uma escolha, fazia parte da mesma vivência: se sentir humano... Seus olhos encontram os de Carol. Não era apenas uma vez... É o recomeço que ele procurava...

    No estacionamento do prédio, mais tarde, Carolina se despede de Luciano. Havia uma evidente hesitação em ambas as partes. Aquele reencontro tinha sido bom para os dois. Ele via a alegria voltar ao rosto de Carol aos poucos; fazia-o se sentir bem por saber que tinha feito parte daquela mudança de estado. E também ela...

    • Eu... Eu queria ver você novamente, Carol. Será que você gostaria? - Seu rosto corou um pouco. Pôde-se notar mesmo embaixo da luz fraca do estacionamento.

    • Eu adoraria Luciano! Apesar do modo tão horrível, nosso reencontro foi muito bem vindo.

    • Você não sabe como... Bom... - Ele se curva para beijá-la no rosto. Tinha vontade de mais, e ela também, mas um clima nostalgicamente triste ainda os envolvia... Os dois teriam tempo! - Eles pensam.

    Luciano parte sob o olhar de Carol. Um entusiasmo a invade. As boas lembranças de seu irmão vêm à sua mente. Talvez Luciano fosse a resposta para uma fase mais completa de sua vida. Pela primeira vez desde o terrível acontecimento do dia anterior, ela sente a leveza novamente em seu corpo e também não deixou de sentir uma leve excitação por Luciano. Era realmente um recomeço. - Ela pensou.

    2

    No carro, Luciano não podia conter o entusiasmo. Dirigia rápido. Estava alegre. Era difícil para sua mente de policial se desligar do caso para uma coisa pessoal, mas era o que tentava fazer. Tentaria não ter humor negro por um tempo. Corpo morto!...Corpo de Carol!- Era difícil. Sua vida estava presa ao crime. Era um momento de reflexão barata. Ele ainda sorria. Estava diante de um novo momento. E ele queria muito desfrutá-lo. Por um instante, ele se esqueceu de tudo... Só estava em sua mente a transposição que ele vislumbrava à sua frente: uma nova vida, talvez!

    Estado Puro

    Um jovem misterioso, no âmago de sua solidão. A noite escura e úmida, a caminhar, levando a mente a pensar nenhum pensamento específico. Na torrente da chuva passada se lembra do que já se foi, uma vida desperdiçada, dolorosa e de real vivência com o sentimento de angústia... A presente e constante depressão em sua vida.

    Chega ele em casa; para quê?... Nada a esperar, nada novo, o que estava de manhã, está na noite e estará no dia seguinte. Sua cama em impecável bagunça; para que arrumar se a noite irá fazê-la desarrumada novamente. Onde ir... cozinha de cheiro insuportável, próximo a corpos em putrefação, que ele se acostumou como se fossem rosas em campos floridos? Fascina-se, olha-se no espelho quebrado e vê sua realidade; em pedaços; tudo é isso. Ele é assim. - Eu sou assim?- sendo somente o que sempre foi: um nada menor que a própria existência insignificante do homem da Terra. Para quê? Mais uma vez. Ao quarto de volta em movimento enigmático de nunca pisar no meio entre a sala e o quarto, como se para passar aquilo ele tivesse que saltar um muro ou cerca, indo para um lugar completamente diferente.

    No quarto vê-se no outro espelho, mais quebrado que o primeiro; nota que nos últimos dois minutos a vida se tornou ainda pior. Olha a sala e vê que a luz está acesa, mas para que apagar... no outro dia terá que acendê-la novamente... Para quê? Para que viver?... Nada ele faz. Mulher não tem, pais não conheceu, amigos não teve. Improdutivo, inútil, incapaz: pensa ele ser; e com razão se vê vivo no futuro como o único sobrevivente do próprio; pois em sua obsessiva depressão e alienação, coberta e recheada de angústia, se encontra a desesperança no futuro e nela se encontra o único e melhor motivo para continuar vivendo... Para quê? Para isso: ele não se mata. De modo algum. E nem nunca o fará... Simplesmente aguardará. Boa noite!

    2

    Fernando tenta não se prender a todo sofrimento que o rodeia. É difícil para ele ver o mundo à sua volta andar e ele estar à margem. Pensa um pouco em Carolina. Imagina como ela reagiria se visse como ele vive. Ele sabe como ela vive, e sabe que são diferentes. Ambos estudam Publicidade, mas há um glamuor nela que ele não tem. Pensa em qual a fonte de tal abismo que o suga. Ele se deita ainda pensando nela... No que ela poderia estar fazendo nesse momento: um rápido pensamento de um namorado lhe vem à mente e a hostilidade lhe volta. Gostaria de nunca sentir o que sente. Às vezes uma música toca-lhe os ouvidos e ela só diz uma coisa ritmada: rejeição. Não literal, mas na forma de lembranças, de rostos do passado e do presente. Ele está muito ferido: antes de apagar, Fernando tem uma última imagem: é Ilena... O passado e o presente se cruzavam na porta de entrada para os seus sonhos: novamente... Boa noite!

    Três dias

    Nos Barris; um dos poucos bairros do centro que residem calma durante todo dia; a maioria das famílias vive suas vidas sem ser muito afetada pela confusão que os rodeia: isso, os outros bairros do centro.

    Num apartamento de classe média, uma dessas famílias está tendo de encarar uma situação nova e difícil. Algo que só se parece com histórias de jornal ou programas de TV.

    • Ela já está sumida há três dias! - Uma mãe preocupada. Dona Joana não se conforma de sua filha ter sumido sem dar notícias; e um outro lado dela se recusa a acatar a sugestão do sóbrio marido:

    • Se formos à polícia, pelo menos nos livramos das dúvidas. Eu tenho certeza de que ela está bem. - O senhor Lauro Fernandes tenta conter o nervosismo da esposa, que começa a virar histeria à medida que os pensamentos ruidosos surgem na mente de todos.

    • Ela deve tá com o namorado! - Carlos, irmão mais novo, tenta se livrar da tensão com uma piada infeliz. As suas duas irmãs o olham com certo desprezo. Não sabem elas que o mesmo frio no estômago que elas sentem pela falta da irmã, também atinge o jovem Carlos. Talvez até mais... Ilena e ele sempre foram muito apegados. São os dois extremos de uma cadeia de quatro irmãos. E por essa distância, as diferenças entre irmãos os afetaram menos. As duas irmãs estavam comprimidas entre a mais velha e mais respeitada e o caçula, mais bajulado. Não era muito de se admirar as duas estarem sempre juntas; como estão nesse momento, abraçadas... O pai e a mãe tinham um ao outro e elas a elas, mas Carlos só tinha a esperança de rever a irmã: aos 15 anos, sabia muito bem o que poderia acontecer a uma jovem de 21 numa cidade grande, principalmente após três dias desaparecida.

    • Carlos! Tem certeza que ela não disse nada a você? - O senhor Lauro perguntava com fervor pela centésima vez nos últimos dois dias...

    • Não, pai. Ela só disse que ia resolver um assunto. Foi a última coisa que ela disse, antes de sair na segunda à noite.

    • Segunda à noite, Lauro!! - A pobre mãe revezava bravejos e murmúrios. A preocupação e o medo pela filha estavam estampados em seu rosto. Um abatimento dolorido e emocional... Todos se olhavam em silêncio sem ter muito argumento para o ato que teria de vir: nunca em nenhuma família se passa a idéia de um dia ter de ir à polícia, e pior, ao Instituto Médico Legal, a procura de um de seus entes. É uma sensação estranha. Algo que sobe pelas entranhas. Visceral. O medo de descobrir o que não se quer, apesar de se estar preocupado.

    O senhor Lauro olha para o filho e em seguida para as filhas. A esposa sentada ao seu lado não lhe dava nenhum sinal de discordância. Era a maneira dela de dizer que ele podia ir em frente. Os filhos presentes sentem o mesmo.

    • Carlos. Vamos indo! - O garoto se prepara para sair com o pai.

    • Se tivermos alguma notícia, nós ligaremos. Mantenham o telefone sempre livre. Ela... pode ligar...- A voz dele não se mostrou muito confiante, o que piorava o abatimento nos rostos das filhas... A mãe permanecia em silêncio.

    • Eu tenho certeza que ela está bem, mãe. - O filho demonstrava uma confiança na voz que parecia melhorar o espírito de todos... Mas todos sabiam que era uma fachada, uma proteção, uma defesa da própria consciência. O medo estava presente. E em Carlos ainda mais. Enquanto saía com o pai tinha na memória a última imagem da irmã: ela estava entrando no carro ao cair da noite; estava com o mesmo sorriso de sempre. Ele não sabia se aquele sorriso o confortava ou o massacrava. Era uma situação praticamente impossível de ser admitida em sua temerosa e apaixonada alma adolescente: ele não tinha certeza se veria aquele sorriso de novo...

    As filas

    O Complexo de Delegacias dos Barris apresentava uma estranha angústia aos que se propõem a procurar algo nesse lugar, e especialmente, alguém. A cada curva se sente que se pode ter uma má notícia e por ironia todo o prédio é uma curva... O senhor Lauro e seu filho Carlos passam por tal sensação nesse exato momento. O atendente os encaminhou ao investigador que estava responsável pelas pessoas desaparecidas. Eles andavam e a cada sala que passavam, notavam o quão o mundo poderia ser triste, envolto com tanta violência. Tantas pessoas, tantos problemas... infinitas angústias. Realmente preferiam não estar passando por aquilo.

    O investigador os recebeu e os mandou sentar. O senhor Lauro falava sobre o desaparecimento da filha, enquanto Carlos olhava meio assustado para aquele cubículo chamado de escritório. Como alguém podia manter a sanidade, tendo de encarar tantas coisas adversas, de dentro daquele lugar horrível? - Ele se pega imaginando.

    • É uma bonita garota! - Ele segurava uma foto de Ilena.

    • Obrigado.

    • Antes de eu fazer o registro de pessoa desaparecida, o senhor tem que fazer alguns reconhecimentos...

    • Eu imaginei. - tanto ele quanto Carlos sabiam o que aquilo significaria. Era uma pressão e/ou choque que eles já aguardavam. Mas sempre com um teor pré-sentido carregado nas costas de ambos e também na família que ficara em casa... Estavam todos juntos.

    O investigador dá uma ordem pelo telefone autorizando o senhor Lauro a olhar pessoas com a descrição da filha, presas nos últimos três dias e também as pessoas mortas, dentro do mesmo tipo, no Nina. Não eram muitas garotas brancas de 21 anos que apareciam nesses dois segmentos, mas seria uma tortura essa verificação. A cada olhar o medo de uma revelação aterradora. Não havia outra solução... Eles vão.

    Carlos não pôde entrar no xadrez municipal, ele teve de esperar numa sala especial junto com outros menores. É difícil definir de quem era a tortura maior: o senhor Lauro olhava dentro de cada cela feminina; via todo tipo de sujeira e podridão. Ao chegar perto das janelas que davam para o interior, já sentia o terrível mau cheiro de pessoas amontoadas sem um mínimo de dignidade e de higiene. A maioria das mulheres era negra. Ele não queria, mas sentia um certo alívio. Não era uma pessoa preconceituosa; pelo contrário, isso só fazia aumentar seu medo e sua consternação; mas sua mente dizia: Ilena nunca se meteria com esse povo!... Enquanto isso, Carlos olhava para as paredes opacas da sala aonde estava. Imaginava o que o pai estaria vendo; talvez Ilena, deitada numa das celas... Drogada... Ele tentava tirar o pensamento da cabeça: não tinha muito o que o distraísse na sala. Cada coisa lembrava o horror. Um horror real; massacrante.

    Eles deixam o xadrez municipal tanto com alívio quanto com dor. Ilena não estava naquele lugar horrível, mas podia estar num lugar bem pior. Morta. Ali, pelo menos, estaria viva... A sorte do segundo passo que eles iam dar martelava na cabeça de ambos. O senhor Lauro não conseguia visualizar que reação sua esposa teria se a filha estivesse naquele lugar. Nem a sua própria reação... Parecia um auto-prelúdio de um indesejado e terrível pesadelo.

    No Complexo de Delegacias. No cubículo onde o senhor Lauro e Carlos estiveram. O investigador olha para a foto de Ilena. Ela estava sorridente, com o cabelo solto, caindo levemente sobre a testa. Os anos de profissão o fizeram duro e perspicaz, por isso ele não pôde deixar de ter uma desagradável visão... Ele torcia para que aquele pai encontrasse a filha antes que tivesse de sugerir a idéia que estava em sua cabeça. Temia que fosse a única.

    Corpo após corpo. O senhor Lauro seguia o encarregado que ia abrindo gavetas e mostrando corpos de garotas mortas. O já abalado pai olhava, tendo alívio seguido de desgosto, a cada gaveta... Mais uma vez, Carlos não pôde entrar e teve de suportar a espera numa sala a parte. Ele já tinha estado no Nina Rodrigues antes, mas numa excursão de colégio e não a procura de uma pessoa querida que estava desaparecida. Era uma sensação de impotência diante do inevitável... De pontos diferentes, pai e filho sofriam cada momento daquele ainda incompleto pesadelo. Um por ver cada passo e o outro por não ver: os extremos de um mesmo sentimento impossível de ser verbalizado, pois passa por todos os outros... Corpo após corpo.

    De volta ao Complexo de Delegacias. No cubículo. O investigador olha o rosto do pai e do filho; já deduz que a busca tinha sido vazia. Viu essa expressão várias vezes. É sempre frustrante para ambos os lados... Na sua mesa está a pasta de um caso sem pistas que parecia ter atraído a sua primeira evidência; para a infelicidade daquela família... Eles se sentam à frente do investigador e ele tem que perguntar:

    • Sua filha tem algum sinal particular? - Os dois se olham e respondem juntos:

    • Uma cicatriz acima do pulso direito. Em forma de T. - Os dois sabiam muito bem. Ela conseguira tal marca num acidente de carro, logo depois de tirar a carteira de motorista.

    O policial olha a ficha e encara os dois em seguida. Não tinha muito jeito de aliviar aquilo. O relatório em suas mãos era bastante claro...

    • Eu sei onde a sua filha está! - O tom da voz do homem fez o frio no estômago e o aperto nos corações dos dois atingirem seus extremos. O medo iria se confirmar e seria mais terrível ainda...

    O corpo é de Ilena.

    Dois Lados

    Seus olhos tinham à frente uma mulher que o fazia suar de tanta atração. Não conseguia ver quase nenhum traço da garota que conhecera. Era como olhar uma escultura. Perfeita. Seu olhar, quase hipnótico, lhe dizia: Eu quero! As palavras soavam como pedidos... ordens de uma deusa que ele não conseguia evitar de desejar... Na mesa entre eles estava um prato de lagosta. Era um prato caro, muito caro para um policial, mas ele a queria impressionada. E ela estava. Carolina já tinha tido muitos encontros, mas nunca um tão bem produzido e nunca com um homem tão maduro. Luciano só tem 28 anos, mas sua experiência de vida policial, convivendo com todo tipo de situações, lhe dera uma fonte de adaptação para as mais diversas condições, que realmente surpreendia. Carol se sentia estranha ao estar com Luciano. Ele é um policial; coisa que aparenta, sempre, adversidade. Mas também ele é um velho amigo de seu falecido irmão e estava a cargo de uma investigação que teve origem num crime que a havia afetado muito nos últimos dias. Ela não sabia porque, mas também sentia atração por ele... Seus olhares diziam isso a cada momento, mesmo apesar de estarem num lugar tão luxuoso, comendo e conversando sobre assuntos que os dispersam de tudo. Era algo inegável, somente não totalmente exposto por causa de um incômodo, mas necessário, véu de polidez e civilização... Ela queria esquecer os últimos três dias, queria começar uma nova vida. E de certo modo, ele também.

    • ...não sei muito sobre isso. Antes eu tinha... - O som do bipe de Luciano a interrompe. Ele tinha vontade de não ouvir mais nada além da voz dela, mas não podia ignorar o serviço. Era o mundo ao qual ele pertencia. Não só por ser um policial dedicado. Ele se tornava a cada dia mais concentrado naquilo que fazia de melhor... fazia parte de uma redescoberta do seu lado mais humano e familiar; aquilo em que se mantinha com Carol... Ficar apegado a uma pessoa pelo puro prazer de estar com ela: a memória mais próxima disso em sua vida era justamente a convivência com o irmão da mulher que estava à sua frente, rompendo-lhe toda aquela atenção... Cristiano era um grande amigo e Luciano o perdera... Voltar a ter contato emocional com uma pessoa e justamente com a irmã daquele amigo tão querido, era uma ideia tanto assustadora como extremamente agradável... por isso era tão difícil se desligar dela: era algo íntimo. Uma lembrança perfeita e que se consolidava na perfeição de Carol... A muito custo ele se desligara: não queria nunca se desligar daqueles olhos... Nunca.

    • Droga! Eu tenho de ligar... Eu já volto!

    • Tudo bem... - Ele se levanta e anda até o bar. Carol o observa. Tem pensamentos que nunca revelaria nem a melhor amiga. Todo aquele momento estava coberto de prazer e esquecimento. Ele a convidara; ela aceitara. Era simples, Carol pensava. Era uma exigência do seu corpo e de sua mente: ter de volta aquele simples sentimento de prazer e paz. Toda a conturbação dos últimos dias parecia ter lhe furtado essa sensação tão elementar. O homem com quem estava lhe trazia memórias de dias mais alegres de seu passado... A presença de seu irmão em sua vida; e na vida dele. Eram partes componentes de uma nova fase; ela sentia.. E mesmo apesar do nervosismo presente em todo aquele clima de proteção e não revelação; e também da breve interrupção, Carol via que pelo menos naquele momento podia confiar na construção de um futuro melhor. Aos poucos conseguiria se reerguer. Tinha que aprender a ser forte... Seus pensamentos se transpareciam; seu corpo revelava (confusa esperança)... Luciano... Seu rosto não conseguia esconder, se tornava evidente: ela estava cativada por aquele jovem policial. Ele começava a se transformar num ícone de sua necessidade: a fonte!

    • Nós temos que ir! - Ela via uma nova apreensão no rosto de Luciano. Temia que fosse um sinal de uma inevitável quebra do seu momento de revitalização. Sabia que era uma possibilidade viva, o tempo inteiro, mas é uma coisa mais fácil de ser negada do que encarada... Precisava ser forte! - Pensava continuamente.

    • Algum problema? - Ele olhou para ela hesitante. Sabia que o prazer daqueles instantes que eles tiveram juntos estava por sucumbir ao retorno para a realidade. Tanto suas renovadas esperanças quanto as dela, principalmente as dela, que não faziam parte daquele mundo... Eles estavam por ter que novamente reconhecer aquela situação que os reuniu. Luciano lamenta intimamente, mas não pode esconder de Carol o que se desenvolvia:

    • Uma... família identificou o corpo daquela garota. - Os olhos de Carol perderam o brilho. Era quase um choque ver uma expressão tão alegre se modificar de uma maneira tão impiedosa. As memórias retornaram à mente dos dois. Era como uma maldição que insistia em seguir no momento em que se parecia estar em contemplação... Era injusto... Carol tentava não perder as últimas forças capturadas durante aqueles momentos com Luciano. Era difícil encontrar uma postura para reencarar aquilo. Não estava preparada. Talvez nem Luciano estivesse... Ambos sentiam a mudança. Não havia mais o que fazer naquele lugar. Tinham que partir.

    Caminham juntos para o estacionamento. Não há troca de olhares. Não há o que dizer. A magia do momento juntos havia terminado. A lembrança do que os tinha feito se reencontrarem estava lá de novo. Rodeando-os. E não era agradável, como sempre. Surpreende como a vida parece agradar e atacar seus seres sem a menor complacência ou remorso. Só se difere o modo como cada um lida com essas mudanças... Era mais forte que a razão: Carol não quer, mas sente medo; por tudo. Ela estava atraída por um homem que vivia como vivia, não podia evitar, era mais forte que ela. E uma nova antagonia surgia em sua vida: aquelas visões mórbidas vinham à sua mente outra vez, misturava memória, medo e imaginação... Uma forte insegurança também surgia: a respeito dela própria, de sua vida, do que ela fazia e sentia... Quando tal batalha terminaria? - Ela pensa... Visualizando em seguida o homem ao seu lado: calado, passo a passo com ela, sério... Talvez só: diferente dela, ele separava os dois lados e sua cabeça podia conter aquelas duas situações antagônicas. Luciano tinha maior convívio com o discernimento, mas também estava confuso; detestava estar impotente diante da insegurança de Carol. Talvez com o tempo conseguiria achar o que realmente procurava... Ambos sentiam, por extremos diferentes. Havia uma estranha proximidade; entre as sensações dos dois e entre as duas situações: vida e morte; prazer e náusea... Surgia nesse ponto a melhor fonte de união. Eles viviam os dois lados, juntos. Sentiam diferente, mas a lembrança daquela noite, e mesmo da sua brusca alteração de extremos, fazia-os partilhar muito mais que um simples encontro... Eles descobriram; está com eles... A partida!

    Ao chegarem no prédio de Carol, Luciano mantinha a seriedade. Estava firme, era o reencontro com sua postura policial... Mas algo em ambos ainda pedia uma finalização mais adequada para aquele encontro tão cheio de altos e baixos: teria que haver um último extremo... O melhor: era a despedida!...

    • Espero que tenha gostado!

    • Eu adorei! - A viagem em silêncio parecia ter sido uma terapia para ambos. Voltar à simples banalidade era o melhor som que se podia ouvir após todo aquele desapreço do destino... Ambos queriam O final!

    • Desculpe pelo final corrido, mas...

    • Tudo bem! Eu entendo. - Ele deu um sorriso de concordância. Ela sentia com leveza a volta do prazer do encontro; antes do telefonema... Olha para ele alguns segundos. Palavras não eram mais necessárias... Luciano tinha de ir; estava hesitante, mas ele também queria... Via nos olhos de Carol... Eles se aproximaram. Mais alto um pouco, Luciano se inclina. Os olhares se cruzam novamente. Seus corpos e tensões se alteram para o encontro. Era o fio da espera: seus lábios se tocam; era tudo que eles precisavam. O final... Naquele momento não havia mais corpo dilacerado; não havia mais dor, sofrimento ou lembranças; somente as sensações geradas por aquele simples toque. Seus corpos e mentes só diziam uma coisa... Esteve presente durante toda noite (político), foi por um pequeno período abafado (o passado) e enfim se mostrava presente nos dois, irrepreensível: o desejo.

    2

    Chegando ao Complexo de Delegacias, Luciano tentava transportar-se para o seu outro lado: o de policial sério. A lembrança dos lábios de Carol ainda latejava em sua cabeça. O reconhecimento de uma emoção simples e única... Mas ele tinha que encarar a realidade: o pai de uma garota deixada irreconhecível aos olhos de peritos, mas facilmente reconhecida por uma família unida e presente...

    • O nome dela é Ilena Fernandes. O pai a identificou pela cicatriz no braço. Ela estava sumida há três dias. - O investigador dava as informações para Luciano, o encarregado do caso. Seu olhar ia da ficha e da foto em mãos para o pai sentado dentro da sala. Sua mente saía das lembranças de Carol e ia para lembranças mais distantes, ia para aquele rosto à sua frente, para o corpo dilacerado... Aquele pai, sentado lá, tentava se conter e encarar a situação de maneira firme: dura será a missão desse homem! - Pensa Luciano com pesar... O investigador diz a ele que o irmão da garota deu um ataque quando soube e que foi levado para casa sedado. A esposa do homem também não estava nada bem... Luciano sabia de tudo aquilo. É sempre uma reprise já aguardada. O que mais podia fazer? Agora já estava tudo feito. Os caminhos do destino já tinham sido traçados. Tinha que seguir em frente. Ele é o policial... O responsável.

    • Olá. Eu sou o detetive Luciano. Encarregado da investigação. - O homem se levanta para apertar-lhe a mão. Era como um zumbi de gestos cansados. A exaustão e a tristeza lhe maquiavam o rosto...

    • Eu sinto pela sua filha. - Os olhos do homem se desviam de qualquer coisa. Não havia expectativa de resposta. Queria ele se esconder de tudo e não ter de ver mais nada ou ninguém no mundo...

    • Eu preciso fazer algumas perguntas; e provavelmente terei de falar com a sua família e também ver os pertences de I... de sua filha.

    • É mesmo necessário?

    • Devido à gravidade do crime... sim. Tememos que possam acontecer novos incidentes. - Luciano detestava usar tal palavra. Era uma fuga natural das pessoas ao que realmente se queria dizer: assassinato. Ou qualquer outra fatalidade. Mas ele se manteve; era preciso. Eram mais que palavras... Agora uma família estava exposta àquele momento. A fuga era uma necessidade.

    • Nós faremos o que puder... - A voz do homem se deteriorava. Luciano já vira isso acontecer várias vezes, mas ainda era difícil suportar tanta consternação sem participar; principalmente, agora: os dois lados o afetavam.

    • Obrigado... senhor Fernandes!

    • E quanto ao... corpo...?

    • Infelizmente ainda não podemos liberá-lo. - A frustração se transparecia no seu rosto ainda mais, mas ele não tinha forças para qualquer retração. Ele só queria ir para casa e ver a família. Ela estava mutilada agora; ele sabia. Mas ele queria estar perto dela mais do que nunca. Nesse momento era tudo que restava... Luciano conseguia ver essa necessidade nos olhos do pobre pai...

    • O senhor pode ir agora. Amanhã ou depois eu irei em sua casa. Eu agradeço a cooperação do senhor, mesmo sendo um momento tão difícil.

    O senhor Lauro sacudiu a cabeça. Não queria mais falar. Só queria ir embora... Se sentia perdido; só. Era uma rara fonte de desgosto... Ele sofre; meio morto... Ele vai embora, deixando Luciano sozinho na sala. Observa ele o afastamento do homem por alguns segundos; parecia emanar a dor... Luciano pega a foto da garota de novo. O que há por trás disso? - Pensa ele... Vendo aquela linda moça, seus olhos enxergam fundo, mais que os outros. Era algo próximo... Ele sentia aquele poder de novo: pegar o assassino! Isso o deixava de certo modo excitado. Se sentia forte apesar da situação: uma amoralidade incontrolável; uma atitude de desconfortável satisfação... Ainda podia ver a expressão daquele pobre homem, mas não podia evitar... Longe dos olhos de todos, ele queria isso... Era um forte paralelo com o seu momento... Ele desejava tanto o poder quanto desejava Carol... Formava um círculo. Diferente. Recomeçava... Carol! Sentia que as coisas podiam se encaixar: perfeitas!

    3

    Ela está no chuveiro. Chegou mais cedo que esperava. Muita coisa povoava sua cabeça, mas uma sensação dominava seu corpo. Parecia pedir aquilo. Queria esperar até o momento certo, mas estava muito forte. Começava no ventre, descia até as pernas viajando por tudo que há entre. Era a sensação... Sobe para os ombros, pescoço e lábios, onde a memória do contato era maior. Não conseguiria dormir sem aquilo. Mal se lembrava da última vez que se sentira assim; talvez nunca. Carol reinicia a viagem pelo seu corpo. Ela o conhece muito bem. E ele está pedindo... Os movimentos se tornam contínuos. O jato do chuveiro compõe o toque generalizado, levando de sua pele todo e qualquer resíduo. Seus olhos fechados, tentam enxergar a memória daquele que está em sua cabeça: Luciano. Seus cabelos tocam as costas e os ombros. Ela o sente como mãos. Cada parte do seu sistema está vibrando. É uma mágica. O tempo não existe. Ela vê aquilo crescer em seu organismo. Tenta conter um grito que lhe chega às cordas vocais... Ele soa como um leve grunhido. É irresistível. A pele de Carol começa a se arrepiar. Ela sente o final chegar. As outras partes sensíveis também gritam por toques, mas ela não tem mais mãos: tenta revezar. É o fim. Ela sente. É um tanto contido, limitado... Mas por agora bastava. Sua mente estava se libertando. Ela vivia de novo.

    Os passos

    Luciano entrou na casa e sentiu o peso do ambiente. A pobre mãe, dona Joana, se mantinha sentada, pálida, seu olhar perdido. Luciano havia perdido a mãe muito cedo, não tinha muita referência pessoal sobre um relacionamento tão singular: o de mãe e filhos, mas tinha capacidade de imaginar que tipo de dor aquela mulher deveria estar sentindo. Se lembra de como a mãe de Carol havia ficado quando Cristiano morreu... Era uma palidez bem semelhante à que observa em dona Joana... Ele dá uma olhada nas outras duas filhas daquela família: consolavam-se uma a outra no canto da sala. Do relacionamento fraterno a única e mais próxima lembrança era Cristiano: não tinha outro irmão, só a si mesmo. A união das duas lhe trazia tanto harmonia por elas próprias, como também ressentimentos por coisas em sua vida que ele não teve ou que teve e perdeu... Aumentava ainda mais seu distante profissionalismo... O senhor Lauro vinha cumprimentá-lo. Luciano imagina como aquele homem deve estar tendo uma força sobre-humana para poder encarar o clima daquela casa, ainda conseguindo se manter firme diante da situação em si: ele condensava toda dor da família e a sua; é o responsável: um dirigente patriarcal que precisa sobrepujar os próprios sentimentos para manter a máquina político-familiar funcionando... É o que ele faz:

    • Olá, detetive... Eu vou lhe mostrar o quarto de Ilena. É por aqui... - Sua

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