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Cidade e Modernidade na Literatura de Machado de Assis e Lima Barreto
Cidade e Modernidade na Literatura de Machado de Assis e Lima Barreto
Cidade e Modernidade na Literatura de Machado de Assis e Lima Barreto
E-book370 páginas5 horas

Cidade e Modernidade na Literatura de Machado de Assis e Lima Barreto

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Sobre este e-book

O livro Cidade e Modernidade na literatura de Machado de Assis e Lima Barreto propõe analisar a vida moderna na cidade do Rio de Janeiro a partir da literatura. Machado de Assis (1839-1908) e Lima Barreto (1881-1922) foram argutos observadores do cotidiano fluminense. Pertencendo a gerações diferentes, ambos escreveram sobre momentos importantes da história da cidade, como a transição da monarquia para a república e os conflitos ocorridos nos primeiros anos do novo regime, como a Revolta da Armada e a repressão florianista. A leitura atenta de seus textos revela constantes imagens e alusões a tal universo cultural e social. Os romances Esaú e Jacó (1904) e Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) transmitem uma capital dinâmica e politicamente conturbada. Os contos "Uns braços", "Missa do Galo", "A cartomante", "A causa secreta", de Machado, e "Um e outro", "O homem que sabia javanês", "Cló", "O filho de Gabriela", de Lima Barreto, abordam os riscos, os conflitos, a solidão e a aventura no Rio de Janeiro. Sensíveis às questões sociais então vigentes, esses escritores, por meio da crítica e da ironia, apresentaram as contradições da cidade e da própria modernidade brasileira.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de dez. de 2020
ISBN9786555236217
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    Cidade e Modernidade na Literatura de Machado de Assis e Lima Barreto - Davidson de Oliveira Rodrigues

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Agradecimentos

    Este livro surgiu a partir da tese de doutorado que escrevi sob a orientação da professora Tânia Pellegrini. Sou grato pelo tempo que trabalhamos juntos. Tânia respeitou desde o início as especificidades da minha proposta de pesquisa, sugeriu questões e apresentou desafios, textos e livros que até então eu não conhecia. Com ela aprendi a importância de ser um leitor qualificado.

    Agradeço aos professores Gabriel de Santis Feltran, Wilton José Marques, Dmitri Cerboncini Fernandes e Cibele Saliba Rizek, pela leitura e pelo comentário dos textos de qualificação e tese. Também gostaria de expressar os débitos que tenho com Eliza Linhares Borges, que me introduziu no mundo da pesquisa, ainda na graduação.

    Agradeço ao Instituto Federal do Sul de Minas Gerais, que me concedeu a licença de qualificação. Agradeço aos meus colegas da área de Humanas, sobretudo ao Gregório e ao Roberto, que assumiram alguns dos meus encargos docentes.

    Reverências e agradecimentos aos meus amigos (virtualizados ou não!), colegas e familiares: meus pais, minha irmã, Vanessa, Eder, João Paulo Lopes, Rajão, Mariana, Márcio, Hilário, Liliana, João Paulo Ferreira. Menção especial a Daniela Ribeiro de Oliveira, uma prestativa companheira no doutorado que sempre me auxiliou.

    Por fim, total gratidão para com a Cleid; sua paciência e seu companheirismo foram indispensáveis, sobretudo na reta final. Ela me deu as mãos nos momentos em que estava perdido, sem ela este trabalho nunca teria existido.

    Prefácio

    O livro de Davidson de Oliveira Rodrigues, Cidade e Modernidade na literatura de Machado de Assis e Lima Barreto, é o resultado de um duplo desafio. Primeiro porque sua versão primeira é uma tese de doutorado em Sociologia, defendida em 2017, na Universidade Federal de São Carlos, o que demanda trabalho bem embasado teoricamente e interpretação cuidadosa de dados de pesquisa. O segundo desafio é que se trata de um trabalho interdisciplinar, ou seja, que transita por diferentes áreas, no caso, Sociologia, Literatura e História, exigindo conhecimentos específicos de todas, multiplicando por três o esforço. Pensando melhor, deve-se acrescentar mais um desafio que Davidson superou com sucesso. Trata-se de trabalhar com Literatura, matéria pertencente ao campo das Artes, o que demanda prévia bagagem de leitura, sensibilidade para com as sutilezas da linguagem literária, tão cheia de armadilhas para quem se acostumou com os aspectos mais concretos e específicos da pesquisa historiográfica e sociológica.

    Além disso, Davidson escolheu, como pesquisa de campo, dois monumentos da literatura brasileira, Machado de Assis (1839-1908) e Lima Barreto (1881-1922), sobre os quais existe uma vastíssima fortuna crítica, o que, se aparentemente facilita o trabalho, na verdade torna-o uma ponte suspensa sobre um abismo, tal a profundidade dos estudos anteriores, nas mais diversas linhas teóricas. Mas essa ponte foi cruzada com sucesso, recorrendo a uma metodologia que considerou os textos ficcionais desses escritores não como testemunhos objetivos da vida na cidade, mas como representações importantes de aspectos da pretendida modernização da capital fluminense, entre as duas últimas décadas do século XIX e os primeiros anos do século XX.

    Foi nesse período conturbado da história do Brasil, envolvendo os acontecimentos fundamentais do fim da escravidão e da proclamação da república, que os escritores deixaram figuradas, em romances e contos, as transformações da cidade e dos modos de convivência de seus habitantes. Davidson frisa com propriedade que ambos os autores, por meio de romances e contos escolhidos, enxergam o processo da proclamada modernização do Rio de Janeiro da belle époque como um processo não favorável, eivado de pessimismo subjacente. Ele ressalta que, como observadores qualificados, tanto Machado quanto Barreto traçam um painel de imagens e alusões ao contexto urbano fluminense, analisando com perspicácia as tensões nas formas de sociabilidade e as novas sensibilidades que o projeto de modernização vai criando. Observador sensível também, a Davidson não escapam os conflitos entre uma tradição social brasileira de traços arcaicos, rurais e coloniais e uma ideia de nação europeizante, modernizante e liberal, que se expressa em temas e situações literárias carregadas de ironia, em graus diferentes para cada escritor analisado. Fica claro, na interpretação de Davidson, que eles percebem viver em uma espécie de entroncamento entre passado e futuro, observando as consequências sociais da escravidão, o eurocentrismo das elites cultas e os anseios muitas vezes ilegítimos de crescimento econômico a qualquer custo.

    Pelo fato de transitar entre três áreas, o trabalho procura esclarecer o conceito de representação literária, não entendido como simples imitação da realidade ou reflexo num espelho, mas como uma dimensão constitutiva da própria realidade, cuja possibilidade de interpretação é valiosa, dado que cada texto sempre está em íntima relação com seu contexto, mesmo que o negue. Assim, a nomeação do real, nos escritores, é um constructo, um discurso sobre a realidade, mas que pode e deve ser analisado como resultado de um dos imaginários operantes na sua época.

    Apoiado em ampla biografia, que contempla as três áreas do conhecimento, o livro dialoga com Roger Chartier, Pierre Bourdieu, Raymond Williams, Antonio Candido, Roberto Schwarz e outros, além dos clássicos da Sociologia no estudo das urbanidades. Seus argumentos são destacados ou problematizados, criando-se uma densa rede de conceitos que são operados em busca da explicação da importância da então capital para a totalidade do país.

    Machado de Assis e Lima Barreto são vistos então como exímios pintores da vida moderna brasileira dos 800, que o trabalho recupera na qualidade de precursores da representação de aspectos fundantes de um projeto de país que até hoje não se cumpriu.

    Prof. ª Dr.ª Tânia Pellegrini

    Professora emérita da UFSCar

    Abreviatura das obras literárias utilizadas

    Sumário

    Introdução 13

    Capítulo 1

    As representações da cidade na literatura:

    modernidade e capitalidade 23

    1.1 Literatura e representação 24

    1.2 Representações da cidade moderna 31

    1.3 Sensibilidades modernas: cidade e fragmentação 45

    1.4 Centro e margens como representações literárias da cidade 54

    Capítulo 2

    A capital e os seus estranhos: cidade e literatura no

    Rio de Janeiro 61

    2.1 Representações do Rio de Janeiro: capitalidade e controle 63

    2.2 Representações da capital em Esaú e Jacó e Triste Fim de Policarpo Quaresma 77

    2.3 A capitalidade posta à prova: revoltas no Rio de Janeiro 93

    Capítulo 3

    Aventura, sedução e perigo na cidade moderna:

    representações da indeterminação urbana 103

    3.1 Para além da cenografia, a cidade como constructo social 104

    3.2 Sedução e indeterminação na auto-organização da cidade 109

    3.3 Sedução e perigo na auto-organização da cidade 133

    Capítulo 4

    O ouro dos tolos: o estranhamento na

    cidade moderna 155

    4.1 A cidade como objetivação da inteligência brasileira 156

    4.2 Cidade e estranhamento: entre o ser e o parecer 163

    4.3 Cidade e insulamento: a solidão do homem moderno 184

    Considerações finais 205

    Referências 213

    ÍNDICE REMISSIVO 223

    Introdução

    O presente trabalho se debruça sobre as representações da cidade e da vida urbana do Rio de Janeiro em alguns contos e romances de Machado de Assis e Lima Barreto. A relação entre campo e cidade, perseguida ao longo deste texto, é fundamental para a compreensão de como a literatura contempla a experiência social brasileira. A valorização do urbano vem legitimando a procura por vínculos com as cidades europeias, historicamente um artifício para qualificar o Brasil como um lócus de civilização. Os segmentos supostamente europeizados privilegiaram tais vínculos com o Velho Mundo, tomando o Rio de Janeiro como ombreado às capitais europeias. Portanto as representações literárias do urbano tematizam dilemas da modernização do país, tendo como referente um conjunto de representações do que seria a Europa.

    O panorama histórico que se abre é o da modernidade¹. Portanto pressupõe-se a contribuição das representações literárias para a maturação de um conhecimento sociológico acerca do mundo moderno. Marshall Berman (1986) propôs uma análise fundamentada na literatura e na sociologia na qual aspectos-chave da modernidade foram destacados. A cidade aparece como palco da modernização (inovações técnicas e tecnológicas) e do modernismo (subjetivação e estética das inovações), demandando novas formas de percepção dos fenômenos urbanos e industriais. De uma forma bem esquemática, trata-se de compreender a modernidade a partir de um conjunto de representações cujo conteúdo é o próprio cotidiano.

    Este estudo, portanto, opera uma análise histórico-sociológica das representações literárias da modernidade brasileira. Interessa compreender como símbolos, qualificativos, adereços e elementos característicos da vida moderna foram apropriados e conciliados com as especificidades oriundas de uma sociedade baseada na exploração do trabalho escravo e na preservação de um modelo agroexportador. O principal referencial pode até ser a Europa, mas os autores pensam tais questões para um quadro local. Por isso, a noção de uma modernidade brasileira não implica a problematização desse termo como uma experiência anômala, excêntrica ou destoante do conjunto². A leitura dos desdobramentos desse fenômeno no Brasil não significa que a modernidade brasileira seja diferente da europeia em um sentido qualitativo.

    A categoria modernidade fluminense enquadra um conjunto de experiências e transformações sociais que foram percebidas no âmbito da cidade por seus próprios agentes. Dito de outra maneira, este livro analisa as visões de Machado de Assis e Lima Barreto acerca das sociabilidades da vida urbana do Rio de Janeiro. Os dois autores não foram críticos dos modelos sociais então constituídos. Entendo que são duas vozes destoantes que problematizaram a sociedade brasileira a partir de seus textos literários.

    Joaquim Maria de Machado de Assis (1839-1908) nasceu e morreu no Rio de Janeiro. Foi funcionário público, trabalhou no Diário Oficial (1876-1873) e na Secretaria da Agricultura (1874), galgando vários cargos nas diretorias que se sucederam. Não completou a educação formal, pois estudou apenas o primário, no entanto foi autodidata e acumulou impressionante cultura literária. Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) também nasceu e faleceu no Rio de Janeiro. Aluno da Escola Politécnica, teve inúmeras reprovações e acabou por desistir do curso. Após aprovação em concurso público ingressou na Secretária da Guerra como amanuense no ano de 1903. Desenvolveu problema com alcoolismo e passou por duas internações no Hospício Nacional (em 1914 e 1919)³.

    Na historiografia literária é atribuída a Machado de Assis e a Lima Barreto ascendência mulata ou negra. Conforme se vê, ambos tiveram trajetórias diferentes. Machado de Assis conquistou um branqueamento ao ser bem recebido nas elites intelectuais do Rio de Janeiro; Lima Barreto se tornou um alijado, excluído e autoexcluído. Em certa medida, Lima Barreto é um sucessor imediato de Machado de Assis, mas entre ambos há uma diferença de 42 anos. Considerados testemunhas e analistas da modernidade brasileira, eles interpretaram as contradições do desenvolvimento da cidade na transição dos séculos XIX-XX. Evidentemente, não presenciaram todos os eventos narrados, mas estiveram atentos às particularidades históricas do país, destacando a capital como centro da vida política brasileira.

    Ao escreverem sobre a vida moderna brasileira, Machado de Assis e Lima Barreto transformaram problemas urbanos e sociais em temas literários. Ambos acompanharam os percursos de seus personagens nas ruas do Rio de Janeiro por meio de narrativas que mesclaram temas como liberalismo e escravidão, capital e província, ciência e superstição. Quando comparados, é difícil não se convencer da complementaridade de suas perspectivas ao tratarem de temas comuns ao pensamento social brasileiro, com destaque para a contraposição entre campo e cidade. Dicotomia que, em se tratando de imaginários oitocentistas, foi recorrente nos relatos da experiência urbana.

    A modernização do país era uma visão cara ao imaginário dos grupos dominantes; a pretensão era fazer das cidades brasileiras (ou pelo menos do Rio de Janeiro) mimeses de Londres e Paris. As menções ao atraso, por sua vez, encontravam substrato nas descrições dos mundos silvícola e sertanejo. Conforme será mostrado ao longo deste livro, a literatura brasileira assumiu-se como responsável por representar os espaços do país – criando imagens positivas e negativas do interior para os habitantes da cidade⁴. Os símbolos da vida moderna estavam corporificados na iluminação, na rua pavimentada, no bonde, na carruagem e no automóvel. Nesse imaginário, as avenidas eram vitrines da civilidade e sintomas de europeidade. De tal forma que o Rio de Janeiro, por ser capital, funcionava como modelo e receituário de urbanização. Isto é, a cidade era centro de poder e laboratório de gestão, ensaiando medidas a serem replicadas em outras partes do país⁵.

    O recorte temporal não tem uma precisão factual, mas identifica eventos componentes de uma mesma conjuntura. A abolição da escravidão (1888) e o golpe republicano (1889) são ápices de mudanças em curso, com efeitos sobre as formas de sociabilidades urbanas. A transformação das instituições imperiais em republicanas preservou os princípios liberais, porém sem uma efetiva republicanização das cidades. Trata-se de uma transição, captada por Lima Barreto e Machado de Assis, na qual o passado imperial remetia a um horizonte recente, em que as instituições liberais coexistiram com a escravidão. As expectativas futuras também não eram animadoras para aqueles que demandavam mudanças estruturais. Assim, experiência e expectativa aumentavam a ansiedade acerca da inserção do Brasil na modernidade.

    A cidade do Rio de Janeiro libertava-se de alguns costumes, práticas e cenários considerados como resquícios rurais, mas, em acordo com os padrões europeus (que, de certa forma, eram um referencial), continuava provinciana. Nos termos da época, o Rio civilizava-se com a abertura de bairros, enquanto os transportes coletivos interconectavam regiões e intensificavam a circulação de pessoas. No entanto era a modernização da infraestrutura que viabilizava a intensificação da especulação imobiliária, aumentando, assim, os processos de exclusão.

    Os cronistas da vida carioca aceitavam essa capital como a vivência mais próxima de um ethos considerado moderno. Na relação campo versus cidade, o Rio representava o polo administrativo, comercial e portuário, possuía infraestrutura e industrialização compatíveis com mercado de trabalho diversificado. Além dos trabalhadores urbanos, havia uma série de atividades intermediárias como as profissões liberais. Em suma, conforme se detalhará páginas à frente, ao Rio de Janeiro pode ser aplicada a categoria de cidade-capital, isto é, sede da vida cívica e urbana.

    Os contos e os romances foram tomados como conjuntos de micronarrativas da vida urbana. O método escolhido foi a análise pormenorizada de cada texto. Inicialmente foram selecionadas as seguintes coletâneas de Machado de Assis: Várias histórias, cuja primeira edição é de 1896 e traz três contos importantes para a pesquisa, A cartomante, Uns braços e A causa secreta; Páginas recolhidas, primeira edição em 1899, conto Missa do galo, importante para a construção do argumento defendido sobre a indeterminação da vida moderna. O romance de Machado de Assis analisado foi Esaú e Jacó (1904), empregado na construção do argumento sobre a capitalidade⁶.

    Os contos analisados de Lima Barreto foram retirados da coletânea organizada pela Lilia Moritz Schwarcz (2010) e, até o momento, é o mais completo arrolamento dos textos curtos do autor⁷. Originalmente foram publicados na primeira edição do livro Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915) e História e Sonhos (1920). Os contos destacados foram A nova Califórnia, O homem que sabia javanês, O filho de Gabriela, Cló, O feiticeiro e o deputado. O romance analisado é Triste fim de Policarpo Quaresma⁸.

    Os dois romances foram selecionados em virtude da proximidade do tempo das narrativas. Eles assinalam os mesmos eventos históricos que marcaram a transição do império para a república. Além disso, abordam as transformações políticas e culturais da capital fluminense. Os contos foram selecionados por tratarem de temáticas propriamente urbanas nos ambientes públicos e privados. Além disso, os personagens dessas narrativas encontram-se imersos na vida cotidiana, utilizando repertórios para desvelar impasses constituidores das tramas. Nos textos elencados, a cidade do Rio de Janeiro aparece como um local amplo – tanto em termos espaciais quanto sociais – e repleto de possibilidades. Em certa medida, constituem-se fragmentos preciosos do rol de temáticas existentes nas narrativas machadianas e barretianas.

    QUADRO 1 Fontes de pesquisa utilizadas

    Fonte: o autor

    As coletâneas de contos reúnem publicações de diferentes períodos, no entanto a justaposição dos textos atribui sentidos externos aos propostos originalmente. No que concerne às representações, é possível contornar essas dificuldades para enfatizar um aspecto fundamental: as imagens mentais acionadas pelas representações inscritas nos textos literários. Assim, por exemplo, foram identificados como componentes recorrentes: sociabilidade do liberalismo, espírito finissecular e mundanismo da Belle Époque.

    De um modo geral, os contos parecem explorar o cotidiano urbano. Por isso foram escolhidas narrativas com temas similares, agrupadas em conjuntos para constituir unidades de significados, isto é, buscou-se a repetição de imagens da cidade nos dois autores. Já os romances dimensionam a especificidade da cidade-capital e problematizam o Rio de Janeiro como centro do poder político. Ambas as tipologias de fontes (contos e romances⁹) possibilitam explorar os entendimentos dos autores acerca dos desdobramentos da modernidade no país.

    Reconstruir narrativas de Lima Barreto e Machado de Assis por intermédio da perspectiva sociológica implica uma série de questões, tais como a relação entre sociologia e literatura, a pertinência das categorias de representação e a problemática da cidade-capital. As ciências sociais contemporâneas viabilizaram uma multiplicidade de objetos e uma variedade de fontes de pesquisas, ampliando o leque de possibilidades para os pesquisadores. A discussão sobre as relações entre literatura e sociologia já estão qualificadas na efetividade da perspectiva sociológica sobre a arte. A literatura dispõe de suas especificidades, contudo, em termos gnosiológicos, tal objeto é passível de ser submetido ao escrutínio da pesquisa social, uma vez que se trata de uma objetivação das relações sociais e de uma forma de compreensão e codificação do real.

    O texto literário pode ser tomado como um registro acerca das apreensões de grupos em determinada conjuntura sócio-histórica (ANDRADE, 2004). Portanto a obra de arte não é compreendida como autônoma e desvencilhada das relações sociais; o produtor de arte também não é um indivíduo descolado do tecido social. Além disso, a literatura não reflete a realidade; pelo contrário, toda manifestação artística faz parte de um processo de construção das inteligibilidades acerca do real. Portanto o conceito de representação – tal como as categorias de imagens e imaginários – pressupõe que a nomeação do real é processo de construção dele, ou seja, os discursos sobre a sociedade engendram efeitos sociais.

    O trabalho de Luciana Teixeira de Andrade (2004) foi uma lição bem ensinada de análise sociológica das representações literárias da cidade moderna¹⁰. Nesse mesmo caminho, há os estudos de Sandra Jatahy Pesavento (1995; 2002; 2004). Tais autoras trabalham com a noção de representação, referencial teórico utilizado neste trabalho, a partir de Pierre Boudieu (1989; 1996) e Roger Chartier (2009). Em tal perspectiva, a literatura é um fenômeno de escrituração por meio de cânones e regras, o que não é o mesmo que esperar do texto literário uma descrição realista de qualquer fenômeno. A ficção não é um espelhamento, mas uma tradução e uma equivalência sempre imperfeita. Portanto a historicidade das representações impõe a perscrutação dos imaginários operantes em cada época.

    Por fim, no que se refere às interpretações acerca dos textos de Machado de Assis e Lima Barreto, as referências são Raymundo Faoro (1974), Roberto Schwarz (2000a; 2000b), Alfredo Bosi (2015), John Gledson (1986; 1991), Sidney Chalhoub (2003), R. J. Oakley (2011) e Beatriz Resende (2016), além da já citada Sandra Jatahy Pesavento.

    O primeiro capítulo aborda algumas dessas questões teóricas, apresentando fundamentos para a categoria de representação. Algumas ponderações de Pierre Bourdieu e Roger Chartier foram sistematizadas, no entanto a discussão sobre imaginário e representação é muito vasta e transcende esses autores. Trata-se de temática e de instrumental que não se restringem a um campo de estudo específico, superando delimitações disciplinares. De qualquer forma, o objetivo do capítulo foi discorrer sobre imagens do urbano na literatura e a relação com a experiência da modernidade. Foram destacados conteúdos específicos dessas representações, como as alusões às sensibilidades modernas cultivadas na metrópole, bem como as distinções do tipo campo-cidade. Por fim, foi tematizada a representação da cidade capital.

    O segundo capítulo retoma as representações do Rio de Janeiro como cidade capital, apresentando inicialmente as preocupações de controle da vida urbana. O argumento principal, que se repete ao longo dos outros capítulos, é o emprego da capitalidade fluminense como estratégia de identificação com a Europa. Para isso, são analisadas as representações do Rio de Janeiro nos romances Esaú e Jacó e Triste Fim de Policarpo Quaresma. Considerar a cidade fluminense como sede política, econômica e cultural implica no aprofundamento da experiência moderna. Mas, como procuro assinalar, as contradições e inadequações da condição do Rio estão representadas nos textos de Machado de Assis e Lima Barreto, que desconstroem algumas das imagens predominantes em relação ao contexto da Belle Époque fluminense.

    O terceiro capítulo aprofunda, a partir de contos selecionados, a questão das representações da vida urbana na literatura de Machado de Assis. As dimensões da indeterminação e da aventura são expressões essenciais para abalizar a apreensão do escritor acerca da modernidade brasileira. Os personagens de Machado de Assis empregam cálculos e mensuram riscos no contexto das operações do cotidiano. A cidade do Rio de Janeiro é representada como um ambiente culturalmente instigante, mas ao mesmo tempo repleto de riscos, onde a circulação pelas ruas pode criar eventos e incidentes para transeuntes e passageiros. As distinções entre a província e a capital encontram-se assinaladas, mostrando a indispensabilidade das habilidades mundanas para o sucesso na cidade grande.

    O quarto capítulo destaca, também a partir de contos selecionados, a problematização que Lima Barreto faz da cidade do Rio de Janeiro. Suas críticas insistem na superficialidade do mundanismo fluminense em sua identificação com o bairro de Botafogo. Na verdade, o emprego das categorias estranhamento e estrangeiro assinala o desconforto de Barreto com experiência da modernidade excludente. Sua crítica ao fachadismo o conduz à tematização do subúrbio como a contraposição ao centro da cidade e aos bairros elitizados. Os personagens de Barreto vivenciam situações de estranhamento, sentindo-se isolados no próprio meio social. Assim, a experiência da modernidade se configura como uma força desterritorializante que mina a tradição e os referenciais de localização socioespacial.

    Expostas essas súmulas, compete identificar uma temática que atravessa todo o trabalho. Trata-se da preocupação em compreender a literatura como um registro da vida intelectual brasileira. Devido ao aparecimento tardio da universidade no país, não havia, até então, pesquisa especializada e os planos de estudo e compreensão da sociedade brasileira ocorriam em outros registros, tais como na literatura.

    De acordo com Wolf Lepenies (1996, p. 23), o nascimento da sociologia conflitou com a literatura, havia uma disputa pela descrição mais abalizada da sociedade burguesa. A sociologia se torna uma espécie de terceira cultura, buscando um lugar fora do âmbito das ciências naturais e da literatura.

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