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Por onde vai a Banca em Portugal?
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Por onde vai a Banca em Portugal?
E-book803 páginas10 horas

Por onde vai a Banca em Portugal?

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Sobre este e-book

Os bancos portugueses lembram a história do Titanic. Portugal percorreu uma rota imprudente no sector financeiro onde navegava desde o século passado: afinal, BPP e BPN eram a ponta do icebergue. Muitos não acreditaram que algo enorme pudesse estar submerso (BANIF, BES, BCP, CGD, etc.). Para prevenir outros sinistros é preciso reforçar a supervisão bancária e a estabilidade financeira e melhorar a governação pública e privada. Isto é tanto mais urgente quanto é certo que alterações tecnológicas e climáticas nos levam por mares nunca dantes navegados.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de ago. de 2020
ISBN9789899004726
Por onde vai a Banca em Portugal?
Autor

Jorge Braga de Macedo

Academia das Ciências de Lisboa; CG&G‑NSBE; Catedrático jubilado UNL, Investigador NBER, CEPR e CIGI. Doutorado em Economia pela Universidade de Yale (EUA, 1979), foi director na EcFin (CE), ministro das Finanças, presidente do CD/OCDE e do IICT, ensinou em Luanda, Princeton, Paris, etc.

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    Por onde vai a Banca em Portugal? - Jorge Braga de Macedo

    Por onde vai a Banca em Portugal?

    Os bancos portugueses lembram a história do Titanic. Portugal percorreu uma rota imprudente no sector financeiro onde navegava desde o século passado: afinal, BPP e BPN eram a ponta do icebergue. Muitos não acreditaram que algo enorme pudesse estar submerso (BANIF, BES, BCP, CGD, etc.).

    Para prevenir outros sinistros é preciso reforçar a supervisão bancária e a estabilidade financeira e melhorar a governação pública e privada. Isto é tanto mais urgente quanto é certo que alterações tecnológicas e climáticas nos levam por mares nunca dantes navegados.

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    Jorge Braga de Macedo

    Academia das Ciências de Lisboa; CG&G­-NSBE; Catedrático jubilado UNL, Investigador NBER, CEPR e CIGI. Doutorado em Economia pela Universidade de Yale (EUA, 1979), foi director na EcFin (CE), ministro das Finanças, presidente do CD/OCDE e do IICT, ensinou em Luanda, Princeton, Paris, etc.

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    Nuno Cassola

    CefES­-Universidade de Milão­-Bicocca, Itália. CEMAPRE Universidade de Lisboa, Portugal. Doutorado em Economia pela Universidade de Kent (RU 1992). Trabalhou no BCE (1999­-2019) e no Banco de Portugal (1994­-1999); foi Professor no ISEG (1984­-1999) e Assistente no IST (1983­-1984).

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    Samuel da Rocha Lopes

    EBA — Autoridade Bancária Europeia (França); Executive Education­-Nova School of Business & Economics (Portugal); Aarhus University (Dinamarca). Investigador no CBR (Reino Unido) e ­CIRSF (Portugal). Doutorado em Finanças (ISCTE, 2009), foi economista no BCE e no Banco de Portugal.

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    Largo Monterroio Mascarenhas, n.º 1, 7.º piso

    1099-081 Lisboa,

    Portugal

    Correio electrónico: ffms@ffms.pt

    Telefone: 210 015 803

    Director de publicações: António Araújo

    Título: Por onde vai a Banca em Portugal

    Autores: Jorge Braga de Macedo, Nuno Cassola e Samuel da Rocha Lopes

    Revisão: João Ferreira

    Validação de conteúdos e suportes digitais: Regateles Consultoria Lda

    Design e paginação: Guidesign

    © Fundação Francisco Manuel dos Santos, Jorge Braga de Macedo, Nuno Cassola e Samuel da Rocha Lopes, Agosto de 2020

    Livro redigido com o Acordo Ortográfico de 1945.

    As opiniões expressas nesta edição são da exclusiva responsabilidade dos autores e não vinculam a Fundação Francisco Manuel dos Santos, a European Banking Authority (EBA), o European Central Bank (ECB), a Nova School of Business and Economics (Nova SBE), a Aarhus University, a Universidade de Lisboa e a University of Milan-Bicocca.

    A autorização para reprodução total ou parcial dos conteúdos desta obra deve ser solicitada aos autores e ao editor.

    Edição eBook: Guidesign

    ISBN 978-989-9004-72-6

    Jorge Braga de Macedo

    Nuno Cassola

    Samuel da Rocha Lopes

    Por onde vai a Banca

    em Portugal?

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    Índice

    Prefácio

    I. Introdução

    1. De onde é que vem a moeda?

    2. A parábola do crédito agrícola

    3. O papel do Banco Central

    II. Crédito e incumprimento

    Sumário

    1. Expansão do crédito em incumprimento

    1.1 Definição de crédito em incumprimento e comparações entre bancos

    1.2 Riscos subestimados, contexto internacional e ­causas de incumprimentos

    1.3 Expansão do crédito, sinais de risco e pressupostos de acompanhamento

    2. Crédito em incumprimento

    2.1 Portugal na cauda da Europa

    2.2 Origem dos créditos em incumprimento

    2.3 Desenvolvimento da definição de crédito em incumprimento

    2.4 Necessidade de ferramentas de acompanhamento dos incumprimentos de crédito

    III. Risco — Casos e percepções

    1. Os erros dos banqueiros

    1.1. Incompetência técnica (má gestão)

    1.2. Desgoverno cosmético

    1.3. Desgoverno desesperado

    1.4. Desgoverno fraudulento

    2. Exemplos de casos de desgoverno na banca em Portugal

    2.1. BES — o fim de uma era

    2.2. BCP — da expansão agressiva à guerra dos Tronos

    2.3. CGD — influência política e negócios duvidosos

    3. Resultados de um inquérito

    4. A questão da diversidade na gestão dos bancos em Portugal

    IV. Regulação e supervisão bancária

    Introdução

    1. A qualidade da regulação bancária

    1.1. Transposição da regulamentação bancária em Portugal

    1.2. Efeitos de prociclicidade

    1.3. Regulação europeia e portuguesa

    1.4. A importância de desenvolver estudos de análise económica e de impactos da regulação bancária

    2. A qualidade da função de supervisão bancária

    2.1. Falta de recursos e capacidade — confusão entre liberalização financeira e desinvestimento na função de fiscalização/supervisão bancária

    2.2. Gestão e funcionamento — Capacidade (de acção)

    2.3. Gestão e incentivos para a concretização e uso da capacidade

    2.4. Pilares da gestão de supervisão bancária — capacidade (autoridade, organização e recursos) e incentivos (proactividade, investigação e coragem)

    V. Viabilidade, digitalização e sustentabilidade

    Introdução

    1. Fragilidade financeira, baixa rendibilidade e modelos de negócio

    1.1. Indicadores de risco

    1.2. Estratégia de saída para créditos em incumprimento

    1.3. Aproveitamento máximo da regulação existente e mais supervisão bancária (menos forma e mais substância)

    1.4. Algumas propostas práticas adicionais de melhoria de funções de supervisão

    2. Digitalização financeira — oportunidades e ameaças, cenários de desenvolvimento

    2.1. Evolução da inovação financeira

    2.2. Cenários de desenvolvimento possíveis

    2.3. Necessidade de preparação da regulação e supervisão bancária — riscos, benefícios, recursos

    2.4. Novas dinâmicas entre instituições financeiras

    2.5. Papel das autoridades de supervisão bancária

    3. Mudanças climáticas e risco financeiro

    VI. História, constituição e supervisão financeira

    Introdução

    1. Donde vem a banca em Portugal?

    1.1. Situação não estática e não isenta de conflitos

    1.2. Supervisão bancária independente — mas independente de quem, poder­-se­-á perguntar?

    2. Crise, liberdade e constituição financeira

    2.1. Escolha pública e pressão externa

    2.2. Indústria, banca e fisco

    2.3. Compromisso com estabilidade não pode vir só de fora

    3. Proposta de reorganização da supervisão financeira em Portugal

    3.1. Aspectos fundamentais a considerar numa futura reorganização

    3.2. Reforço da coordenação nacional através de um renovado Conselho Nacional de Supervisão Financeira (CNSF)

    3.3. Reforço da eficiência da supervisão bancária

    Posfácio

    Referências

    Anexos

    Anexo 1: O Sistema de Pagamentos da União Monetária (Target 2)

    Anexo 2: Modelo de negócio bancário — titularizações generalizadas de empréstimos

    Anexo 3: Conglomerados ou grupos empresariais com sector financeiro, como um banco

    Anexo 4: Exemplo de especificidades e supervisão bancária proactiva

    Anexo 5: Missão e funções do Banco de Portugal — Junho de 2019

    Anexo 6: Lista de autoridades macroprudenciais nacionais

    Anexo 7: Exercício transversal de revisão da imparidade da carteira de crédito (ETRICC)

    Anexo 8: Processo de Revisão e Avaliação da Supervisão (SREP)

    Anexo 9: Percentagem de empresas devedoras e rácios de incumprimento (%)

    Anexo 10: Alterações do RGICSF Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 dezembro

    Anexo 11: Riscos de pandemias

    Riscos operacionais e de continuidade do negócio

    Riscos de liquidez e de financiamento

    Riscos de crédito e de solvabilidade

    Em memória de

    Filomena da Rocha (1953­-2018)

    Branca Braga de Macedo (1948-2020)

    Maria de Lourdes Cassola e Barata (1927-2020)

    Prefácio

    A IDEIA DE UM LIVRO QUE OLHASSE PARA O SECTOR BANCÁRIO PORTUGUÊS em termos da sua capacidade para equilibrar liberdade financeira e risco correspondeu ao interesse que despertavam os dez anos da crise financeira global. Essa parecia a melhor maneira de contribuir para uma análise dos problemas que afligem o sector bancário em Portugal, bem como de discutir as vias capazes de os ultrapassar.

    Como foram publicados muitos livros sobre a crise financeira global de 2007-2009, sobre a crise da dívida soberana e do Euro e também sobre as crises bancária e da dívida soberana portuguesa, cabe explicitar o principal contributo deste que é o de apresentar uma análise detalhada da regulação e da supervisão bancárias e os aspectos mais críticos da gestão do risco e do governo societário na banca em Portugal. Para isso, beneficiamos de entrevistas e discussões com vários profissionais sobre o sistema bancário português, o que permite uma perspectiva diferente e complementar do enquadramento da supervisão bancária e da gestão do risco e do governo societário. Estas influenciam todo o restante eco-fin-sistema, mas têm permanecido largamente desconhecidas do público. Esta análise tem como pano de fundo a crise da Zona Euro (ZE) que destapou as deficiências estruturais no tecido económico português e fez desaparecer os bancos privados portugueses — alterando uma constituição financeira secular.

    Face à complexidade e incerteza da situação geopolítica actual, Portugal encontra-se numa situação de grande vulnerabilidade que condiciona fortemente as opções nacionais. Um aspecto desse condicionalismo prende-se com os elevados níveis de crédito em incumprimento nos balanços dos bancos, tendo levado ao adiamento da resolução deste problema, o que só agravou os seus efeitos negativos.

    Na UE, tem-se tentado desenvolver um dos pilares que faltava, a União Bancária, e criar um sistema de supervisão na ZE, enquanto continuam os esforços de convergência de regulamentação na UE e se assiste ao desenvolvimento da União dos Mercados de Capitais. A questão que pairou era a de saber se a nova arquitectura estaria concluída antes da próxima crise.

    Assinada em Dezembro de 2016 a proposta à Fundação Francisco Manuel dos Santos Liberdade financeira e risco — por onde vai a banca portuguesa? da qual resultou este livro, reunimos regularmente em Lisboa e arredores, trocando documentos de estudo, os quais tencionamos consolidar e divulgar, valendo-nos de formações académicas diversificadas e experiências profissionais relevantes, tanto em Portugal como no estrangeiro.

    A esse respeito, ocorre precisar que — conhecendo embora muitos dos protagonistas desta narrativa — o foco é mais nos bancos do que nos banqueiros, pelo que nos limitamos a dar conta da opinião publicada a respeito dos três casos mais clamorosos e não tentamos obter opiniões de decisores políticos nacionais ou estrangeiros sobre os caminhos da banca em Portugal, expressão que julgamos mais relevante do que a usada no título proposto há três anos.

    JBM, NC, SdRL

    I. Introdução

    A ADESÃO DE PORTUGAL À UNIÃO EUROPEIA (UE) EM 1986 encontrou o sistema bancário português simples e fechado e uma supervisão bancária confundida durante vários anos com a função accionista do Estado e sem experiência prática de liberalismo financeiro. A abertura subsequente do sistema financeiro aumentou a liberdade financeira em Portugal. A adesão à Zona Euro (ZE), desde a primeira hora, acelerou todo o processo de liberalização, configurando­-se como uma verdadeira mudança de regime¹. Contudo, o tratado da UE assinado em Maastricht, no início de 1992, ignorou as implicações do processo de integração dos mercados financeiros europeus, uma acção convenientemente protectora e aceite por vários Estados­-membros. Desta forma, a ausência dum mercado único europeu para serviços financeiros permitiu que os sistemas bancários continuassem muito fragmentados na UE, limitando assim o papel de agregação e integração do sistema financeiro comunitário. Mau grado os tratados e a regulação europeia, as supervisões bancárias permaneceram competências nacionais — o que levou a disfunções ainda maiores de funcionamento prático do que no caso dos EUA, à luz dos acontecimentos subsequentes. Poderia Portugal ter­-se precavido contra tal disfunção?

    Talvez não. O certo é que, sem experiência e vontade interna (por vícios organizacionais e demasiado proteccionismo) e com insuficiente pressão externa para adoptar as melhores práticas internacionais, a preparação portuguesa revelou­-se totalmente inadequada. A partir de 2000, em Portugal, a significativa expansão do crédito bancário verificada durante a primeira década do Euro (sem que isso se tivesse reflectido nos preços dos activos financeiros ou nos custos de financiamento dos bancos, das empresas, das famílias e do soberano) alimentou a ilusão de que os riscos financeiros (individuais e sistémicos) estavam a ser devidamente geridos pelos bancos. Ao mesmo tempo, não foram levadas a cabo reformas institucionais e de renovação de modelos de gestão prática das autoridades, convenientemente ou não, que quebrassem vícios e proteccionismos existentes. Pior ainda, criou a ilusória garantia aos depositantes e investidores de que esses riscos estavam a ser auditados por entidades independentes e supervisionados pelas autoridades. Houve países da UE que se prepararam melhor para tal disfunção.

    O contexto internacional também facilitou a disfunção entre as actividades comerciais e as avalições de riscos. A nível internacional, e particularmente do G7, pode­-se dizer que foi sendo alimentada uma cultura de irresponsabilidade sob a capa de que tudo estava sob controlo: o acumular de desequilíbrios, mesmo os mais evidentes, era tido como sustentável. Como exemplo de má gestão de riscos de crédito, um dos modelos de negócios subjacente no dealbar do séc. XXI — os contratos de titularização de créditos — veio a revelar a sua fragilidade de forma espectacular na grande crise financeira. Pode­-se dizer que uma gestão credível do risco de crédito não fazia parte da governação (do dia­-a­-dia) de vários bancos. Onde e quando os directores de risco tentaram fazer­-se ouvir, as suas vozes foram ignoradas em prol da actividade comercial e dos incentivos de quantidade de créditos a conceder e prolongar. E mesmo nalguns casos, também vozes de técnicos supervisores bancários foram silenciadas. Portugal não foi excepção.

    A supervisão bancária em Portugal demonstrou falhas durante vários anos que não eram facilmente visíveis na altura. Não se conseguia discutir e perceber de forma independente e factual o potential impacto negativo futuro das falhas que existiam, dado o contexto de rendibilidade (ilusória) dos bancos em Portugal, que acompanhava grosso modo a dos restantes bancos da área do Atlântico Norte. Eram anos de rendibilidade dos capitais próprios a dois dígitos (23,6% em 2006, 20,6% em 2007 e 2008)². Mais tarde, haveria bancos a revelar estarem preparados para o fim da grande ilusão e bancos que afinal estavam fragilizados de forma estrutural, e caíram assim que a realidade veio ao de cima.

    Neste livro, uma análise aos aspectos institucionais e de gestão prática do bancos, auditores e supervisores em Portugal, bem como à regulação bancária europeia e nacional já existente na altura, permite concluir que as autoridades poderiam ter sido mais firmes e rigorosas de modo a moldar de forma mais eficiente o ecossistema de funcionamento do sistema bancário antes e durante a crise financeira.

    Em Portugal, entre 2011 e 2014, nos três anos que antecederam a introdução na UE da União Bancária, a constituição da Troika (Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia, incluindo as autoridades europeias de supervisão, e Banco Central Europeu) originou situações ambíguas relativamente aos bancos em Portugal, num contexto absolutamente sem precedentes. Por exemplo, os testes de esforço (stress­-tests) aos bancos em Portugal de 2011 e 2012 não foram acompanhados e precedidos de controlos suficientemente rigorosos e intrusivos sobre a qualidade e avaliação real dos activos bancários como viria a ser o caso mais tarde aquando da entrada em funcionamento da União Bancária. De facto, não havia cobertura legal para que outras instituições, além do Banco de Portugal (BdP), se pudessem imiscuir nas questões de supervisão ou aceder a informação confidencial sobre as instituições bancárias.³ O mesmo não aconteceu noutros programas de ajustamento na UE. Faltaria uma reforma institucional anos antes e mudança cultural na forma de gestão prática das autoridades financeiras portuguesas?

    A partir de 2014, o novo contexto da União Bancária, nomeadamente a supervisão bancária com coordenação europeia e muito menor poder de influência e decisão nacional, representou um choque ao qual o sistema bancário português (e não só) tem estado a adaptar­-se. Tornou­-se inevitável uma aplicação mais forte e rigorosa em Portugal das directivas europeias e das regras e orientações da Autoridade Bancária Europeia (conhecida pela sigla inglesa EBA), nomeadamente ao nível da governação dos bancos, gestão de riscos, idoneidades e conflitos de interesses, entre outros assuntos. Promoveu-se cada vez mais uma cultura de gestão do risco embutida nas decisões diárias de gestão interna dos bancos, representando o Mecanismo Único de Supervisão (conhecido pela sigla inglesa SSM) na ZE, uma oportunidade de confiança para o relançamento da actividade bancária em Portugal em bases mais sólidas. No entanto, dada a integral execução do programa de ajustamento acordado com a Troika, e apesar da subestimação dos riscos bancários que se haviam acumulado antes de 2014, foi possível uma saída limpa antes desses riscos se terem revelado plenamente.

    A partir de 2015, a política monetária baseada na expansão do balanço do BCE e em taxas de juro de curto prazo nulas ou mesmo moderadamente negativas, facilitou o desendividamento público e privado e a recuperação do consumo interno. A questão em aberto é saber no futuro se o nível de endividamento, que apresenta ainda valores muito elevados, e a contenção desse valor iniciada durante o programa de ajustamento será sustentável quando o BCE alterar a sua política monetária e aumentar as taxas de juro de referência.

    Desde 2016, o enquadramento político mundial mudou significativamente, tendo­-se tornado muito mais incerto dos dois lados do Atlântico, nomeadamente com o referendo sobre a saída do Reino Unido da UE (Brexit) e as eleições presidenciais americanas. De facto, o referendo de 2016 sobre o Brexit e todo o processo subsequente pode ser entendido como a rejeição por parte da maioria dos votantes (apenas evidente na Inglaterra e no País de Gales) da participação no aprofundamento do projecto de integração europeia e provavelmente também uma rejeição de certos aspectos da globalização, nomeadamente ligados à imigração e distribuição do rendimento. Tornou­-se evidente até que ponto a UE tinha ajudado a garantir a coesão e a resolução de conflitualidades históricas no Reino Unido, não só na Irlanda do Norte mas também na Escócia — além da posição particular de Londres. Com o Brexit esses fantasmas do passado estão novamente no centro da discussão da política interna do Reino Unido ao passo que a vitória de Boris Johnson, antigo mayor de Londres, em Julho de 2019, e depois em Dezembro de 2019, terá efeitos por tabela na UE nos próximos anos.

    A eleição de Donald Trump em 2016 para a presidência dos EUA também pode ser entendida como um protesto contra a forma como a globalização afectou certas camadas sociais da população. Outra circunstância foi a emergência da China como potência rival na cena mundial, superando a Rússia, cujo presidente Vladimir Putin também parece apostar no enfraquecimento do bloco económico­-político europeu. Assim se alimentam forças populistas anti­-UE, colocando uma enorme pressão sobre os governos da ZE, em particular.

    Neste contexto, não devem ser dados como adquiridos nem o actual grau de integração económica e financeira da UE nem o seu aprofundamento na ZE. Assim, torna­-se necessário pensar em cenários alternativos e mesmo situações de ruptura com o passado recente. Face à complexidade e incerteza da situação geopolítica actual, Portugal encontra­-se numa situação de grande vulnerabilidade que condiciona fortemente as opções nacionais. Um aspecto desse condicionalismo prende­-se com os elevados níveis de crédito em incumprimento nos balanços dos bancos em Portugal. Importa, pois, discutir possíveis formas, a nível nacional e europeu, de resolver os créditos em incumprimento, dado que o adiamento da resolução deste problema só agrava os seus efeitos negativos. Como resolver então os elevados níveis de crédito em incumprimento em Portugal e na UE?

    Na nova fase de integração europeia tenta­-se o aprofundamento de um dos aspectos que faltava, a União Bancária através de um seguro de garantia de depósitos europeu e o fortalecimento do sistema de supervisão na ZE iniciado em 2014 (com o mecanismo único de supervisão), enquanto continuam os esforços de convergência da aplicação prática da regulamentação bancária na UE. Ao mesmo tempo assiste­-se à tentativa de desenvolvimento da União dos Mercados de Capitais. Importa assim distinguir a gestão e reorganização do funcionamento das autoridades financeiras em Portugal. Como é que as autoridades de supervisão em Portugal irão conseguir uma mudança cultural na sua gestão e na absorção das melhores práticas internacionais? Como é que as autoridades poderão garantir credibilidade e influenciar positivamente o restante comportamento dos agentes de mercado na melhoria da eficiência de funcionamento do sistema bancário? Como é que o sistema bancário português tem estado a preparar­-se para os novos desafios e oportunidades, como os ligados à digitalização financeira e economia sustentável. Por onde irá a banca em Portugal nesse contexto?

    Abordam­-se, pois, neste livro questões que necessitam de análise cuidada para o processo de decisão relativo ao enquadramento do sistema financeiro português nestes desenvolvimentos. Um debate nacional sobre estas questões é urgente.

    Ao mesmo tempo, os bancos centrais encontram­-se sob pressão dado que a política monetária convencional parece ineficaz. De facto, a ideia da política monetária exclusivamente centrada em manter a inflação (IPC — de bens e serviços) à volta, ou perto, de um objectivo (inflation targeting) parece questionável. Como a crise financeira de 2007­-2009 revelou de maneira espectacular, a estabilidade do IPC e a moderação do ciclo económico não são garantia da estabilidade financeira. E esta, em última instância, acabará por determinar as outras duas. Justificar­-se­-á assim colocar a estabilidade de preços e do ciclo económico no contexto da estabilidade financeira sendo a manutenção da última, de ora em diante, um dos objectivos mais importantes dos bancos centrais. Assim, os vários aspectos da ligação entre os ciclos económico e financeiro devem ser tomados em conta por um banco central, explorando as sinergias existentes entre as políticas macroprudenciais e microprudenciais. Acresce que, com inflação estruturalmente baixa, fruto: 1) da atenuação das suas determinantes nacionais (ausência de uma espiral preços­-salários); 2) da globalização e internacionalização das cadeias de valor (Europa de Leste e China­-Ásia); e 3) do excesso de poupança a nível mundial (fruto do envelhecimento demográfico na Europa e nos EUA, e da elevada poupança na Ásia), é muito possível que a taxa de juro nominal de curto prazo deixe de ter a relevância que teve no passado como instrumento principal ou exclusivo da execução da política monetária, passando a política de compra de activos financeiros (e colateral) do banco central a ter um papel muito para além do chamado aligeiramento quantitativo. Essa tendência poderá mesmo ser reforçada caso a transição para uma economia descarbonizada tenha de ser acelerada devido ao crescente impacto das alterações climáticas sobre a estabilidade financeira global.

    Este livro apresenta uma visão que beneficiou também de entrevistas e discussões com vários profissionais sobre o sistema bancário português. Não é um relatório, mas antes reflecte a experiência de trabalho de dezenas de anos em várias instituições, nacionais e internacionais, a qual permitiu conhecer diversos intervenientes e os seus contributos e perspectivas. O nós que aqui surge é o contributo de todos eles, aos quais desde já agradecemos pedindo desculpa por qualquer interpretação menos conseguida. É também uma perspectiva diferente e complementar do enquadramento e diagnóstico de uma actividade, a supervisão bancária, que influencia todo o restante ecossistema e sobre a qual o público pouco conhece. Essa será talvez uma das suas maiores contribuições. Espera­-se que desperte a curiosidade do público sobre um mundo até aqui reservado aos especialistas.

    A grande crise financeira revelou deficiências estruturais na governação de bancos e na supervisão bancária como se mostrará ao longo do livro.

    Este livro tem seis partes, divididas em capítulos e secções e subsecções, além de dez anexos. A parte I resume a narrativa, e introduz os mecanismos da criação de moeda e, através da parábola do crédito agrícola, explica a expansão da dívida bancária e da moeda. O papel do banco central na criação de moeda também é explicado. Esta parte ajuda-nos a perceber a facilidade com que os bancos criam moeda, bem como as respectivas vantagens e riscos associados. Nas três partes seguintes, descrevem­-se minuciosamente aspectos cruciais específicos da banca em Portugal.

    A parte II, Crédito e incumprimento, tem três capítulos. Notando que as directivas europeias de regulamentação bancária incluíam definições e regras homogéneas na UE argumentamos que a sua aplicação prática foi muito menos prudente em Portugal do que noutros países. A definição de incumprimentos explica a obrigação, em 2011, de utilizar um novo rácio de crédito em risco — que viria a revelar de forma repentina uma subestimação significativa dos riscos, que se haviam acumulado como bolas-de-neve, em larga medida por não existir prevenção e proactividade na função de supervisão bancária.

    A parte III elenca casos e percepções de risco, tendo em conta o enquadramento constitucional, uma taxonomia de desgoverno bancário e os exemplos de grandes bancos em Portugal, como os casos do BES (o fim de uma era), BCP (da expansão agressiva à guerra dos Tronos) e CGD (influência política e negócios duvidosos). O capítulo 1 intitula­-se, significativamente, Os erros dos banqueiros, salientando a má gestão. Os resultados de um inquérito à gestão de risco, controlo interno e governo societário constam do capítulo 3 e a diversidade na gestão é abordada no capítulo 4.

    Na parte IV são tratadas a regulação e a supervisão bancária. Realça­-se a importância de elevados níveis de qualidade efectiva nas funções de regulação bancária no capítulo 1, designadamente através de estudos de análise económica e impactos da regulação bancária. O capítulo 2 trata da supervisão, lamentando a confusão entre liberalização financeira e desinvestimento na função de fiscalização/supervisão bancária. Como proposta de melhorias, a qualidade de gestão e os incentivos para a concretização e uso da capacidade precede a identificação de dois pilares essenciais: capacidade (autoridade, organização e recursos) e incentivos (proactividade, investigação e coragem).

    A parte V (viabilidade, digitalização e sustentabilidade) contém uma visão prospectiva sobre o futuro da banca em Portugal. O capítulo 1 aborda sucessivamente a fragilidade financeira, baixa rendibilidade e diferenças nos modelos de negócio, indicadores de risco, estratégia de saída para créditos em incumprimento, aproveitamento máximo da regulação existente e propostas práticas adicionais de melhoria da função de supervisão. No capítulo 2, abordam­-se as oportunidades e ameaças da digitalização financeira, as novas dinâmicas entre instituições financeiras e o papel das autoridades de supervisão bancária no novo mundo digital. No capítulo 3 desenvolve­-se a temática da sustentabilidade, nomeadamente, as mudanças climáticas e risco financeiro e o modo como os bancos encaram estes assuntos.

    Na parte VI apresenta-se um bosquejo histórico-institucional abrindo caminho para investigações ulteriores sobre a constituição financeira portuguesa.

    Embora os dois primeiros capítulos, da autoria do segundo e primeiro autores respectivamente, abordem um período longo da história financeira portuguesa, as perspectivas são complementares. Pode dizer­-se que a influência da escolha pública e da pressão externa é maior no capítulo 2, que resume o tema do livro na secção 3: compromisso com estabilidade não pode vir só de fora. O capítulo 3 contém uma proposta de reorganização da supervisão financeira em Portugal, incluindo o reforço da coordenação nacional através de um renovado Conselho Nacional de Supervisão Financeira e da eficiência da supervisão bancária. Nessa expectativa os autores deixam transparecer visões diferentes nos três capítulos, conforme os documentos de trabalho nos quais se baseia o texto publicado.

    Os onze anexos esmiuçam aspectos específicos: Sistema de Pagamentos da União Monetária (Target 2); modelo de negócio bancário baseado em titularizações generalizadas de empréstimos individuais; conglomerados ou grupos empresariais que incluam uma componente do sector financeiro, como um banco; exemplo de especificidades e supervisão bancária proactiva; percentagem de empresas devedoras e rácios de incumprimento; missão e funções do Banco de Portugal — Junho de 2019; lista de autoridades macroprudenciais nacionais; exercício transversal de revisão da imparidade da carteira de crédito (ETRICC); Processo de Revisão e Avaliação da Supervisão (SREP); percentagem de empresas devedoras e rácios de incumprimento; alterações do RGICSF Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 dezembro; nota do terceiro autor sobre Covid-19.

    1. De onde é que vem a moeda?

    O processo pelo qual os bancos criam dinheiro é tão simples que a mente o repele: exige um mistério mais profundo para algo tão importante.

    John Kenneth Galbraith, (1975, p. 18)

    NAS ECONOMIAS MODERNAS EXISTEM EM GERAL TRÊS FORMAS DE MOEDA: notas e moeda metálica, reservas no Banco Central, e depósitos bancários. O Banco Central e o governo são os únicos agentes que podem criar as duas primeiras formas de moeda. Como as reservas no Banco Central não circulam na economia — são depósitos dos bancos no Banco Central — a moeda que de facto circula na economia é constituída por notas e moeda metálica e depósitos bancários, sendo a moeda física hoje em dia apenas uma pequena parte da oferta total de moeda (cerca de 9% na ZE). Os bancos estão no centro dos sistemas de pagamentos modernos (ver Ryan­-Collins et al. 2012 e McLeay et al., 2014). A Figura 1 ilustra a situação.

    Fig1.jpg

    Uma trabalhadora tem a sua conta­-salário no Banco C; uma empresa tem a sua conta de tesouraria no Banco B e a senhoria tem a sua conta no Banco A. A empresa paga o salário através de uma transferência da sua conta no Banco B para a conta no Banco C; e a trabalhadora paga a renda da casa através de uma transferência bancária da sua conta no Banco C para a conta da senhoria no Banco A. Todos estes pagamentos/transferências são feitos/as automaticamente numa data predefinida. Ninguém tem de usar notas para fazer os pagamentos. Ninguém tem de ir ao banco levantar dinheiro e dirigir­-se a outro banco para fazer um pagamento/depósito. Pode fazê­-lo se quiser, claro. Mas é muito mais cómodo e seguro não o fazer. Além disso, há uma vantagem adicional em não ir ao banco. A empresa pode ter negociado uma linha de crédito com o Banco B de tal forma que se no dia de pagamento do salário não tiver disponibilidade na sua conta (de depósito) pode recorrer à linha de crédito do banco para suprir essa necessidade imediata de Tesouraria (contra pagamento de juro e reembolso). E a trabalhadora também poderá ter negociado um descoberto com o Banco C de tal forma que se por acaso no dia em que a renda tiver de ser paga não tiver o montante suficiente na sua conta (de depósito) o banco concede um crédito para cobrir a necessidade de curto prazo (sujeito a pagamento de juro e reembolso da dívida). Vemos desde já a estreita ligação entre crédito e depósito e o papel chave dos bancos neste sistema de pagamentos.

    Na Figura 1 está representado o Banco Central fora do circuito. De facto, nem a empresa, nem o senhorio nem a trabalhadora têm contas (crédito ou depósitos) no Banco Central. Só os bancos e o Tesouro (Estado) têm autorização para tal.

    No dia­-a­-dia ocorrem milhares, senão mesmo milhões, de transacções como as ilustradas na Figura 1. Ao fim de cada dia alguns bancos terão recebido mais ordens de pagamento do que recebimentos e vice­-versa. Se excluirmos as relações com o exterior e os pagamentos ao Tesouro (Estado) a situação pode ser ilustrada na Figura 2.

    Fig2.jpg

    O Banco B fez uma transferência para o Banco C. O Banco C recebeu uma transferência do Banco B e fez uma transferência para o Banco A; o Banco A recebeu uma transferência do Banco C. Imagine­-se agora transacções deste género — e outras — multiplicadas envolvendo todos os agentes e necessidades dessa economia. É possível que ao fim do dia o Banco B tenha necessidade de liquidez nomeadamente se os pagamentos forem muito elevados relativamente aos recebimentos. O Banco B terá então de recorrer a um empréstimo — interbancário — e o Banco A, no nosso exemplo, deverá ter disponibilidade para tal. O Banco A, por exemplo, pode fazer um empréstimo ao Banco B (de curto prazo) contra o pagamento de juro. Assim haverá um reequilíbrio nas disponibilidades de Tesouraria dos bancos. Em paralelo haverá uma transferência de reservas — que são depósitos dos bancos no Banco Central. As reservas do Banco A aumentarão e as reservas do Banco B diminuirão.⁶ No caso do Banco B não ter disponibilidade de reservas (por infringir os mínimos obrigatórios) e se o Banco A não quiser, por qualquer razão, conceder crédito ao Banco B, este terá de recorrer a um crédito do Banco Central contra pagamento de juros (em geral uma taxa de juro mais alta do que a praticada no mercado interbancário).

    Pessoas e empresas como as do exemplo estão excluídas do círculo constituído pelos bancos e pelo Banco Central. Nas economias modernas há dois sistemas de pagamentos (e crédito) separados embora interligados.

    Há várias versões mutuamente exclusivas da criação de moeda pelos bancos. Uma ideia frequentemente referida é a de que os bancos recebem moeda dos aforradores e depois emprestam­-na aos devedores (intermediação entre aforradores e investidores). Esta visão escamoteia um importante facto da actividade bancária: os bancos não precisam de esperar por novos depósitos para fazerem novos empréstimos aos clientes. De facto, é o contrário que acontece; ao conceder um crédito um novo depósito é simultaneamente criado na conta do cliente. Os depósitos bancários são criados quando um banco concede um crédito (em simultâneo creditado numa conta de depósito do devedor), faz pagamentos em nome de um cliente usando uma facilidade de crédito, quando compra um activo detido pelo sector privado, ou quando faz pagamentos por conta própria (salários e bónus).

    Uma outra visão baseia­-se na chamada reserva fraccionária. Nesta abordagem a criação de moeda está restringida pelo montante de reservas dos bancos detidas no Banco Central. Nesta abordagem, o Banco Central controla a quantidade de moeda em circulação através do controlo da quantidade de reservas dos bancos. Na realidade, o crédito concedido pelos bancos, as compras de activos ou pagamentos por conta própria só muito tenuemente estão ligados às reservas no Banco Central. A razão principal é que os pagamentos interbancários vão sendo feitos por grosso, de forma electrónica, com pagamentos e recebimentos compensando­-se largamente uns aos outros e com as diferenças compensadas durante o dia pelo Banco Central (crédito intradiário; e contrapartida de colateral) com o acerto de contas do remanescente ao fim do dia, banco a banco, através das suas contas de reserva no Banco Central e, em última instância, pelo Banco Central através de uma facilidade automática (ou não) de crédito (maturidade de um dia; com taxa de juro penalizadora e contrapartida de colateral).

    Os bancos têm assim o poder de criar nova moeda o que tem imediatas consequências para a prosperidade económica e a estabilidade financeira:

    1) Os requisitos regulamentares de capital só por si, poderão ser insuficientes para restringir o crescimento monetário e a expansão agregada dos balanços dos bancos nomeadamente numa fase eufórica ou ascendente do ciclo económico. Ou seja, os requisitos de capital poderão ser um instrumento ineficaz para prevenir a expansão exagerada do crédito e as associadas bolhas especulativas nos preços dos activos.

    2) Os bancos racionam o crédito. A oferta de crédito depende menos do nível da taxa de juro do que da confiança no respectivo reembolso, e da liquidez e solvabilidade dos outros bancos e do sistema bancário no seu todo.

    3) Os bancos têm a última palavra na afectação do crédito na economia. O sistema de incentivos que enfrentam (fiscais e outros) favorece muitas vezes a concessão de crédito contra garantias (colateral) de activos reais e propriedade, ou activos financeiros, que tende a desfavorecer a concessão de crédito à indústria e às PME.

    4) A especulação financeira tende a ser alimentada por uma concessão de crédito enviesada no sentido da compra de activos cuja oferta é inelástica (por exemplo, terrenos, empreendimentos imobiliários e acções); se os preços dos activos dados como garantia estiverem correlacionados positivamente com o aumento do crédito isso poderá gerar uma expectativa de ganhos de capital permanentes, evidentemente insustentável no longo prazo.

    5) Uma expansão orçamental, só por si, não constitui criação monetária (a não ser que o défice resultante seja financiado pelos bancos).

    Partindo desta abordagem torna­-se necessária a regulamentação e a supervisão da actividade bancária — caso contrário a sociedade tenderá a ser abalada por crises bancárias e financeiras recorrentes, associadas à criação e à contracção excessivas de crédito. E a regulação e supervisão terão de ir além da simples imposição de rácios de capital. De facto, tão ou mais importante do que rácios regulamentares serão os incentivos para a criação de linhas de defesa internas efectivas numa correcta gestão do risco e governação dos bancos.

    2. A parábola do crédito agrícola

    AS CRISES BANCÁRIAS TER­-SE­-ÃO DISSIPADO DA MEMÓRIA COLECTIVA DOS PORTUGUESES, pelo menos até há bem pouco tempo. De facto, seria necessário recuar até aos finais do séc. XIX, ao reinado de D. Carlos I, para encontrar em Portugal episódios tão dramáticos como a falência do soberano, o abandono do regime de câmbios fixos (na altura o chamado padrão­-ouro) ou falências bancárias. Mas afinal como é que é possível um banco ir à falência? A pergunta não é inocente, nem descabida. Se compreendermos como é que é possível a um banco ir sobrevivendo, numa economia moderna, sem nunca falir, teremos feito meio caminho no sentido de entender porque é que é necessário impor limites e regulamentar as actividades dos bancos. Se são os bancos que criam moeda como é possível irem à falência?

    A melhor forma de começar a abordar esta questão é pensar num banco com um modelo de negócios muito simples: conceder crédito (por exemplo à agricultura) e aceitar depósitos. Chamemos­-lhe a Parábola do Crédito Agrícola. Se olharmos para o balanço do banco ele aparecer­-nos­-á como ilustrado na Figura 3:

    Fig3.jpg

    No activo do banco aparecerão registados os empréstimos concedidos aos agricultores (crédito). Os créditos são promessas de pagamentos futuros a fazer pelos agricultores ao banco a título de juros (mais o reembolso do empréstimo). Neste exemplo os juros recebidos são a principal fonte de receita do banco. O reembolso dos empréstimos fará diminuir o activo do banco e, portanto, o montante de juros a receber no futuro. Por isso o banco tem interesse em continuar a conceder empréstimos.

    No passivo do banco aparecerão registados os depósitos dos clientes do banco. Simplificando um pouco, poderão constituir depósitos dos agricultores, das empresas que fornecem insumos para a agricultura (adubos, sementes, etc.), e das empresas que alugam maquinaria agrícola e de construção civil, entre outros. Os depósitos são promessas de pagamentos futuros, a fazer pelo banco aos clientes se e quando estes desejarem. Neste exemplo os juros pagos aos depositantes são o custo de financiamento do banco. O levantamento dos depósitos, sem redução equivalente dos empréstimos concedidos pelo banco, causaria dificuldades de financiamento ao mesmo. Por isso, o banco tem interesse em manter a confiança dos depositantes.

    É importante tomar em conta a igualdade contabilística básica que nos diz que:

    ACTIVO = PASSIVO + CAPITAL (1)

    ou seja, CAPITAL = ACTIVO — PASSIVO (2)

    A igualdade (2) acima diz­-nos que o banco será declarado insolvente se:

    ACTIVO < PASSIVO (3)

    isto é, se o passivo for superior ao activo, o capital do banco será negativo e o banco será declarado insolvente⁷.

    No nosso exemplo o lucro do banco (antes de impostos) será igual ao produto do volume de empréstimos concedidos pela taxa de juro cobrada subtraído do volume de depósitos multiplicado pela taxa de juro dos depósitos. Daqui se vê que, para o banco ter lucros, é fundamental que a taxa de juro dos empréstimos esteja, em média, acima da taxa de juro dos depósitos. O lucro assim gerado poderá ser distribuído aos accionistas, totalmente ou parcialmente, sendo neste último caso levado a reserva (que contará como capital adicional). Um banco que vá retendo lucros pode ir crescendo de forma prudente e sustentada, isto é, pode ir aumentando os seus activos (empréstimos) à medida que o capital que suporta esses empréstimos for crescendo.

    Se os depósitos forem de maturidade muito curta (por exemplo, à vista) a taxa de juro será, em condições de mercado normais, relativamente baixa, talvez até próxima de zero. Como os empréstimos serão em geral concedidos com maturidades mais longas (um ano ou mais) a taxa de juro cobrada pelos empréstimos estará acima da taxa de juro dos depósitos sempre que a curva de rendimentos tenha uma inclinação positiva: quanto mais longo for o prazo do empréstimo mais elevada será a taxa de juro remunerando a menor liquidez dos activos de longo prazo (preferência pela liquidez).

    Suponha­-se agora que um mau ano agrícola criou dificuldades aos agricultores obrigando alguns deles a faltar ao pagamento dos juros prometidos. No caso da falta de pagamentos exceder 3 meses dir­-se­-á que o crédito está malparado, ou seja, o mutuário entrou em incumprimento. Este crédito malparado deveria ser deduzido ao activo do banco com a correspondente redução do capital. De facto, o capital serve para absorver as perdas (inesperadas) do crédito malparado. Se as perdas forem suficientemente elevadas o capital que resta poderá não ser suficiente para garantir a continuidade da actividade do banco. É uma tal situação que se ilustra na Figura 4. De facto, as perdas levariam o banco à falência dado que o capital seria reduzido a zero, a não ser que os accionistas injectassem capital fresco no banco, imediatamente, para cobrir as perdas.

    Há pelo menos um problema adicional com esta situação. O maior perigo para o banco vem dos depositantes que, apercebendo­-se da situação difícil (afinal eles sabem que o ano agrícola foi mau e que há agricultores em dificuldade), poderão querer levantar os depósitos, isto é, converter os depósitos em dinheiro (notas). Evidentemente, o banco não produz notas (só o Banco Central tem autorização para as emitir), nem possui reservas (só existe crédito no activo). Como o banco não tem liquidez para fazer face aos levantamentos, abrirá falência. Neste caso nem haverá tempo para injectar capital no banco mesmo que os accionistas tenham meios para tal.

    Fig4.jpg

    Há várias formas do banco evitar a falência sem injectar capital fresco. Suponha­-se que o crédito tinha sido concedido contra a hipoteca dos terrenos agrícolas. No caso de incumprimento o banco toma posse das terras dos agricultores (executa a hipoteca) como contrapartida do crédito em incumprimento. Se o valor das terras for exactamente igual ao valor dos empréstimos o capital do banco manter­-se­-á inalterado, apenas mudando a composição do activo: onde antes havia apenas o registo do crédito concedido, haverá agora também o registo de activos reais (terrenos agrícolas) e um volume inferior de crédito. Esta situação está ilustrada na Figura 5.

    Fig5.jpg

    No entanto, como a vocação do banco não é a exploração agrícola (directa), as propriedades rurais acabarão por ter de ser vendidas (caso contrário haverá uma perda de rendimento para o banco pois, paradas no balanço do banco, as terras não rendem juros). O momento da verdade chegará quando o banco alienar as propriedades já que se o valor da venda for inferior ao valor contabilístico (que era igual ao valor do crédito malparado) o banco sofrerá uma perda de capital. Poder­-se­-á mesmo fechar o círculo voltando­-se à situação de insolvência.

    Há uma outra forma do banco evitar a falência sem injectar capital. Suponha­-se que o banco tinha constituído uma reserva precisamente para fazer face a futuros casos de incumprimento. Como contrapartida, por exemplo, o banco foi constituindo um depósito junto do Banco Central (reservas). Se as reservas acumuladas forem exactamente iguais ao valor dos empréstimos em incumprimento o capital do banco manter­-se­-á: o balanço do banco reduzir­-se­-á do lado do activo (anulando o crédito malparado) e do lado do passivo com a utilização das reservas acumuladas. Esta situação está ilustrada na Figura 6.

    Fig6.jpg

    Para os depositantes a conversão dos seus depósitos em dinheiro (notas) já não será tão urgente. Embora o banco continue a não poder produzir notas agora possui reservas. Caso seja necessário o Banco Central entregará ao banco, a seu pedido, um montante de notas equivalente a essas reservas. Pode dizer­-se que o banco possui liquidez para fazer face aos potenciais levantamentos e não irá à falência por esse motivo. Sabendo isto, muito provavelmente, os depositantes não levantarão os seus depósitos.

    Com um pouco de imaginação, o banco poderá optar por outra via, que pode mesmo até melhorar a sua situação patrimonial a curto prazo. Para isso o banco cria uma Sociedade Especial de Investimentos (SEI) com sede nas Ilhas Virgens. O crédito malparado que diz respeito a crédito à agricultura sob hipoteca das terras agrícolas é transformado em crédito para projectos de turismo rural (ou campos de golfe) a serem construídos no futuro depois da execução da hipoteca: passa a ser uma carteira de crédito diversificada e promissora de altos rendimentos. A SEI compra o crédito malparado ao banco, depois de transformado em campos de golfe futuros, e paga com títulos (repare­-se que não há dinheiro envolvido). Estes títulos são de três tipos: AAA, BBB e Acções. O detentor dos títulos AAA é o primeiro a receber remuneração a partir dos fluxos de caixa gerados pela carteira de títulos; o titular dos títulos BBB é o segundo a receber, e o detentor das acções é o último na fila de recebimento. Uma conhecida agência de notação considera os títulos AAA de elevada qualidade de crédito (baixo risco de perdas). Chama­-se a esta operação titularização do crédito.

    Desta forma, a situação patrimonial do banco melhora porque em vez de crédito malparado, o banco passou a deter no activo alguns títulos, com baixo risco de crédito. O futuro dirá se os projectos turísticos geram algum rendimento e se a SEI cumpre a promessa de pagamentos. Entretanto, o banco mostra uma situação patrimonial que, potencialmente, esconde a realidade do risco de crédito envolvido. Esta situação está ilustrada na Figura 7.

    Fig7.jpg

    Há uma outra forma de resolver o problema, menos elegante mas igualmente eficaz, pelo menos no curto prazo. Ela consiste em o banco conceder um empréstimo aos accionistas para estes injectarem capital no banco ao mesmo tempo que eliminam o crédito malparado e reduzem o capital desse montante. Na prática, o banco anula o crédito malparado e substitui­-o por crédito aos accionistas que por sua vez subscrevem o aumento de capital do banco dando como garantia do empréstimo as acções do próprio banco. A operação é muito simples e está ilustrada na Figura 8.

    Fig8.jpg

    No balanço dos accionistas (ou das empresas holding por eles controladas) será registado no activo as acções do banco e no passivo o crédito recebido.⁹ Uma parte dos lucros a distribuir aos accionistas no futuro, será utilizada para reembolsar a dívida e pagar os juros ao banco. A sustentabilidade desta operação depende da reacção dos depositantes que, em parte, estará dependente da transparência das contas do banco: conseguirão os depositantes identificar e distinguir no balanço do banco aquilo que corresponde ao crédito à agricultura e, aquilo que diz respeito ao crédito aos accionistas? E será que o crédito à agricultura que ficou no balanço gera rendimentos suficientes para remunerar os accionistas permitindo­-lhes reembolsar a dívida e pagar os juros devidos ao banco? Provavelmente não.

    Moral da história:

    1) Os balanços dos bancos são difíceis de interpretar já que dizem respeito a promessas de pagamentos e recebimentos futuros;

    2) Se um crédito está malparado ou não, e se isso acarreta prejuízos para o banco, tem um elemento de subjectividade nomeadamente se o crédito tiver uma garantia hipotecária, dada a incerteza sobre o valor futuro da garantia;

    3) A constituição de reservas constitui uma protecção contra o crédito que entrará em incumprimento; mas isso reduz a taxa de rendibilidade do capital, no curto prazo, dado serem constituídas à custa de lucros não distribuídos;

    4) Através de inovações financeiras (por exemplo, titularização) o banco pode esconder os riscos subjacentes, pelo menos durante algum tempo; e isso pode ser feito na crença de que depois da tempestade virá a bonança ganhando tempo na esperança de salvar a situação;

    5) O crédito poderá ser uma arma autodestrutiva se for utilizado em benefício dos accionistas do banco (ou de empresas por eles controladas); especialmente se for utilizado de forma circular (banco —> accionistas —> banco).

    Vejamos agora com mais detalhe o processo de concessão de crédito à agricultura. Tal como ilustrado na Figura 9, o primeiro passo consiste em registar no balanço do banco os empréstimos concedidos (no activo) e simultaneamente creditar a conta de depósito dos agricultores pelo mesmo montante (no passivo). O balanço dos agricultores será registado de forma simétrica: os depósitos no banco no activo e os créditos recebidos no passivo. Vamos assumir que os créditos se destinam à construção de uma barragem para irrigação. Para isso fazemos entrar uma empresa de construção na parábola cujo balanço está, no início, vazio (Figura 9).

    Fig9.jpg

    O passo seguinte consistirá na construção da barragem de irrigação pela empresa de construção civil. Quando estiver concluída a obra, os agricultores pagam à empresa de construção: isso é feito através de uma transferência bancária dos depósitos dos agricultores para a conta da empresa (para simplificar o exemplo a empresa de construção tem a sua conta no mesmo banco). Tal como ilustrado na Figura 10 no activo do balanço dos agricultores o depósito desaparece e será substituído pelo registo de um activo real (barragem). O passivo dos agricultores mantém­-se. No activo da empresa de construção, que estava vazio, aparece registado um depósito no banco (Figura 10). No passivo do banco há apenas uma mudança do nome do titular do depósito.

    Fig10.jpg

    Há duas lições de alcance geral que se podem tirar deste exemplo:

    1) Os bancos criam moeda quando concedem crédito. A concessão do crédito é feita a partir do nada, isto é, o banco não tem de obter os depósitos primeiro para depois conceder o crédito. Os depósitos são criados no acto da concessão do crédito. Os bancos não são meros intermediários de poupança preexistente.

    2) O risco de crédito é o factor central a ter em conta na avaliação da rendibilidade prospectiva de um banco. De facto, desde que os pagamentos sejam feitos através de transferências conta a conta dentro do mesmo banco não há restrições de financiamento, ou seja, os créditos são financiados pelos depósitos.

    À luz do exemplo acima descrito o leitor deverá ter percebido que a obtenção de uma licença bancária é, no fundo, um privilégio dado a uma instituição: o de criar moeda. E, para além disso, surge inevitavelmente a questão de saber se, e como é que as autoridades monetárias controlam o crescimento monetário. Veremos o papel do Banco Central antes de tentarmos responder à questão.

    3. O papel do Banco Central

    COMECEMOS POR ESTUDAR O BALANÇO DO BANCO CENTRAL e a sua relação com os balanços dos bancos e das empresas e famílias (Figura 11). Nesta economia simplificada há duas necessidades de liquidez na economia nacional (agregada): notas e reservas.

    Fig11.jpg

    As notas são um meio de pagamento directo na posse das famílias e das empresas (registado no activo do balanço respectivo). O outro meio de pagamento usado pelas famílias e empresas, nesta economia, são os depósitos bancários. A larga maioria dos meios de pagamentos ou moeda no sentido geral é constituído pelos depósitos bancários (cerca de 91% na ZE). A criação de notas é monopólio do Banco Central, daí estarem registadas no passivo do balanço do Banco Central. Este elemento da liquidez só pode ser fornecido (e sê­-lo­-á) pelo Banco Central. O outro elemento da liquidez são as reservas. As reservas não são mais do que depósitos dos bancos no Banco Central. As famílias e as empresas não têm depósitos no Banco Central, só os bancos (e o governo) é que têm. De facto, nesta economia há dois sistemas de pagamentos que funcionam de forma separada (embora interligada). As famílias e as empresas utilizam notas e depósitos bancários para procederem a pagamentos (compra de bens e serviços e serviço de dívida — juros e reembolso). Os bancos utilizam depósitos no Banco Central para fazerem pagamentos entre si. As reservas estão registadas no activo do balanço dos bancos e no passivo do Banco Central.

    As necessidades de liquidez desta economia são então:

    NECESSIDADES DE LIQUIDEZ = NOTAS + RESERVAS (4)

    O Banco Central satisfaz estas necessidades através de operações de cedência de liquidez aos bancos:

    OPERAÇÕES DE CEDÊNCIA DE LIQUIDEZ = NECESSIDADES DE LIQUIDEZ (5)

    A cedência de liquidez, que poderá ser feita de diversas formas, tem em geral como garantia o crédito concedido pelos bancos a empresas e famílias e/ou os títulos detidos pelos bancos. Importa ter em conta que o controlo monetário do

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