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Implicâncias e Implicações de uma Trabalhadora Social
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Implicâncias e Implicações de uma Trabalhadora Social
E-book394 páginas5 horas

Implicâncias e Implicações de uma Trabalhadora Social

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Sobre este e-book

A experiência vivida como integrante da Equipe de Trabalho Técnico Social (ETTS), responsável pela operacionalização da intervenção realizada pelo Trabalho Social do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) nas favelas do Rio de Janeiro, entre os anos de 2008 a 2012, foi o acontecimento agenciador cujas narrativas de algumas cenas rememoradas pretendem, nesta obra, dar contorno às análises acerca dos discursos da participação social na contemporaneidade. Trabalho de elaboração de uma memória de trabalhadora social convocado pelas implicâncias e incômodos produzidos diante das recusas da população à adesão das instâncias de participação propostas, esta pesquisa refere-se à realização de um trabalho ético, em que o exercício do cuidado de si direciona-se ao cuidado com a atividade, com as práticas que envolvem, por conseguinte, o cuidado com o outro. Sair de um lugar sobreimplicado e produzir multi-implicação, eis o desafio enfrentado na escrita deste livro. Ao compartilhar com o leitor suas memórias e o exercício de análise de suas implicações, a autora visa intervir nas boas intenções que atravessam e constituem historicamente as práticas de muitos trabalhadores sociais, atualizando-se nas práticas contemporâneas. Partindo da afirmação de que a participação social sempre trata de projetos políticos em disputa, a obra busca intervir na naturalização dos sentidos do participar, criando bases de sustentação para a invenção de outros sentidos de participação social e outras formas de ser trabalhador social no presente.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de dez. de 2020
ISBN9786586034004
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    Implicâncias e Implicações de uma Trabalhadora Social - Raphaella Fagundes Daros

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO PSI

    Aos trabalhadores técnicos sociais da Equipe Técnica do Trabalho Social do PAC Favelas-RJ, presentes pares em meu caminho, e aos moradores das favelas do Alemão, Manguinhos e Rocinha, participantes cujas recusas me fizeram caminhar.

    AGRADECIMENTOS

    A potência dos encontros alegres e a tessitura de muitas redes quentes tornaram possível a realização desta obra, cuja polifonia reconheço com imensa gratidão e prazer.

    A Rafael da Silveira Gomes, amigo querido e aliado desde há muito, agradeço o encontro feito de um amor à primeira vista com Katia Aguiar, professora orientadora de meu doutorado, que desde os primeiros momentos me acolheu com imensa abertura, confiança, generosidade, ternura e incentivo, fazendo-se, no caminho, de amiga para a vida que segue.

    A Katia Aguiar, também agradeço o encontro com o calor de um lugar, habitado por um coletivo de pesquisa que durante os quatro anos de tessitura deste trabalho pude ver se expandir em meio às alianças das trocas e das corajosas apostas em outros modos possíveis de escrever, pesquisar e intervir. Dentre estes, agradeço especialmente a Vanessa Monteiro, Camila Caires e Maria Thereza Feitosa, que puderam acolher com delicadeza minhas primeiras lágrimas e titubeios. Do mesmo modo, faço uma menção especial a Felix Berzins, Gabriel Alvarenga, Vanessa Fonseca, Danielle Miranda e Luiza Reis, pares que acolheram minhas gargalhadas e muitas vezes se fizeram meus olhos e minhas mãos, tornando-se alegre bando para a vida que segue.

    A esse coletivo de pesquisa agradeço a escuta sempre atenta e cuidadosa das narrativas e memórias dos afetos produzidos em outro coletivo, a Equipe Técnica do Trabalho Social do PAC-RJ. Rede quente que me acolheu no Rio de Janeiro, fazendo-me reconhecer nessa cidade meu chão de trabalhadora social. Coletivo de bordas borradas, feito de um tanto de idealismo, um tanto de coragem e um sem fim de cumplicidade, mantida com o carinho daqueles que se reconhecem atemporalmente como pares. Dentre todos, agradeço com imenso carinho, admiração e saudade a Antônio Parente (in memoriam), pela confiança e pelas portas abertas que me levaram a trilhar o desafiante caminho das políticas públicas.

    A esses pares de trabalho, feito amigos, agradeço a partilha nos encontros com os moradores da Rocinha, do Alemão e de Manguinhos, os quais pelo cotidiano exercício da presença e da ausência, das adesões e das recusas, ao longo do projeto do PAC Favelas-RJ, me conduziram pelas ruas e becos de seus vivos territórios, e muitas vezes me acolheram em suas casas, abrindo-me as portas, ao mesmo tempo que me abriam os olhos para os múltiplos sentidos do participar.

    Agradeço as contribuições feitas pela leitura cuidadosa e cordial de uma banca composta por mulheres cujas trajetórias profissionais e aposta ético-política me servem de inspiração para seguir apostando em outras formas de participar da invenção de si e do mundo. Meu muito obrigada à Cecília Coimbra, à Simone Paulon, à Estela Scheinvar e à Francini Guizardi.

    Agradeço também as relevantes leituras e contribuições feitas generosamente por Grasiele Nespoli e Fabiana Castelo, amigas sempre disponíveis à minha necessidade de eco.

    À minha família querida, agradeço o chão feito sob os meus pés por onde quer que eu decida caminhar. Rede afetiva que me encoraja à possibilidade de me arriscar por novos caminhos em busca da potência dos encontros alegres. Meu território vivo, que segue a me lembrar de onde venho e a apontar pra onde sempre posso voltar, mesmo que já sejamos todos outros.

    À minha família capioca e aos queridos amigos dessa cidade que escolhi habitar, agradeço a presença cotidiana, os cuidados infinitos e o amor incondicional que tornaram a vida nesse chão não só possível, como alegremente compartilhada.

    [...] um pensamento – para lhe dar um nome mais altivo do que merece – tinha deixado seu rastro pela corrente. Oscilava, minuto a minuto, para cá e para lá entre os reflexos e as plantas aquáticas, deixando-se mostrar e submergir na água até... Sabe aquele puxão, e então, um amontoado de ideias na ponta da linha, e depois o recolher cauteloso e a exposição cuidadosa? Por fim, assentado na grama, tão pequeno e insignificante parecia esse meu pensamento; o tipo de peixe que um bom pescador devolveria à água para que engordasse e um dia fosse digno de ser cozido e comido. Não vou incomodá-las com esse pensamento agora, embora, se prestarem atenção, vão conseguir encontra-lo por si mesmas no curso do que estou prestes a dizer.

    (Virgínia Woolf, 2014, p.14)

    APRESENTAÇÃO

    Temos em mãos uma obra de coragem. Não uma obra que fala dos outros nem uma obra em que o autor fala de si ou de uma aventura épica. Implicâncias e implicações de uma trabalhadora social levam-nos por um raro caminhar no ato em que está se fazendo um desses projetos que carregam talvez o sonho mais sublime dos modos capitalistas de vida: o da casa própria. E um projeto que não é dedicado a realizar um sonho a mais, pois estamos ante o sonho dos pobres: daqueles que são insubstituíveis, no Brasil, para manter a desigualdade e o racismo – peças fundamentais para que a riqueza não mude de mãos e, sobretudo, de cor.

    Em uma das imperdíveis anedotas-análises de Raphaella Daros, ela faz-nos viver a cena:

    Ainda enquanto estávamos recepcionando as pessoas, organizando as listas de presenças, checando a entrega de documentos pendentes – novas burocracias invadindo os espaços das informalidades – se inicia um burburinho em torno de uma senhora recém-chegada ao auditório. Pressão alta, falta de ar, iminência de desmaio. Corre para chamar uma ambulância!, Traz um copo de água!, Afasta! Deixa ela respirar! E no espaço de respiro, na espera da ambulância, o desabafo: "Sabe o que é minha filha? Fiquei um pouco emocionada... Você imagina que eu morava em um barraco de lona ali no canal do Mandela, e nunca imaginei na minha vida que um dia eu iria morar num apartamento desses... (p. 218-219)

    As emoções são muitas... e misturadas. Não se trata de uma ação de sucesso, mas de pensar como se aborda a pobreza, ainda que com as melhores intenções e com recursos materiais garantidos.

    Este livro entusiasma. Fruto de um doutoramento em Psicologia realizado na UFF sob a orientação de quem tem acompanhado a história dos movimentos dos que teimam em transformar as suas vidas desde a década de 1970, a professora Katia Aguiar, ele é um desses estudos em geral feito anos após a experiência, porque tais vivências costumam ser asfixiantes, dada a sobrecarga de rotinas, próprias do modo assoberbado com que vemos acontecer os projetos destinados aos que não são chamados a construí-los, e sim a agradecer por eles.

    Ao lado da felicidade de quem pode morrer ao tocar com a mão um sonho que até então vivia na resignada dimensão do inalcançável, a clareza da apresentação do modo de construir os mecanismos de controle e de fazê-los funcionar, com seus efeitos de aplacar revoltas, mistura-se à potência de vida possível que explode nas singularidades, que Raphaella colhe e relata, surpreendendo ao leitor. Estamos ante uma pesquisa que nos pega de surpresa, por não ter sido feita olhando para trás, mas para o chão que se pisa, sem moralismos, sem idealizações. Um texto que nos apresenta a vida de todos que compõem a cena: dos que passam a fazer parte de um serviço público a que poucos têm acesso e daqueles que trabalham não só cumprindo tarefas, mas dando forma aos princípios que conduzem a escolha pelo trabalho social. Não há fatos frios, mas lutas carregadas de compromissos que ajudam a pensar o fazer do trabalhador social, deslocando-se da prática paralisante de julgar e condenar.

    Ler este livro é participar de relações em movimento, atuais, presentes nas práticas profissionais não só dos que estão à frente de uma obra, mas de todo o aparelho governamental, incluídos equipamentos que têm autonomia, tal como a universidade.

    Conceitos-chavões como cidadania, direito e participação são arrancados da condição de palavras de ordem ao subverter verdades assumidas como intransponíveis. Combates, assim chama a autora o movimento produzido por profissionais que convocam a que todos participem, sem prever que tal técnica idealizada durante a sua formação é uma forma de intervir nos modos de existência. Não só daqueles aos que se destinam os projetos, como também nos próprios projetos empacotados para serem entregues – nesse caso, literalmente – a domicílio.

    Uma obra desenhada como uma maneira de narrar que nos faz escutar vozes, ver rostos, sentir medo, ouvir os sorrisos, tocar o suor, sentir as tensões, apostar na esperança, trazendo para o leitor o ansiado cheiro da resistência. O que haveria de mais imperativo nos tempos atuais?

    Estela Scheinvar

    Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Membro da banca de defesa da tese de doutorado de Raphaella Daros

    PREFÁCIO

    Complicar o tempo presente. Que se ouça um povo por vir!

    Uma obra deve fazer jorrar problemas e questões nos

    quais somos tomados, mais do que dar respostas.

    G. Deleuze

    A obra aqui em questão é fruto de longos anos de atuação profissional da autora como psicóloga, pesquisadora, docente ou, simplesmente, como trabalhadora social. Dizemos desta figura e de sua inserção nas redes de saber-poder que é atuante na produção de subjetividades, podendo se estabelecer como perita ou como desarticuladora das políticas de contenção, infantilização e mortificação que se espreitam nas práticas sociais. É com essa segunda linha de força que Raphaella Fagundes Daros se vincula, investindo em um exercício de análise permanente de suas implicações, condição para que a ação política e a analítica se encontrem na intensificação do pensamento e da multiplicação das formas e dos domínios de intervenção. Para a autora, essa é uma escolha ética na vida.

    Recebo com alegria a solicitação de um prefácio, mas longe de seguir a ideia de apresentar o que será dito neste livro que nos chega às mãos, proponho trazer aqui um pouco do que hoje me mobiliza, provocada pelo trabalho de Raphaella. Agradecendo o convite que me levou à releitura de sua tese, recolho efeitos da obra em mim, num tempo de intensas incertezas, profundos abalos de nossas sociabilidades e de exposição dramática da incapacidade e do fracasso de nossas apostas revolucionárias na reversão da miséria do mundo.

    Uma primeira recolha vem da lembrança evocada pela notícia da possibilidade desta publicação e que aqui trago como questão: O que publicar a partir de nossos estudos e pesquisas? Quais os critérios que indicam a prioridade de edição de uma obra? Há algum tempo, escutei de uma editora que para ela não havia interesse por obras datadas, conjunturais, sendo sua prioridade a edição de textos perenes. Produções que, elaborando matrizes conceituais de análise, pudessem servir de referência num tempo longo. Uma decisão na política editorial no mínimo problemática, se considerarmos as condições de construção de resistências nos movimentos da sociedade em nosso presente, nas quais os desafios se multiplicam e se complexificam. Condições de tão profunda transformação que têm sido entendidas nos termos de uma crise civilizatória. Tal abalo profundo, em todas as dimensões da vida, em escala global, indica um momento de necessária e urgente revisão, de avalição dos caminhos que trilhamos até aqui como habitantes do planeta Terra, como latinoamericanas, como brasileiras. Isso envolve observar, reparar nossas práticas, seus efeitos; envolve convocar intercessores de diferentes campos de saberes, das artes, de diversos recantos do mundo, que favoreçam uma perspectiva analítica criadora. Nessa revisão, tem se colocado fortemente a urgência da elaboração de estratégias descoloniais libertárias às formas de opressão e de sujeição atuais. E, talvez, o que mais importa agora seja o como vamos fazer o que precisa ser feito, rompendo suturas imobilizadoras e juntando pontas, efetuando conexões, na montagem de novas fiações condutoras de outras energias, outros afetos, outros modos de dizer. Provocar engates, vitalizar relações como as que se estabelecem entre a universidade e as pessoas que fazem suas vidas, se movimentam, sofrem, se encontram, brigam, fazem festa: habitantes dos lugares. Pessoas com as quais trabalhamos e convivemos. Parece então indiscutível a importância do acesso a textos que registrem e problematizem esses encontros para que se afirme a polifonia, a pluralidade de modos de fazer pesquisa, de trabalhar com as pessoas e coletivos nas periferias, nos equipamentos públicos, nas ruas. A obra que Raphaella nos oferece é uma valiosa contribuição a essa elaboração, contribuição para a formação de trabalhadoras sociais e pesquisadoras. Na coragem do exercício da dúvida, a autora coloca em análise de implicação todo um percurso profissional, extraindo dele elementos para uma analítica do presente.

    Uma segunda recolha das afetações provocadas pelo encontro com a obra é que parece pertinente que nos debates sobre as condições de vida e das lutas, possamos considerar a micropolítica das relações - a maneira como sentimos e pensamos e agimos – como fonte de interpelação e invenção macropolítica. E aqui, cabe duvidar do Estado como recurso suficiente e necessário à construção de estratégias de luta, de sociabilidades e de cenários futuros; cabe rechaçar a democracia em suas versões perversas, investidas dos valores de um capitalismo financeirizado extrativista, reduzidas ao direito do voto, cúmplices da militarização necropolítica. Também cabe se interessar e demorar nas experiências em curso nem sempre visíveis, mas existentes, que afirmam outros modos de estar junto. Cabe escutar, calar, se manter firme num tempo de desentendimento e de dissenso; no desconserto, procurar recursos individuais e coletivos para viver a incerteza. Nas entranhas de um capitalismo predador, o Estado tem agido, através das mídias, na propagação de descrédito dos movimentos insurgentes e, através de seu braço policial, no extermínio de povos originários e de setores populares-periféricos. Portanto, importa identificar e reconhecer disputas e protagonismos, em suas diferentes temporalidades, já que as urgências geradas nas condições precárias tendem a favorecer o imediatismo nas ações, na maior parte das vezes não resolutivas, alimentadoras de circuitos de clientelismo político e de tutelas. Sustentar as relações nas condições paradoxais do presente, rechaçando julgamentos e indiferenças e, ao mesmo tempo, criando um ritmo de tessitura nas experimentações, nos movimentos que inventam e animam um povo, o nosso povo, é um enorme desafio cotejado nas problematizações traçadas na obra de Raphaella.

    Uma terceira recolha mobiliza questões encharcadas com as ondas de manifestos que varrem os continentes, atravessam fronteiras, escalam montanhas nas últimas décadas e que se intensificam, nos últimos meses, na América Latina. O campo problemático que se desenha no texto envolve políticas públicas, trabalhadores sociais e moradores de favelas da cidade do Rio de Janeiro. Um campo denso, complexo, que convoca saberes diversos para pensar a capilarização das estratégias de controle, os jogos de interesses e de necessidades, o encargo social de trabalhadores, tensões e disputas nas forças de transformação das condições de vida. Os caminhos de investigação e de análise traçados pela autora desmontam idealizações e desautorizam qualquer solução universal, implicando o leitor numa perspectiva que quer contemplar a singularidade dos territórios habitados, das coletividades e das pessoas como territórios existenciais. Essa atenção à qualidade das relações, aos processos de autonomia, que podem escapar ao Estado e não responder às institucionalidades patriarcais, se encontra em tensionamento, por vezes extremo, com a criminalização e a militarização nos territórios. É nessa ambiência que a participação social e a empregabilidade, vetores da governamentalização capitalística neoliberal, são aqui privilegiados, nos deixando entrever nas ambiguidades e nas brechas das políticas de ajuste a gravidade do que está se processando entre nós. Se já não cabe acreditar na forma-Estado e sua ocupação como caminho para emancipação, tampouco podemos crer na busca de uma cidadania onde milhões de pessoas nem mesmo podem existir. No esgotamento de modelos, de códigos e referências que nortearam a política e o sistema econômico do capital, moram muitos perigos. Nele se arranjam a descrença, a revolta, a desobediência como potências de insubordinação que movimentam um povo, e também as violências, a repressão abusiva, os extermínios por parte dos poderes que disputam e zelam pelas expropriações de nossos bens comuns. Impossível seguir na leitura sem abrir tantas outras questões ao tempo presente. Num contexto tensionado que ganha escala como crise civilizatória, impossível não pensar que resistir é criar, criar outras formas de vida. No contexto de uma crise civilizatória, que proliferem as encruzilhadas, os desvios, os devires. Que se ouça um povo por vir!

    Katia Aguiar

    Lima, dezembro de 2019

    Sumário

    INTRODUÇÃO 19

    UM MAPA 27

    : A ética como prática de liberdade e as estratégias contemporâneas de recusa :

    27

    : Os discursos da participação social – entre a convocação e as recusas, a emergência de um campo problemático :

    40

    : A experiência como reinvenção de si e a escrita como coragem da verdade :

    45

    PRIMEIRA ENTRADA 59

    : Modulações da participação social – de ideal político a campo problemático :

    59

    : A participação social nos governos Lula e Dilma e as jornadas de 2013 – modulações entre a solidariedade e o vandalismo :

    74

    SEGUNDA ENTRADA 97

    : Os discursos da empregabilidade – a convocação à participação social e o empreendedorismo de si :

    97

    : A produção maquínica do desejo e a invenção do homo economicus – você tem sede de quê? Você tem fome de quê? :

    106

    : A produção das vulnerabilidades e do medo – da gestão das liberdades à gestão dos riscos :

    112

    : A participação social pela via do biopoder – o protagonismo cidadão e o apelo a uma convivência solidária no estilo faça a sua parte :

    121

    TERCEIRA ENTRADA 129

    : O encontro com o território – a formação de um corpo-trabalhadora- técnica- social nos agenciamentos com a favela, com a equipe técnica, com o Estado :

    129

    QUARTA ENTRADA 153

    : O encontro com o corpo-equipe – cenário da tessitura da sobreimplicação :

    153

    : Os trabalhadores sociais e o exercício ético-político – estrategistas entre a (re)invenção de si e a transversalidade das lutas :

    168

    QUINTA ENTRADA 181

    : A problematização da participação social entre o projeto, os consentimentos, as adesões, a cooperação e a recusa – os mitos, as dificuldades e outros possíveis :

    181

    : A participação social e seus mitos :

    187

    : A participação social e as suas limitações – a crise e a disputa de representatividade :

    191

    :A favela tem seus códigos – a participação social e a especificidade da dinâmica político-econômica dos territórios :

    196

    : O tempo urge, as atividades se sobrepõem, a participação social vira atividade de trabalho, de técnicos sociais e moradores :

    201

    : A participação social e os constrangimentos institucionais – questões da divisão social do trabalho e o exercício de autonomia dos técnicos sociais :

    205

    : A demanda de participação social e as demandas sociais não atendidas – brechas para o exercício da recusa e a reafirmação da tutela :

    208

    : A participação social entre alguns (im)possíveis e a sobreimplicação dos técnicos sociais :

    211

    UMA SAÍDA 217

    : Despedir-se do absoluto Ou A participação social e outros possíveis - entre a proposta de regulamentação da vida e a vida que escapa :

    217

    REFERÊNCIAS 239

    ÍNDICE REMISSIVO 253

    INTRODUÇÃO

    Memórias de uma trabalhadora social – sobre deslocamentos e pensamentos, das implicâncias às implicações em análise

    Esta obra quer compartilhar os incômodos, as implicâncias, assim como deslocamentos e pensamentos em torno da temática da participação social, a qual se constituiu como campo problemático a partir da minha inserção na Equipe Técnica de Trabalho Social (ETTS) do PAC-Favelas do Rio de Janeiro, entre os anos de 2008 a 2012. Chamo aqui de implicâncias os incômodos quando ainda amorfos, sem corpo e sem lugar, ainda não tinham se tornado implicações a serem colocadas em análise.

    Tecer as memórias de um percurso de trabalhadora social é o que proponho na produção deste trabalho. Memórias que ao serem aqui compartilhadas pretendem contribuir para a elaboração e partilha de algumas questões e, por conseguinte, para a problematização de algumas intersecções que ganham visibilidade em meio às modulações das práticas discursivas que convocam a participação social, com destaque para o campo das políticas públicas e dos discursos da empregabilidade. Memórias produzidas pelo ensaio de uma escrita parresiasta, feita chão em que se articulam os comuns encontrados nos trajetos por entre as práticas da clínica, da docência, da pesquisa e das atividades de trabalhadora-técnica-social, constituindo assim um corpo-trabalhadora-social. Memórias cuja publicização tem como propósito intervir nas boas intenções que movem muitos dos trabalhadores técnicos sociais, meus pares nas tentativas, por vezes, tão idealizadas quanto ingênuas, de serem os agentes das transformações, ignorando que essas acontecerão a despeito das nossas intenções.

    Diante da falta de contorno preciso – já que os sentidos da participação social não estão necessariamente dados –, e da controvérsia da temática – apresentada pelas várias formas, usos e utilizações do verbo participar –, não pretendo aqui encontrar a verdade sobre os mecanismos e discursos da participação social, mas investir em uma perspectiva de análise de suas práticas e da relação que estabelecem com a verdade. Por isso, limito-me ao fato de que [...] só se pode mostrar como se chegou a ter a opinião que se tem. Só se pode dar ao público a oportunidade de tirar as próprias conclusões ao observar as limitações, os preconceitos, as idiossincrasias do palestrante. É mais provável que a ficção contenha mais verdade do que o fato. (WOOLF, 2014, p. 12-13).

    O que proponho é compartilhar deslocamentos produzidos em um exercício de análise de implicações, realizado a partir da minha experiência de trabalhadora social, que, ao operar por meio da desnaturalização das práticas discursivas acerca da participação social, faz-me torcer os conceitos, dando visibilidade aos tensionamentos que se presentificam, forçando a abertura do olhar para os processos participativos que se constituem para além das instâncias institucionalizadas. Afinal de contas, como aponta Fuganti (2009, p. 669), um verbo exprime uma ação e ação tem não só um sentido, ela tem um motor! Esse motor qualifica o valor desse sentido. Motor que nos empurra tanto para o questionamento acerca do que nos move quando queremos participar, como para a necessidade de estarmos atentos às modulações que o participar tem sofrido contemporaneamente, quando participar passa a significar gerir liberdades e riscos, e responsabilizar-se.

    A decisão de me deslocar da atividade da docência para habitar o campo da política pública se fez em meio ao desejo de movimento, de ar, e de outros possíveis. O desejo era sair de um lugar marcado pela impotência, e pelo cansaço que daí advinha. Escapar de lugares onde os possíveis eram cada vez mais rarefeitos entre os discursos acadêmicos e a lógica clientelista que dominava as instituições de ensino superior. Era a possibilidade do desvio que me fazia mudar de lugar. Eu queria poder pegar o mundo com as mãos.

    Deslocamento iniciado, a operacionalização de conceitos no território das favelas e das políticas públicas se mostrou uma árdua tarefa na execução do trabalho técnico social. E a realização do caminho inverso, de trazer para o espaço acadêmico toda a concretude da experiência vivida, tampouco deu-se sem conflitos e dificuldades. Reocupando o lugar de pesquisadora, na academia, atravessava-me a constante impressão de que meu discurso parecia aos pares demasiadamente moderado, carecia da radicalidade exigida como senha de acesso sugerida aos intelectuais militantes. Ocupando o lugar de consultora na Equipe Técnica do Trabalho Social, meu discurso soava aos pares demasiadamente radical, carecia da dose de pragmatismo exigida como senha de acesso à eficiência e à eficácia demandadas pelo programa. Ao deslocar-se, o corpo-trabalhadora-social desterritorializava-se.

    O relato das cenas que compõem o texto que se segue foi produzido em meio a esses deslocamentos. O corpo-trabalhadora-social saía da referida equipe técnica e retornava à academia, tendo como porta de entrada o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Nesse novo lugar, o (re)encontro com alguns intercessores, como Foucault, Lourau, Guattari, entre outros, convidados com cadeira cativa no grupo de orientação coletiva, foi fundamental não só para ressignificar os meandros da participação social e suas modulações no contemporâneo, como para produzir outros territórios existenciais, outros possíveis, e outro corpo-trabalhadora-social.

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