Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

O Amor Não Tem Cor
O Amor Não Tem Cor
O Amor Não Tem Cor
E-book177 páginas2 horas

O Amor Não Tem Cor

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Hortência era uma sinhá rica e orgulhosa, até sofrer um acidente que a fez dependente de uma cadeira de rodas e ela se vê ressentida com a vida. Sua angústia ganha novo transtorno quando descobre a traição de Afonso Neto, seu esposo. Inconformada procura um terreiro de umbanda para destruir com uma mandinga a relação “clandestina”. No terreiro, um preto velho lhe faz uma revelação surpreendente: a cura para a suas dores estava no amor que ela deveria dedicar a si mesma.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de jul. de 2019
O Amor Não Tem Cor

Relacionado a O Amor Não Tem Cor

Ebooks relacionados

Artes Cênicas para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de O Amor Não Tem Cor

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    O Amor Não Tem Cor - Edleusa Tavares

    A traição

      Hortência esmurrou a pequena mesa que estava à sua frente, rodopiou sua cadeira de rodas com dificuldade, rosto congestionado, e começou a cobrir o piso do escritório com as rodas da cadeira, num vai e vem desconectado. Parou, esfregando as mãos uma na outra, enquanto seu rosto crispava-se num ricto que o deformava. No meio da sala e a plenos pulmões, quase babando, berrou: — Maldito traidor, vosmecê me paga!

      O negro ficou assustado com a reação da sinhá, que o vendo daquele jeito, disse, tentando suavizar o tom da voz:

      — Continue, João, continue, quero saber com detalhes.

      — Óia, sinhazinha, eu fiz conforme a senhora mandou, segui o sinhozinho e vi quando ele entrou na casa da negra. Ele faz isso quase todo dia e muitas vezes também faz isso durante a noite. Mas não faz no final de semana e isso eu não sei por que.

      — Miserável!

      — Posso ir, sinhá? – indagou o negro, assustado com a ira que via nos olhos da mulher.

      — Sim, vá, João, e não diga nada a ninguém.

      João saiu, deixando Hortência parada. Seus olhos encheram-se de lágrimas, que ela impediu de caírem.

      Um toque na porta fez com ela saísse do torpor.

      — Posso entrar, sinhá?

      — Sim, Germana.

      — Aconteceu alguma coisa, sinhá? Vi João sair daqui meio atarantado. A senhora está bem?

      — Sim, Germana. Eu estou bem. Desejo ficar sozinha. – pediu a sinhá, de maneira contundente.

      — Se precisar de algo, chame, sinhá.

      — Não se preocupe, Germana, se eu precisar, chamarei.

      Germana saiu e Hortência ficou ali envolta nos seus pensamentos. O ódio consumia a pouca paz que lhe restava e ela agora sabia que tudo era verdade. Passou as mãos nas rodas da cadeira: "Nada pior do que a impotência que sinto sendo prisioneira dessa cadeira maldita!" – pensou ela, limpando as lágrimas que desciam pelo seu rosto, com a palma das mãos.

      O jantar foi servido, e Hortência comeu em silêncio. Cristal também estava silenciosa e Afonso preferiu não puxar nenhum tipo de assunto, olhando de soslaio para a esposa e percebendo pela sua expressão que ela não estava bem. A verdade é que ele preferia não saber o motivo da consternação dela. Estava cansado e tudo o que queria era terminar a refeição.

      Depois do jantar, Hortência seguiu para seu quarto. Germana empurrou sua cadeira e abriu a porta do quarto, no andar inferior da casa. Afonso seguiu para o escritório, queria ficar sozinho.

      — Germana, traga um chá para mim, estou me sentindo mal. – ponderou Hortência, terminando de empurrar sua cadeira para o quarto.

      Germana saiu e voltou logo em seguida com um chá de capim santo que entregou para sua sinhá. Ela tomou o primeiro gole, colocou a xícara na mesinha ao lado da cama, e indagou:

      — Vosmecê sempre soube, não é verdade, Germana?

      — Do que está falando, sinhá?

      Hortência olhou para Germana e preferiu não expor a sua vergonha.

    — Não é nada, Germana. Ajude-me a trocar a roupa, que desejo me deitar. 

    — Sim, sinhá.

      Germana ajudou sua sinhá a trocar o vestido por uma camisola de seda branca e ela deitou-se. Germana saiu do quarto desejando à sinhá que tivesse bons sonhos, e ela respondeu:

      — Obrigada, Germana. Boa noite.

      A janela do quarto estava aberta e adentrava uma brisa que amenizava o calor do sertão nordestino. Hortência recordava-se de como havia conhecido Afonso, seu primeiro olhar sobre ele tinha feito seu coração sentir que era amor. O casamento foi marcado e seu coração vibrou de alegria, seria feliz para sempre. Dois anos depois veio o acidente. Ela vinha da cidade com Vicente e Germana e a charrete tombou, deixando-a em cima daquela cadeira de rodas, impossibilitada de seus movimentos inferiores. A triste realidade: estava paralítica.

      Hortência adormeceu. O dia não demorou a nascer, o sol aquecia logo cedo o sertão e Afonso levantou, descendo as escadas que levavam até o andar inferior da casa. Bateu levemente a porta de Hortência, e depois que ouviu a voz dela autorizando sua entrada, abriu a porta e perguntou:

      — Bom dia, minha senhora. Deseja ajuda?

      — Bom dia, meu senhor. Não, eu não desejo. Obrigada. – Afirmou Hortência rispidamente.

      Afonso não disse mais nada e seguiu para a cozinha onde o cheiro do café fez seu estômago se alegrar. Cumprimentou Germana e pediu que ela o servisse ali mesmo, tinha pressa de sair.

      Germana colocou bolo de mandioca, café e leite na mesa e Afonso se serviu sem dizer mais nada. Despediu-se de Germana e saiu.

      Hortência levantou-se com a ajuda de Germana e foi tomar café junto com Cristal, que beijou seu rosto, dizendo:

      — Bom dia, mamãe.

      — Bom dia, Cristal.

      — A senhora está bem?

      — Não, não estou bem, mas isso não importa. Tomemos nosso café caladas. – concluiu Hortência, demonstrando seu imenso mau humor.

    Terminado o café, Hortência pediu a Germana que a levasse para o jardim, onde ficou por um tempo olhando as rosas, absorta em seus pensamentos vazios. Não sentia mais alegria alguma em contemplar a beleza das flores; ouvia dali o barulho das águas da cachoeira, mas nada daquilo era mais motivo de alegria para ela. Antes podia correr, colher suas rosas preferidas, podia tomar banho na cachoeira, pular na água livre e feliz, mas agora estava impedida de fazer as coisas de que mais gostava. Amava andar a cavalo e o fazia muito bem, mas agora andava apenas de cadeira de rodas, estava prisioneira.

      O sol estava quente e Hortência buscou a sombra de um jacarandá. Germana a conduziu até a árvore e sentou-se ali ao lado da sinhá, que nada dizia.

      Cansada daquilo tudo, Hortência pediu:

      — Germana, me conduza para o escritório, nada mais me alegra nesse jardim, sentada nessa maldita cadeira.

      Germana a conduziu sem dizer nada.

      — Pode ir, Germana, estou bem sozinha e aqui não há perigo para uma aleijada. 

    — Não diga isso, sinhá.

      — Como não dizer, Germana? Não é o que eu sou, uma aleijada? O que devo ter feito de tão errado para que Deus tenha me dado esse castigo?

      — Sinhá, não fale dessa maneira, Deus não castiga seus filhos, cada coisa que nos acontece tem um motivo. Cada desafio na nossa vida tem um aprendizado.

      — Olhe, Germana eu não acredito em nada disso, acho que Deus tem seus preferidos e eu não sou um deles. Por favor, vá. Desejo a solidão.

      Germana sabia que não adiantaria argumentar com sua sinhá, e saiu fechando a porta com cuidado.

    O dia amanheceu e Hortência levantou. Depois que tomou café, pediu à Germana que a acompanhasse até o escritório.

      — Germana, eu desejo que me leve até o terreiro que frequenta.

      — Está bem, sinhá. Vou avisar a Josias que deixe a carroça preparada, quando o sol se puser, iremos até lá, pois hoje tem trabalho.

      Hortência esperou ansiosa pelo anoitecer. Josias seguiu para o terreiro depois que viu que sua sinhá estava bem acomodada na charrete.

    Mandinga de amor

      A charrete parou em frente ao terreiro e Josias tomou a sinhá nos braços descendo-a com cuidado e sentando-a na cadeira de rodas.  Bazaque olhava a cena com olhos fixos no rosto de Hortência: "Nunca lhe vi por aqui, caso tivesse visto, jamais esqueceria a beleza desse olhar! O rosto de Hortência estava descontraído num leve sorriso de agradecimento pelo gesto do negro. Pensando isso, ele sorriu: que bela mulher, uma linda sinhá!".

      Josias parou diante de Bazaque e o cumprimentou com um aperto de mão, que ele correspondeu com alegria. Germana parou e Bazaque tomou sua mão e a beijou com respeito. Ela então disse:

      — Sinhá, esse é Bazaque.

      Os olhos de Hortência cruzaram com os olhos claros e expressivos do negro e ela não saberia dizer o que sentiu naquele instante. Estendeu sua mão delicada em cumprimento e Bazaque a segurou com delicadeza, dizendo:

      — Seja bem-vinda à nossa casa, sinhá.

      — Eu agradeço, senhor Bazaque.

      Os negros começaram a cantar. O atabaque era tocado pelas mãos de Bazaque, que parecia ler a dor que ia no coração de muitos ali presentes.

      Nhó Pedro era o pai de santo do terreiro e, quando o atabaque tocou para pai João, esse se fez presente através da mediunidade de incorporação por Nhó Pedro, que saudou a todos e cantou para que outros pretos velhos se achegassem para o trabalho da noite.

      O café rescendia o cheiro bom e uma negra jovem e bonita trouxe uma caneca para pai João, que pegou um galho de arruda e macerou, colocando dentro da caneca e tomando um gole. As entidades iam incorporando nos médiuns que iam tomando assento em tocos de madeira. Hortência olhava para tudo. Fixou por instantes a atenção em Bazaque, a tocar tão bem aquele instrumento, e percebeu que, quando as mãos dele batiam mais forte o atabaque, o corpo dela arrepiava por inteiro. Sentiu imensa vontade de chorar, mas controlou para não mostrar a fragilidade de seu coração. Germana estava ao seu lado. Josias estava junto com os médiuns, incorporado com pai Joaquim. Ali não havia somente negros, o que chamou a atenção de Hortência. Havia também homens e mulheres brancos, mas não era possível distinguir se eram sinhás e senhores de escravos, pois havia imensa singeleza no vestir de todos.

          A singeleza do terreiro chamou muito a atenção de Hortência. Ela reparou nas rosas brancas no jarro em cima do altar de madeira, onde se via esculpida a imagem de Jesus. Ali não se via sangue de nenhum bicho morto, não existia sacrifício, não se usava bebida alcoólica e tudo era muito simples.

      A jovem que havia levado o café para pai João foi até onde estava Hortência e a direcionou para o preto velho.

      Ela estendeu as mãos na direção dele e pai João depositou um beijo com imenso carinho nelas. As mãos de Hortência estavam suadas, ela sentiu uma emoção imensurável naquele gesto do preto velho e não conseguiu segurar as lágrimas que desciam copiosamente por seu rosto.

      O preto velho pegou sua caneca vazia e a entregou à jovem para que enchesse com mais café. Enquanto isso, esperava em silêncio que Hortência vertesse seu pranto. De maneira respeitosa, pegou manjericão e alecrim, juntou com arruda e macerou com as mãos, entregando para a jovem sinhá, que levou as ervas às narinas, inalando profundamente o cheiro que exalavam.

      Ele colocou outras ervas maceradas na caneca, junto com o café, e deu para que ela tomasse, o que ela fez em silêncio. Parecia hipnotizada pelo olhar daquele negro, via bondade e amor nele e sentia como se já o conhecesse de algum lugar. Depois que ela sorveu a mistura, o preto velho tomou suas mãos novamente e disse:

      — Salve nosso Deus, fia. O que traz vosmecê aqui nessa noite de hoje? Que pensamentos tristes são esses?

      — Senhor, perdoe-me, mas o que me traz aqui hoje é o ódio. Desejo vossa ajuda para que afaste o senhor meu marido de sua amante. Desejo uma mandinga, um sortilégio ou qualquer coisa que faça com que ele lhe esqueça. Não posso continuar vivendo dessa maneira, sabendo que ele me despreza e que entrega a outra mulher o que é meu por direito. Sinto-me vilipendiada com tudo isso.

      Pai João olhava para Hortência:

      — Óia, fia, que suncê tá enganada. Aqui nóis num trabaia com amarração. O amor, fia, vem com os laço e não com os nó, a fia não carece de pagar por ele. Quando um fio de Deus faz isso, mermo que funcione, esse nó se desfaz com o tempo, fia, e a dor pro que fez o nó é muito maior.

    Pai João parou um minutinho, depois prosseguiu, com imenso carinho:

      — O véio qué aproveitá e falá umas coisa pra suncê, se puder, vosmecê preste atenção que isso pode lhe ajudar. A fia tem mãos de fada, desenha como artista e o que a fia faz nos vestido fica bonito demais da conta. Esse dom Deus lhe deu fia, pra acalentar e trazer alegria para seu coração e óia que suncê é boa nisso, fia.

      Hortência começou a chorar. Ninguém sabia que ela desenhava, além de Jasmim, a falecida mãe de Afonso Neto.

      — O amor, fia, vai habitar seu coração no dia em que souber perdoar, se perdoar e perdoar aquele que não ama a fia, como suncê queria. Óia, fia, num é culpa dele, o coração não escolhe o que os olhos acha que merece. Segue seu caminho, fia, e se suncê quiser voltar aqui, essa casa também é sua, não amarre o que tá solto, e o véio fala é de suncê, que pensa amarrá vosso marido e amarrá vosmecê na infelicidade que tá prestes a acabar. Vai pra casa, fia, e reza pro seu anjo de guarda, pedindo a ele que cuide de vossa casa, que acalente vosso coração na fé e que a fia acorde para o que tem valor na sua vida.

      Em seguida, o velho sábio pôs a mão no coração de Hortência, que chorava emocionada com a fala simples e firme daquele preto tão sábio, presente no terreiro através do negro cuidador daquele espaço, e continuou:

      — Suncê, fia, é um ser

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1