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Castro Laboreiro, entre brandas e inverneiras
Castro Laboreiro, entre brandas e inverneiras
Castro Laboreiro, entre brandas e inverneiras
E-book120 páginas1 hora

Castro Laboreiro, entre brandas e inverneiras

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Sobre este e-book

Desde tempos imemoriais, duas vezes por ano, toda a parentela, animais e pertences, mudava de casa, de acordo com o clima da serra da Peneda e o calendário religioso. Descia-se às inverneiras (aldeias em vales abrigados) para passar o Natal, subia-se às brandas (pequenas povoações em terras elevadas e soalheiras) para passar a Páscoa. Todas as famílias da freguesia de Castro Laboreiro, concelho de Melgaço, por mais pobres que fossem, tinham duas casas, muito semelhantes em dignidade e dimensão. O presente livro é dedicado a esta prática de nomadismo, ainda existente, mas quase em extinção, devido ao despovoamento e às alterações climáticas. Um modo de vida singularíssimo que, em breve, se tornará narrativa histórica com contornos de lenda.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de ago. de 2022
ISBN9789899118591
Castro Laboreiro, entre brandas e inverneiras
Autor

Luisa Pinto

Luísa Pinto é jornalista desde 1998, ano em que concluiu o curso de Comunicação Social na Universidade do Minho e ingressou na redação do Porto do jornal PÚBLICO. Começou por trabalhar na secção Local, onde escrevia sobre planeamento e urbanismo e passou depois para a secção de Economia, onde trabalhava temas como o investimento público e as políticas de habitação. Saiu do jornal em 2011, para concretizar o projeto pessoal de uma viagem pelo mundo em família — relatada semanalmente nas páginas da revista Fugas. Nunca deixou de escrever no Público e manteve colaborações com várias publicações nacionais (como a Evasões ou a TimeOut). Foi coautora do projeto Hotelandia, onde se divulgam bons exemplos da hotelaria portuguesa e em 2015 regressou à redação do Público, a tempo inteiro, altura em que intensificou o seu interesse nas áreas da coesão territorial e da valorização do território. Em 2021 saiu, de novo, dos quadros do jornal, para se dedicar de corpo e alma ao projeto jornalístico Rostos da Aldeia, uma plataforma onde se publicam histórias de todos os que contribuem para que o despovoamento não seja uma tendência inexorável, relatando os casos inspiradores de pessoas — novas e velhas — que lutam para o inverter.

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    Castro Laboreiro, entre brandas e inverneiras - Luisa Pinto

    Prólogo: um revelador eclipse total

    Fui pela primeira vez a Castro Laboreiro em agosto de 1999. Tenho razões muito concretas para me lembrar bem do mês (era Verão alto, calor escaldante) e do ano. Estava então anunciado o maior eclipse solar do século: seria a última vez que, no final do milénio, a Lua iria tapar por completo o Sol, e o dia ficaria noite — só visível com a ajuda de uns óculos especiais que rapidamente esgotaram nas farmácias. O pretexto da visita não foi o eclipse. Foi acompanhar o meu marido, então namorado e o objetivo era passar uns dias com a família. Para ele, tratava-se de um regresso às férias da adolescência, aos tempos em que a família se habituou, e o acostumou, a trocar as muito concorridas águas quentes do Algarve pelas tão geladas e estimulantes águas cristalinas da serra. Durante largos anos seguidos, a família alugava por duas semanas uma antiga casa de vigia florestal no Barreiro, uma inverneira que hoje em dia está praticamente abandonada — e a casa de vigia florestal também.

    Já tinha ouvido muitas histórias dessas férias juvenis, bem como descrições sobre as paisagens deslumbrantes, o rio pristino, o castelo surpreendente e as pontes fotogénicas. Subir a Castro Laboreiro seria para mim, também, uma oportunidade para conhecer um pouco mais do único parque nacional português — conhecia melhor o Gerês do que a Peneda e todas as oportunidades são boas para subir à serra. Tenho origens rurais, os verões da minha infância foram passados numa aldeia do Douro. Gosto de verões nas aldeias, de serões que se prolongam à mesa, entre tainadas e gargalhadas. O programa entusiasmava-me.

    Mas por causa desta minha estreia em Castro Laboreiro se dar por altura do eclipse, o meu contacto com os castrejos foi muito além do relacionamento normal que é dado aos turistas. E as conversas foram além dos pedidos de pão fresco, um café curto ou para que lado é o trilho que sobe ao castelo. Começava a dar os meus primeiros passos como jornalista e o Público espalhou repórteres pelos quatro cantos do país; e eu, que estava numa das aldeias mais remotas de Portugal, onde a estrada acaba no meio do nada para depois começar Espanha, ofereci-me para relatar o que encontrasse por ali.

    Encontrei gente aterrorizada, com medo do fim do mundo. Mesmo depois de a voz mais ouvida da terra, a do Padre Aníbal, ter ecoado no púlpito da pequena igreja românica, a dizer que não havia perigo, que eclipse não era apocalipse, o medo resistia. A prudência imperou. De véspera, andei pelas ruas da freguesia, o que significa percorrer vários povoados, e ia perguntando a quem encontrava onde iam ver o eclipse, que expectativas tinham, se se tinham preparado, o que iriam fazer. Preparar o eclipse seria pouco mais do que arranjar o tal par de óculos ou escurecer um pedaço de vidro com uma chama — a técnica foi abundantemente divulgada, mesmo que naquela altura ainda não estivessem as redes sociais disseminadas como hoje, a facilitar a informação e a desinformação. Mas o empenho, no momento, era possibilitar que toda a gente pudesse assistir àquele fenómeno astronómico.

    As perguntas que fui fazendo aos castrejos que encontrei tiveram repostas coincidentes. Quase todos pretendiam escurecer as portadas, enfiar-se dentro de casa, esperar que as 11.00 chegassem rápido e o fim do mundo temido continuasse, afinal, adiado. Agarravam-se ao dito «dos mil passarás, aos dois mil não chegarás», lembravam-se que 1999 era o último ano — o Sol desaparecer do céu não podia ser um bom sinal.

    Às 10.51, como previsto, a Lua tapou totalmente o Sol, mas logo de seguida destapou-o de novo. A vida prosseguiu, como sempre. O Padre Aníbal tinha razão, não foi o apocalipse. Tudo voltou a ser como era antes.

    O eclipse solar revelou-me gente que não vai com modas, nem com recomendações. Mostrou-me gente que faz o que sente e gente que diz o que pensa. Gente habituada a sobreviver e que aprendeu a viver. Fiquei rendida a Castro Laboreiro. Voltei lá mais vezes. Algumas vezes. Sempre poucas, para o tanto que há para ver e fazer.

    Vinte anos depois, em agosto de 2020, estive de novo em Castro Laboreiro. Outra vez com a família. Agora com filhos pela mão. E no Núcleo Museológico de Castro Laboreiro, onde lhes fui dar a conhecer algumas das tradições da região. Estivemos a apreciar longamente a informação contida no muito eficaz e curioso mapa que explicava como a população se organizava ao longo do ano, entre brandas e inverneiras. As brandas eram as aldeias situadas nos lugares mais altos da serra e as inverneiras, tal como o nome indica, eram as aldeias onde a população ia passar os meses mais rigorosos do inverno, procurando proteção no vale encaixado do rio Laboreiro. Até que ouvimos Filipe Sousa, o funcionário do museu, dizer por entre frases apressadas que ainda havia gente a fazer a mudança.

    Ainda havia famílias que estavam numa casa durante o verão e passavam para outra durante o inverno. Todos os anos se mudavam duas vezes. E questionei-me o que levaria estas famílias a continuarem a mudar de pouso com tudo o que uma mudança implica. Na minha cabeça — que já mudei de casa três vezes e não tenho boas recordações da logística que implica nem da trabalheira que dá — aumentava a perplexidade. Filipe insistiu que sim, que ainda há famílias a mudar, algumas com elementos do agregado sem mobilidade, acamados. Mas a tradição é para manter, dizia.

    — Estas famílias são os últimos guardiões dessa secular tradição — explicava.

    Aquelas palavras ficaram a ecoar na minha mente e a aguçar a minha curiosidade. Transumância em pleno século XXI. Gostava de ver isso, pensei para com os meus botões. Só parei de pensar quando ficou de algum modo combinado que em dezembro voltaria à aldeia, para acompanhar essas movimentações.

    Foi assim que cheguei à Leonor e à Isalina, à Adília e à Almerinda, à Raquelinda.

    Fui guiada pela Elisabete e pelo Filipe, verdadeiros anfitriões que me revelaram todas as peculiaridades deste povo. Foram eles que me apresentaram a estas mulheres, mas também a algumas tradições e contradições deste lugar. É um lugar como não há outro no mundo: uma espécie de aldeia que se espalha por 40 povoados, em que a população se divide entre camarros, truitinhas e gorriões e que se explica (e organiza) entre ambas as margens do rio Laboreiro.

    Os castrejos fazem o que pensam, dizem o que sentem. Em dezembro de 2020, a Leonor e a Isalina, a Adília e a Almerinda e a Raquelinda organizaram a mudança, passaram da casa de cima para a casa de baixo. Em março subiram todas à branda. Todas, menos a Raquelinda que, com tristeza, parou com as mudas.

    Os últimos guardiões desta secular tradição estão a desistir.

    Leonor, a mais nova das mulheres que continua a fazer a mudança, já avisou que não a vai fazer para sempre. Num futuro muito próximo, a tradição vai eclipsar-se de vez.

    Introdução

    O mês de dezembro de 2020 arrancou com muito frio, com temperaturas capazes de pintar de branco as zonas montanhosas do país. No concelho de Melgaço, a vila de Castro Laboreiro, alcandorada num planalto com 1100 metros de altitude, toda ela inserida nas paisagens protegidas do Parque Nacional da Peneda-Gerês, não foi naturalmente exceção. No primeiro fim de semana de dezembro, Castro Laboreiro foi palco de um denso e imaculado nevão, daqueles que se foram tornando raros, mas que, quando regressam, servem bem para sublinhar a importância de continuar a fazer «a muda», isto é passar da casa da branda para a da inverneira.

    A «muda» é uma tradição seguida pelos castrejos desde tempos imemoriais. Os mais velhos fazem-na porque os pais a faziam e os avós

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