Cidades E Destinos
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Cidades E Destinos - Bertha Solares
BERTHA SOLARES
CIDADES
E
DESTINOS
1
As histórias deste livro foram escritas na
cidade de São Paulo entre os anos 2001 e
2007. Surgiram separadas, mas acabaram
ficando juntas e dando origem a esse livro.
Agradeço a Leila Maria Linhares que teve a
paciência de fazer a revisão e corrigir os
erros de gramática.
2
Para todas as mulheres que amam
mulheres.
3
VENEZA: PONTO DE PARTIDA.
As cidades são como as pessoas,
possuem
suas
próprias
personalidades.
Algumas se revelam ao primeiro olhar
enquanto outras se escondem. Veneza
precisa ser descoberta. Envolvidas por
histórias de amor, as pessoas viajam para lá
há séculos tentando vivenciar um romance.
Dessa forma é muito difícil saber se La
Sereníssima é romântica mesmo ou se é a
idéia que se faz dela é que a transformou no
berço de aventuras amorosas. Os provençais
do século XII que inventaram o amor
romântico, não poderiam supor que uma
cidade italiana personificasse a essência
única desse tipo de amor. Até Casanova se
arriscou em aventuras por seus canais.
Verdade ou mentira?
O fato é que existem histórias que acontecem
nessa milenar cidade do Leão e dos Doges,
que não poderiam ter acontecido em outro
lugar. Eu fazia parte do time dos céticos e não
4
acreditava
nessas
bobagens
como
romantismo, linhas da mão, escrito nas
estrelas ou destino. Como uma profissional da
notícia aprendi a escrever o que vejo e não o
que imagino.
Acabei indo para Veneza a trabalho. Um
amigo jornalista contatou-me para fazer um
free-lance durante o carnaval. Willhem esteve
comigo na cobertura da guerra na Bósnia. Ele
é um holandês alto, loiro e magro. Um amor
de pessoa e um profissional de primeira. Nós
dois não somos muito chegados aos nossos
sexos opostos, nos entendemos muito bem e
ficamos amigos.
O
trabalho
era
para
uma
produtora
independente de Bruxelas. Eles queriam
material
para
um
filme
com
temática
homoerótica que se passaria em Veneza
durante o Carnevale. Precisavam de uma
jornalista que fosse até lá e recolhesse
algumas histórias vividas por lésbicas. Tinham
contratado o Willhem para fazer o mesmo com
os gays, só que a cidade escolhida para ele
tinha sido Paris.
Minha primeira reação foi recusar a proposta.
Eu estava começando a escrever um livro-
reportagem sobre as conseqüências das
guerras na vida das crianças. Recolhi todo o
material
disponível
sobre
os
conflitos
contemporâneos. Tinha horas e horas de
entrevistas com especialistas no assunto:
5
psicólogos,
sociólogos,
historiadores
e
educadores. Não pretendia sair de Lisboa. Eu
estava hospedada na casa de umas amigas
portuguesas que conheci na época da guerra
em Angola. Aldina e Olga eram mulheres
generosas e tinham me oferecido um quarto
confortável que ficava no sótão da casa. Lá eu
tinha espaço, privacidade e tranqüilidade para
escrever meu livro.
Willhem insistiu dizendo que eu era a pessoa
perfeita para fazer o trabalho e me convenceu
quando falou o valor que eles me pagariam
pelo material . Era dinheiro suficiente para eu
passar mais uns seis meses na Europa. Tudo
isso junto , mais o bichinho da aventura me
mordendo, acabei aceitando e parti com
destino à Veneza dois dias antes de começar
o Carnaval.
Quando cheguei tive dificuldade para achar
um hotel. Descobri que Veneza é uma cidade
cara, perfeita para se passar um dia, passear
por suas ruas, navegar por seus canais e à
noite ir embora. Para quem tem a ousadia de
querer usufruir um pouco mais de suas
belezas é bom saber que desembolsará muito
dinheiro. Fiz assim minha primeira descoberta.
Essa cidade não é para todos. A maioria dos
hotéis estava lotada por causa do carnaval.
Depois de andar por horas carregando uma
bagagem de mão, um Laptop e uma pequena
mochila nas costas, tive a impressão de estar
rodando como uma barata tonta. Resolvi parar
6
na Central de Informação Turística – CIT, da
Stazione Venezia-Santa Lucia. Uma moça
gentil e interessante prontamente me atendeu
e sugeriu que eu me hospedasse em um hotel
que ficava há algumas quadras da estação.
Segui todas as indicações dadas por ela, mas
não encontrei a tal travessa. Em Veneza
achar uma placa com o nome da rua é tarefa
para um detetive. Acredito que até Sherlock
encontrasse dificuldade. Parei para descansar
e por sorte reparei que estava ao lado do
endereço que procurava. Resolvi arriscar e
entrar naquela pequena rua que mais parecia
um beco. Para minha surpresa o beco se
transformou uns oito metros à frente, numa
rua larga e bem simpática.
Consegui um quarto no Albergo Dolomiti,
pequeno e sem chuveiro, mas limpo e
agradável. Até hoje, mesmo morando há anos
na Europa, ainda não me acostumei com a
falta de banheiros nos quartos dos hotéis.
Minha mãe tinha verdadeira obsessão por
banhos. Quando eu era criança e brincava na
rua, era só chegar em casa que ela me
mandava tomar banho. Viciei. Hoje em dia me
limito a tomar apenas dois, um ao acordar e
outro antes de dormir. De qualquer forma
mesmo tendo que descer ao banheiro no
segundo andar, eu me hospedei no hotel.
Era bem localizado e o melhor de tudo, tinha
um preço razoável.
7
Fazia muito frio em Veneza e o rapaz da
portaria comentou que podia nevar nas
próximas horas. Eu não acreditei, mas quando
acordei no dia seguinte e olhei pela janela , o
dia estava totalmente fechado e nevava muito.
Como andar debaixo de neve era uma coisa
que estava longe dos meus planos, tomei café
no hotel e resolvi trabalhar um pouco no meu
livro reportagem. Passei a manhã inteira
digitando anotações até meu estômago avisar
que teria que sair de qualquer jeito.
Antes de andar sem rumo pedi informações
no hotel sobre onde almoçar nas cercanias. O
recepcionista me indicou um restaurante
chinês na mesma rua. Pela cara que eu fiz ele
percebeu que não era aquele o tipo de comida
que eu procurava. Por isso esclareceu que o
dono era chinês, mas a comida italiana.
Resolvi arriscar esse non-sense. Realmente
de chinês mesmo o lugar só tinha o nome e os
donos que estavam no balcão.
Estava comendo um excelente Spaguetti alle
vongole quando o celular tocou. Era o Willhem
querendo saber se as coisas estavam
correndo bem e se eu já tinha conseguido
alguma entrevista. Respondi que já havia me
instalado, mas que estava nevando muito e
que eu não tinha a menor idéia de como nem
por onde começar. Ele disse que eu era
criativa e que encontraria uma saída. Lembrou
que tínhamos um prazo e mandando um beijo,
desligou.
8
Durante o almoço pensava que tinha me
metido numa fria, mais gelada que aquela
neve toda que caia na rua . Não sabia ainda o
que fazer para conseguir que as turistas que
estavam em Veneza se dispusessem a contar
suas histórias de amor.
Voltei para o hotel na Calle Priuli no
Cannaregio, sentei em frente ao laptop e
comecei
a
responder
e-mails.
Depois
naveguei aleatoriamente tentando encontrar
uma forma de como convencer algumas
mulheres a revelar suas intimidades e falar
dos seus amores. A tecnologia é maravilhosa,
mas as máquinas não pensam e por mais que
eu tentasse o computador não encontrava
uma solução para as minhas dúvidas.
Chateada, larguei tudo e fui para debaixo das
cobertas. Sem sono comecei a passar a
limpo a minha vida e não gostei do que
constatei. Fui contratada para escrever
histórias de amor baseadas em relatos reais,
mas o que eu mesma entendia de amor?
Amor, amor de verdade eu nunca tinha
sentido. Na minha profissão é difícil se
envolver. Ninguém quer viver com uma
correspondente internacional que de uma
hora para outra pode ser mandada para
qualquer lugar do mundo .Sempre acreditei
que esse negócio de amor era uma grande
bobagem. Foi inventado na Idade Média pelos
homens que na realidade queriam apenas
transar com as mulheres sem casar.
9
Inventaram técnicas, palavras, frases e
expressões, tudo isso para convencer as
donzelas e as senhoras casadas a se
entregarem ao amor sexual. Tudo em nome
do amor. Sexo em troca do amor.
Para falar a verdade, eu não tinha uma
posição clara sobre esse assunto. Lembrava
que existia outro lado que deveria ser
analisado. Quando estive no Egito por ocasião
da assinatura de um acordo que parecia ser
definitivo, entre árabes e judeus, tive a
oportunidade de visitar o museu do Cairo. Lá
eu vi inscrições em hieróglifos datadas do
século XII a.C. e muitas delas eram poemas
de amor. Na Grécia antiga Safo escrevia
poemas para suas amadas. Fico sem saber o
que concluir. Por esses dados deveríamos
dizer que o Amor sempre existiu na vida dos
Homens.
Enrolada no edredom levantei e fui até a
janela olhar o tempo . Continuava nevando.
Afinal, o que eu tinha a ver com tudo aquilo?
Além de não entender de amor estava agora
num beco sem saída. Não sabia que caminho
seguir e não podia retornar. A neve caindo
devagarzinho branqueava a rua e os telhados.
Eu olhava aquela cena bucólica quando decidi
agir. Com lápis e papel na mão, sentei na
cama e anotei item por item do que precisava
fazer.
10
Primeiro: bolar um meio de encontrar
mulheres dispostas a contar sua história.
Mesmo porque não podia sair na rua de
gravador em punho, parar qualquer uma e
simplesmente perguntar: você tem uma
história de amor lesbiano interessante para
contar? Seria maluquice. Tinha mais um
detalhe, as histórias deveriam ter sido vividas
por turistas que se encontravam em Veneza
para o Carnaval. Agulha no palheiro.
Segundo:
como
encontrar
agulha
no
palheiro? Separando a palha da agulha. Indo
a lugares freqüentados por homossexuais.
Onde encontrar esses lugares? Internet. Mas
nem todas as lésbicas freqüentam lugares
exclusivos. Então tive uma idéia maluca.
Decidi afixar cartazes nos lugares mais
freqüentados por turistas e pedir que as
mulheres que tivessem histórias de amor
interessantes, me procurassem.
No dia seguinte fiz o cartaz. O texto precisava
ser chamativo e instigante. Tudo pronto me
informei com o recepcionista do hotel e ele
indicou uma loja perto da Piazza San Marco
onde poderia tirar cópias. Foi nesse dia que
comecei a aventura por Veneza. Pelos
mistérios de Veneza.
Enquanto
andava
pelas
ruas
geladas,
observava a movimentação dos turistas.
Ninguém parecia se importar com o frio ou
com a neve, pois era carnaval e todos
11
estavam contentes. Alguns atores contratados
pelas lojas que vendiam e fabricavam
máscaras, passeavam fantasiados pelos
lugares mais freqüentados expondo-as. Um
espetáculo bonito de se ver. Achei a loja com
dificuldade e mandei fazer as cópias .
Comprei um grande pote de cola branca, um
pincel e saí para colocar a segunda parte da
minha idéia em prática. Comecei colando os
cartazes nos postes, mesmo não sabendo se
havia alguma lei que proibisse tal prática,
arrisquei. Com a lista dos principais pontos
turísticos na mão, lembrei que o melhor local
para afixar um cartaz seria o Centro de
Informação Turística (CIT) perto da estação.
Aquele, onde pedi informação quando cheguei
na cidade.
No CIT tinha um quadro de avisos com vários
recados e bilhetes escritos em diversas as
línguas. Escolhi um lugar menos poluído
visualmente e colei o meu cartaz escrito em
três línguas: inglês, italiano e espanhol. Uma
das funcionárias reparou no que eu fazia e se
aproximou para ler:
"Equipe de cinema belga procura para
roteiro histórias de amor lesbianas. Se
você, turista, viveu uma bela história
conte para nós! As interessadas podem
entrar em contato por e-mail ou pelo
telefone abaixo. Entre no romantismo
12
do Carnevale Venezia
, tire
sua ‘maschere’! Reparta com o
mundo suas emoções!"
Terminada a leitura, a funcionária que tinha
me atendido no dia em que cheguei me olhou
de um jeito malicioso e convidativo. Como eu
estava
compenetrada
na
atividade
de
afixadora de cartazes não dei bola e saí rumo
ao trabalho.
Aprendi a andar pela cidade e no fim do dia já
estava familiarizada com os labirínticos
caminhos de Veneza. Essa cidade nasceu
numa laguna formada por pequenas porções
de terra que ao longo dos séculos foram se
ligando através da construção de inúmeras
pontes. Veneza não foi construída para
pedestres e sim para a navegação. Os canais
é que são as ruas. O principal é o Grande
Canal que serpenteia a cidade como um S.
Existem
incontáveis
canais
pequenos
percorridos por barcos de todas as espécies e
tamanhos e o meio de locomoção popular é o
vaporetto.
No final da tarde tinha afixado e distribuído o
lote de 500 panfletos. Cheguei ao hotel
satisfeita com o resultado, pois estivera em
todos os pontos de maior afluência de turistas,
13
principalmente a região da Ponte Rialto e a
Piazza San Marco.
Passados dois dias achei que minha brilhante
idéia era fantasiosa. Tentava disfarçar a
preocupação de como escrever as histórias
encomendadas. Até então não havia recebido
nenhum e-mail ou telefonema. Estava tão
frustrada com a falta de retorno do cartaz que
resolvi naquela manhã fria de sábado, andar
um pouco. Acabei, como todo mundo,
entrando num Café na Piazza de San Marco.
Enquanto tomava um capuccino eu pensava
que se as coisas continuassem do jeito que
estavam teria que buscar outra solução.
Decidi que o melhor seria entrar em contato
com uma associação de lésbicas italianas e
pedir que me ajudassem. Enquanto pagava a
conta o celular tocou.
Atendi. Uma voz feminina falando um inglês
britânico queria informações sobre o panfleto.
Respondi a todas as perguntas e marquei um
encontro às quinze horas no mesmo Café
onde eu estava. Feliz da vida por ter
conseguido a primeira entrevista, voltei para o
hotel para pegar o gravador e as fitas.
Cheguei ao Café antes do horário e pedi uma
mesa na parte de dentro. Quinze minutos
depois duas senhoras idosas se aproximaram
e uma delas me perguntou em inglês se eu
era a jornalista. Diante da afirmativa elas se
14
sentaram. Quando nos apresentamos fiquei
surpresa ao saber que Teresa era brasileira.
Antes
de
contarem
a
sua