Longe do mar
De Paulo Moura
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Sobre este e-book
Paulo Moura
Paulo Moura é repórter no jornal Público desde a sua fundação. Foi correspondente em Nova Iorque e editor da revista Pública. Há mais de 20 anos que realiza reportagens por todo o mundo, em zonas de crise, ou onde quer que haja notícias ou boas histórias. Fez a cobertura jornalística de conflitos no Kosovo, Afeganistão, Iraque, Tchetchénia, Argélia, Angola, Caxemira, Sudão, Líbia e muitas outras, e ganhou vários prémios (Gazeta, AMI, ACIDI, Clube Português de Imprensa, FLAD, Lettre Ulisses, Lorenzo Natali, etc.). É professor de jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa, é autor da biografia de Otelo Saraiva de Carvalho e outros quatro livros. Mantém actualmente um blogue de reportagens e vagabundagens intitulado «Repórter à Solta».
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Longe do mar - Paulo Moura
Este cheiro a mar
Vivíamos em Águeda. Os meus pais, ambos funcionários públicos, tinham sido lá colocados, e estavam satisfeitos. Águeda, perto de Coimbra e de Aveiro, atravessada a meio pela EN1, era considerada uma boa terra
. Na perspectiva dos meus pais, só tinha um problema: ficava longe do mar.
Eu e os meus irmãos não entendíamos essa obsessão quase neurótica, como se ver o mar, estar ao pé do mar, cheirar o mar fossem, em si mesmos, objectivos de uma vida. Como se o mar justificasse uma existência.
Estávamos no início dos anos 70 e Portugal era, provavelmente, um dos países mais aborrecidos do mundo. Numa vila como Águeda não havia cinemas, nem teatros, nem concertos, nem bares, nem discotecas, nem uma livraria, nem uma loja de discos, nem sequer um centro comercial. Para uma criança, isso era óptimo, porque o único divertimento que tínhamos eram os amigos. Mas é assustador pensar no que seria, na vila de Águeda dos anos 70, a vida de um adulto inteligente e curioso, como era o caso dos meus pais.
Tinham então a obsessão pelo mar. Era quase uma teimosia, uma mania, um vício, uma bandeira contra o sufoco. No fim de semana, temos de ir ver o mar
, começavam eles a dizer, a partir de terça-feira. E eu e os meus irmãos pensávamos: Que grande seca. Lá vamos nós estacionar o carro na praia da Costa Nova, ou Mira, e ficar ali a olhar, sem fazer nada
.
Mas as semanas eram longas e os meus pais descobriram uma forma simples, rápida e barata de satisfazer a sua obsessão. Havia, na estrada nacional
, 10 quilómetros para norte, umas bombas de gasolina que tinham um café. Um local verdadeiramente horrível chamado Caves da Primavera. Pois os meus pais asseguravam que, em certos dias, principalmente no Outono, quando um certo e determinado vento soprava, se podia sentir ali um cheiro a mar.
Ganhámos o hábito de ir, quase todas as tardes, depois do trabalho, tomar café às Caves da Primavera. Eu não via nenhum interesse naquilo, mas era contagiante a felicidade dos meus pais. Inalavam aquela brisa perfumada, acidulada e espessa, enchiam os pulmões com aquele bafo salgado, húmido, denso e profundo, e ficavam logo com outra cara. Riam, contavam histórias, falavam de planos futuros, e regressávamos a casa revigorados e tranquilos.
Durante anos, as Caves da Primavera foram o bálsamo das nossas vidas. Só por causa daquele cheiro. Às vezes, nem era preciso chegar lá. Com o vento propício, o aroma começava a sentir-se a meio do caminho. Outras vezes era preciso andar um pouco mais, para o alcançar. E lá fazíamos uns quilómetros adicionais. A minha mãe escrevia poemas, o meu pai expunha teorias sobre ventos e marés. Não podíamos viver sem o cheiro a maresia das Caves da Primavera. Um dia aconteceu uma coisa terrível.
Estávamos a tomar o café do fim de tarde na nossa estância de sonho quando surgiu um conhecido dos meus pais. Sentou-se na nossa mesa, desenrolou-se uma conversa de circunstância e a certa altura ouvi o meu pai dizer: …este cheiro que se sente aqui…
O homem fez uma careta. Pois, é muito desagradável
, disse ele. É o cheiro de Cacia, da fábrica de celulose. Quando o vento vem nesta direcção, é horrível!
E mudou de assunto.
Os meus pais não disseram nada. Voltámos para casa em silêncio. Portugal era o país mais triste do mundo, e nós, nós tínhamos de partir para o litoral.
A estrada
A viagem começou em Julho de 2007. Parti de Vila Verde da Raia, 10 quilómetros a norte de Chaves, em direcção ao Sul, até Faro. A Estrada Nacional número 2 tem quase 800 quilómetros. Foi construída por etapas, a partir de troços já existentes no século XIX, desde os anos 40 do século XX, numa época em que o interior do país ainda não estava condenado. Ou não se sabia que estava. A nova estrada deveria ligar cidades importantes, ser simultaneamente uma artéria vital atravessando o território por dentro, e a sua espinha dorsal, mantendo-o inteiro, vivo e sadio.
Hoje é fácil perceber que o movimento ao longo da EN2 não ocorreu afinal entre o Norte e o Sul, mas de leste para oeste. A estrada ficou atravessada no trânsito. O despovoamento do interior transformou a mais longa estrada portuguesa num fóssil de si própria.
Nalguns excertos, foram construídas ligações de auto-estrada, os IP (Itinerários Principais), noutros a via foi deixada ao abandono. Ela que foi concebida para unir é agora uma imagem de fragmentação.
O meu percurso também não foi linear, contínuo. Era esse o plano, mas muita coisa aconteceu. Nas primeiras semanas tudo correu mais ou menos como previsto. Eu percorria alguns quilómetros, conhecia pessoas, descobria histórias, e escrevia reportagens para o Público. Uma série sob o título Estrada Nacional 2 foi publicada a um ritmo diário, em Agosto de 2007. Mas já nessa altura se tornava difícil manter a disciplina. Por vezes era preciso voltar atrás, saltar quilómetros para sul ou para norte, para apanhar uma certa pessoa, surpreender um acontecimento ou saber a sua evolução. O que marcava o meu rumo não eram as setas, mas as histórias. Algumas fizeram-me voltar aos locais meses ou anos depois. A série para o Público acabou, mas eu continuei a procurar histórias na Nacional 2 e arredores. A estrada não era o tema, apenas o pretexto, o fio condutor de uma realidade com características comuns em todas as longitudes. A desertificação, o país secundarizado, o país número dois. Agora, nessa dimensão de desolada harmonia, a estrada voltava a unir.
As suas cidades e vilas, as suas encruzilhadas e rotundas eram como vértebras de um animal ferido e desconfiado, a quem a minha aproximação amansava e libertava. Um ser que se deixava descobrir, se revelava, se rendia às minhas interrogações, cada vez mais impertinentes, mais precisas.
Essas perguntas fizeram-me andar às voltas, sair da estrada e voltar a ela, recapitular caminhos, retomar fios narrativos. Nem sempre encontrava respostas. Nalguns casos, andei anos à procura. Iria foi uma dessas personagens que me mantiveram agarrado à Nacional 2. Onde estava ela, a filha de Joaquina, a mulher que viveu 20 anos sozinha numa aldeia? Cruzei-me com a história logo na primeira semana de viagem, na zona de Lamego. A aldeia de Anta, no cimo de um monte, está abandonada há décadas. As condições de vida eram demasiado duras, e os habitantes foram-se mudando para Mazes, uma povoação mais amena, no sopé do monte. Saíram todos, menos uma mulher, que ficou lá sozinha. Ainda é viva, encontrei-a em Mazes. Ao falar com ela percebi que afinal não ficou só. Joaquina tinha uma filha, que nasceu na aldeia e viveu lá com a mãe depois de todos terem partido. Iria viveu no cimo do monte, sozinha com a mãe, até aos 20