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Jardim Da Juventude
Jardim Da Juventude
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E-book1.189 páginas18 horas

Jardim Da Juventude

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Sobre este e-book

Dante vive com a mãe na velha casa da estrada que leva à pacata comuna francesa de Belleville. A relação com ela não é das mais normais. Para ele, Madeleine é como uma filha que, depois de um grande trauma, passou a agir como uma criança. Ele vive melancolicamente até o dia em que conhece o soldado Vincent, amigo este por quem Dante começa a nutrir uma paixão secreta. Contudo, quando Dante descobre que o soldado é apaixonado por sua nova amiga, Gaia Béatrice, ele recua e decide não contar nada, relatando seus sentimentos por meio de cartas assinadas sob o codinome Persona. Num fatídico dia, o soldado se dá conta de que Dante é o autor das cartas e o rechaça, ignorando até mesmo a grande amizade que havia se estabelecido entre os dois. Submergido num verdadeiro inferno, Dante busca auxílio espiritual no padre da cidade, até descobrir que é herdeiro da fortuna dos Romanelli, uma família de origem italiana que fundou uma verdadeira dinastia multimilionária na Europa. Já inserido na família, ele é apresentado à Sociedade Romanelli, organização secreta comandada com mãos de ferro pelo chefe da família, a quem todos chamam de Dio. Mais de vinte anos se passam até Dante receber uma missão da Sociedade que o obrigará a voltar para Belleville, e reencontrar aquele que um dia foi o grande amor de sua vida: o soldado Vincent, agora casado com Gaia e sob a patente de coronel. Ouvi dizer que os corvos são fiéis por toda a vida aos seus parceiros, perecendo quando seus amores lhes são rejeitados. Diga-me, alguém pode ter o seu amor recusado e não morrer?
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de dez. de 2022
Jardim Da Juventude

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    Jardim Da Juventude - Caligo Beltrão

    PARTE I:

    ~ INOCÊNCIA ~

    (TEMPO PASSADO)

    O tempo presente e o tempo passado

    Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,

    E o tempo futuro contido no tempo passado.

    Se todo o tempo é eternamente presente

    Todo o tempo é irredimível.

    O que podia ter sido é uma abstração

    Permanecendo perpétua possibilidade

    Apenas num mundo de especulação.

    O que podia ter sido e o que foi

    Tendem para um só fim, que é sempre presente.

    Ecoam passos na memória

    Ao longo do corredor que não seguimos

    Em direção à porta que nunca abrimos

    Para o roseiral. As minhas palavras ecoam

    Assim, no teu espírito.

    Mas para quê

    Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa

    Não sei.

    Outros ecos

    Habitam o jardim. Vamos segui-los?

    T.S. Eliot, Burnt Norton

    I

    LIMBO

    Aqueles olhos verdadeiros,

    tão puros e tão honestos em qualquer coisa para disfarçar.

    A doce alma brilhando através deles.

    Owen Meredith

    Fui morar em Belleville por conta da doença de minha mãe que, com o passar do tempo, só parecia se agravar cada vez mais. Ela, Madeleine, havia sido completamente sã um dia. Entretanto, meu pai, Homère, a abandonou para viver com outra mulher. Uma meretriz de nome Katrine que pelo pouco que sabia vinha sugando toda a vitalidade e dinheiro do meu pai. Vejo isso como uma forma de carma a que ele estava destinado. Não só pelo abandono a minha mãe, mas também pelo abandono a mim de forma tão miserável que uso aqui miserável para não me utilizar de palavra pior.

      Minha mãe enlouqueceu. Contudo, não enlouqueceu de maneira violenta. Sequer saiu pelas ruas proferindo besteiras, tampouco perseguindo estranhos para lhes atingir com súbitos socos e pontapés. Mamãe foi consumida pela loucura de maneira silenciosa. Esta loucura – de todo misteriosa – lhe tornou alheia ao mundo e a fez adentrar a uma espécie de voto de silêncio que parecia querer durar por toda uma eternidade.

      Pobre mamãe. Se eu pelo menos pudesse me vingar de meu pai... Mas tudo o que tive em mãos foi apenas o sangue de uma batalha já perdida. Fui atirado junto a ela em direção a uma vil realidade, onde o mundo era tão frio quanto hostil, e seus habitantes, meras sombras impassíveis. Vivendo triste e à base do silêncio dela, fui mandado com sua taciturna pessoa para esta cidadezinha pacata e agraciada pela cor das flores. Belleville é como a genitora das floriculturas afora, fornecendo natureza e formosura para as cidades maiores. Chamam-na de a cidade-jardim. Não por sua função mais reconhecida, e sim pela intensa e suntuosa arborização de suas calçadas, ainda célebre pelas ruas de paralelepípedos e casas de pedra.

      Minha tia Rosalinda foi quem nos enviou para cá depois da morte da vovó Lucinda, fato este que de tão funesto e desgraçado contribuiu para o silêncio mórbido de minha mãe. Como a vida havia ficado mais impossível de ser vivida na cidade grande, tia Rosalinda fez nossas malas e nos permitiu viver na antiga casa de vovó, a fim de que mamãe melhorasse com o ar bucólico deste lugar.

      Tia Rosa – como eu costumava a chamar – vinha a cada início de mês nos deixar um pouco de dinheiro para que pudéssemos sobreviver nesta cidade. Passou pela minha cabeça confusa que eu poderia largar os estudos para trabalhar e então poder finalmente ajudar mamãe, mas tia Rosa fora decisiva em dizer que eu não deveria terminar o que havia começado, e que criança alguma deveria se dar ao trabalho tão cedo.

    – Eu não sou mais uma criança, tia Rosa. – repetia a suspirar e revirar olhos esmorecidamente.

    – Pode não ser a criança de tempos atrás, mas agora é um jovem e a juventude é tão bonita! Não vou permitir que os acontecimentos recentes em nossa família destrocem com a sua juventude.

    – Se a senhora está dizendo... – eu dava de ombros, triste como um mar sem sol.

      Então viemos parar aqui neste lugar multicolorido e um tanto tecnicolor por causa das flores. Mamãe jamais melhorou da forma como se esperava, pelo simples fato de sua infância ter se passado em Belleville. Às vezes achava que a cidade das flores havia contribuído para sua regressão interna, pois se ela havia passado a infância nesta pequena cidade, logo ela voltaria a pensar e agir como a criança que um dia deveras havia sido. Isso só atrapalharia todo o nosso processo de luta pela sua reabilitação já tão penosa.

      Tia Rosa dizia que era uma bobagem a forma como eu pensava. Eu até poderia rezingar, mas não havia muito o que eu poderia fazer ali naquele ponto de minha triste vida. De nossas tristes vidas.

      Eu me sentia tão impotente quanto um pássaro de asas cortadas, vagando a esmo no escuro daquela situação.

      Era o ano de 1996 e eu estava de férias do colégio secundário local. Eu estava colocando mamãe para dormir em sua colcha favorita quando as luzes se apagaram na cidade e a tentativa de fazê-la adormecer foi por água abaixo. Talvez a demanda de flores não estivesse sendo o suficiente para pagar a energia elétrica de todos os pontos da cidade, então era como se eles estivessem alternando de ponto em ponto para não a sobrecarregar.

    – Mamãe, durma. Você precisa.

      Ela sacudiu a cabeça em protesto. A face em expressa negação.

    – Tudo bem. – eu disse, fitando o vazio e depois contemplando a palidez de seu rosto. – Você poderá ficar acordada. Mas só até a energia voltar, entendeu?

      Mamãe assentiu. As rugas surgindo à luz da lua que penetrava o vidro da janela.

    Eu a deixei na sala de estar por um tempo assistindo um episódio de Tom & Jerry na TV à pilha que tia Rosa comprara para casos extremos, enquanto dirigi-me à cozinha a fim de preparar nosso petit déjeuner à luz das poucas velas que dispúnhamos. Cinco croissants e uma geleia de mirtilo para uma vela e meia. E também, alguns ovos e manteiga para um possível brioche talvez.

    Quando já estava tudo devidamente pronto, abandonei o prato de porcelana sobre a madeira da mesa e me dirigi novamente à cozinha para fazer o suco usando alguns pêssegos que eu havia comprado no início da semana. Pêssego não era o melhor sabor de refresco do mundo, mas eu sabia o quanto mamãe tinha certa simpatia por ele.

    Assim que o terminei, voltei para a cozinha. Imagine só minha surpresa ao perceber que os croissants que eu havia disposto sobre o prato haviam desaparecido.

      Olhei para o sofá da sala, mamãe limpava a boca tentando fingir que não fora a autora daquele assalto à mesa.

    – Mamãe, você sabe que desse jeito vai acabar com uma indigestão, não sabe?

      Ela fez que sim, envergonhada. O canto da boca a denunciava com os restos da espuma do refresco.

    – Bem, o importante é que a senhora comeu, não é? – eu disse a ela, tentando não parecer tão rígido. – Eu sou só um detalhe. O importante é sempre a senhora.

    Deixei-a assistindo o desenho enquanto terminava de ler a edição do jornal daquele dia em questão. Vez ou outra a espiava por cima do papel para me certificar de que ela não estivesse fazendo nada de errado, como um pai espiona sua criança para garantir que ela não está brincando com fogo. Ela parecia feliz ali, atenta, assistindo a sua animação predileta. Os olhinhos castanhos que me passou por sua genética preponderante brilhavam ao refletir os dois rivais a se engalfinharem na tela.

    A luz enfim retornou enquanto eu checava a lista de classificados. Abandonei o jornal local sobre a mesinha de centro e lutei contra a força que era levar mamãe para o quarto de dormir. Quando finalmente consegui tal dificultosa proeza, fiquei a observando pela fresta da porta à base do feixe de luz que por ali trespassava, iluminando o seu corpo adulto a descansar por entre os panos.

      Assegurei-me de que a janela estivesse devidamente fechada e então parti dali deixando-a para trás em sua terra de sonhos, coisa esta que eu já nem mais conhecia.

    ***

      Na manhã seguinte, mamãe estava mais melancólica do que de costume. Eu jamais havia compreendido amplamente o seu temperamento. A partir do momento em que ela se tornou ingênua como antes, tornou-se uma incógnita para mim. Inocente, por assim dizer, enquanto eu perpassava cada vez mais pelos campos inóspitos da experiência humana. Mamãe, quando sã, era mesmo um livro aberto. Agora, traída pela própria mente, era um grande cofre de ferro puro.

      Abri os olhos encarando a lâmpada fluorescente e o teto bege descascado e desbotado a que esta pendia. Sem pensar duas vezes, corri para o quarto de mamãe para checar se ela já havia acordado.

      Quase todas as manhãs aquele susto se repetia. Às vezes eu me sentia preso num mesmo dia como num feitiço do tempo. E era como se este determinado dia jamais tivesse um fim apesar de todos os meus esforços. Parecia até empalidecer no crepúsculo e trazer consigo a noite sombria, mas quando a manhã chegava, era como se Deus tivesse pressionado o seu grande replay.

      Observei da porta entreaberta a cama vazia. Fiquei alguns segundos ali pairando sobre o ambiente, não sei dizer com exatidão por quanto tempo. Quando enfim despertei do torpor morfético, saí correndo em direção à porta da frente, descendo as escadas de seu quarto e atravessando a sala como se minha vida dependesse do tempo que eu levaria até abrir aquela porta. E, de certa forma, realmente dependia.

      Procurei a chave no velho suporte acima da caixa de correios que, por sua vez, ficava do lado direito da porta de entrada. Enfiei-a na fechadura e girei a maçaneta o mais rápido possível, desesperado pelas circunstâncias, não deixando de reparar a janela aberta para o mundo entrar.

      Abri a porta violentamente.

      Lá distante, deitada no asfalto, estava o corpo inerte de mamãe a fitar o céu azul acima.

      Corri exasperado até seu corpo estendido sobre o betume, ajoelhando-me sobre ele para puxá-la para cima, tirá-la de suas águas negras e profundas de volta para a nossa superfície.

      Ela se recusava cada vez que eu lutava para reerguê-la. Eu a adulava em busca de sua obediência forçada, mas minhas tentativas pareciam sempre vãs.

    – Mamãe, os carros... Por favor, não faça assim! – eu implorava para ela.

      Ela não parecia se importar um mínimo sequer. Que dor no coração me dava mamãe! Num dia parecia estar evoluindo e tendo resultados significativamente favoráveis para possivelmente (ou impossivelmente) retornar à lucidez. Noutro dia parecia inalcançável. Inatingível. Sem qualquer perspectiva de melhora.

      Quando eu ponderei que aquele martírio não teria um fim, uma luz surgiu no túnel sombrio e claustrofóbico em que ambos estávamos inseridos.

      A picape branca estancou quase parando sobre nós dois. Esperei pelo motorista e seus xingamentos execráveis, mas o que vi sob o sol do amanhecer foi a visão de um jovem soldado a encarar aquela incompreensível cena com a mais obscura das expressões. De início, ele desenhou em sua expressão um claro vestígio de irritação, mas logo que nos discerniu na luz – nós e nossas faces de desterro – essa cáustica expressão se esvaiu de seu rosto com a mesma ligeireza que ali se hospedou. Ele pareceu oscilar, vencido, e dividido por algum dilema interior. Seus olhos vaguearam pelo panorama à sua frente até encontrarem os meus, e então eu percebi que não sabia como deveria me sentir, tampouco como agir diante dele.

      Eu me ergui do chão, sujo e inexato, sorrindo para ele com certa vergonha em meus sensos. Eu tinha então dezesseis anos, e sabia bem reconhecer um rosto bonito quando via um. E sofria pela desordem de meus modos. Eu, o franzino garoto em vestes de dormir, e ele, o garboso rapaz em uniforme verde-oliva. O cabelo bem aparado e penteado em expresso contraste ao desgrenhado de meu feno.

    – Meu nome é Vincent. – apresentou-se ele, erguendo suas mãos nuas para mim. – Bernard-Vincent.

      Eu hesitei sobre a figura deitada de minha mãe. Então num ímpeto suspendi a mão para ele.

    – Dante. – eu disse, apresentando-me. – Só Dante.

      Ele assentiu, sorrindo sem mostrar os dentes.

    – O que houve com sua mãe? – perguntou enfim. Suas perguntas pareciam tão inteiramente complexas sendo tão simples.

    – Ela... ela só está num dia ruim. – eu disse a ele, corando.

    – Hum... – murmurou, não acreditando completamente em minhas palavras. – Quer que eu te ajude a levantá-la?

    – Sim, por favor. – eu disse, de imediato.

      Ele contornou a figura tesa de minha mãe em busca do melhor ângulo para levantá-la. Sorriu para mim uma ou duas vezes um pouco constrangido e pediu minha ajuda para carregá-la pelo outro braço. Assim nos dirigimos de volta para casa onde o soldado Vincent me aconselhou a ter mais cuidado se ainda quisesse tê-la por perto.

      Eu assenti mesmo tendo uma porção de coisas a dizer, as quais alguém cheio de si como ele certamente não deveria saber. Ele pediu um copo com água, por obséquio, pois disse ter se esquecido de beber de onde ele vinha – provavelmente da base aérea localizada na barreira da cidade de Belleville – e eu o ofereci, tremulando sabe-se lá por quê.

      Ele agradeceu e antes que eu pudesse sequer guardá-lo em minha mente mais profundamente, ele partiu exatamente como havia surgido: do nada.

    Eu olhei seu carro sumir na estrada, e depois olhei de volta para mamãe. Ela estava repleta de suas tristezas lúgubres. Eu, repleto de novas expectativas, mas ainda tinha medo, e o medo me tinha em suas mãos frias com os seus estratagemas de solidão. Acariciei-a, pois, nos cabelos lisos e a pus para deitar-se no meu colo, ao modo de um pai a acalentar a sua criança.

    II

    PADRE

    Já não odiava ninguém:

    uma confusão de crepúsculo empenava-lhe o pensamento

    e, de todos os ruídos da terra,

    não ouvia senão o intermitente lamento de seu pobre coração,

    meigo e indistinto, como o último eco de uma sinfonia longínqua.

    Gustave Flaubert

    Uma das coisas que mamãe mais costumava fazer quando era sã era ir à igreja.

      Era lá na igreja da cidade que ela costumava encontrar o Padre Fontaine. Ele fora seu amigo de colégio e acompanhara a complicada vida de mamãe e de sua família.

      Quando ela adoeceu e regrediu seus atos até retornar à infância pela segunda vez, nós tivemos de abandonar a tudo e a todos, sem ao menos nos darmos ao luxo de olharmos para trás em pesar. Até mesmo o seu fiel Padre Fontaine foi afastado de nosso mundo, para encontrarmos ali reflexos semelhantes do que tínhamos na metrópole.

      Ali em Belleville tínhamos o Padre Salomon, um franco-alemão de alto porte e de barriga saliente que nas terças, quintas e finais de semana aguardava pacientemente numa cadeira de madeira nova dentro do âmbito estreito mas aconchegante do confessionário. Apesar de ter nascido em terras teutônicas, falava muito bem o francês.

      Cheguei à Igreja da Intercessão com mamãe atada num dos meus braços e a deixei contemplando os anjos do teto abobadado por alguns minutos. Ela sempre parecia tão feliz ali, eu não a via esboçar um sorriso como aquele há dias.

      Contei a ela que tempos atrás costumávamos ir juntos à catedral da metrópole, onde assistíamos a toda a missa e onde eu ia praticar a catequese. A crisma eu nem havia começado, porque mamãe já se encontrava adoentada àquela altura e tudo o que eu deveria fazer era auxiliá-la, jamais a deixando como papai a deixou.

      Eu não queria ser como ele em nenhum aspecto. Terminar meus dias com o peso do que ele fez seria morrer duas vezes. Ele que sufocou a própria mulher até o último suspiro de sua sanidade mental.

      Olhei de volta para mamãe quando notei uma velha senhora de vestes singelas coberta por um xale de renda deixar o confessionário para encontrar o sol lá fora depois de curvar-se diante do Cristo.

    – Temos de ir. – eu disse a ela, puxando sua mão para que ela me seguisse.

      Ela não hesitou. Sentia-se inteiramente confortável naquele recinto, colando a mão na minha como forma de confirmar sua confiança em mim. Levei-a comigo aos murmúrios, como a irmã que eu jamais tive.

      Aproximamo-nos juntos do âmbito silencioso e o Padre Salomon fez seu aceno de permissão para nossa entrada. Eu deixei que mamãe fosse à frente.

    – Sente-se aí. – indiquei a ela uma das cadeiras diante do padre e ela rapidamente se localizou.

      Fechei a porta do confessionário com cuidado e também me sentei, bem ao lado dela.

    – Então... – começou o Padre depois de nos benzer. – Por que causa estão aqui, meus queridos?

      Seu sotaque alemão me era um tanto engraçado. Entretanto sua conversação fluía tão bem que nem parecia um estrangeiro.

    – Estou aqui mais por mamãe. – confessei.

    – Não por você, Dante? – disse ele, inclinando a cabeça depois de formular sua pergunta.

    – Mamãe precisa disso muito mais do que eu. Eu tenho alguns problemas. – eu disse. – Mas mamãe agora se encontra no seu lastimável estado de inocência. Seria egoísta de minha parte procurar resolver os meus problemas uma vez que ela precisa de seus conselhos e de sua benção com mais urgência do que eu.

      O Padre Salomon assentiu. Arrumou a gola branca de sua bata como se o que fora dito ali houvesse o desajustado de algum modo, depois disso se pôs a perguntar:

    – O que me diz de sua mãe?

    – Ela não melhorou nenhum pouco. – disse com certo marasmo, dada a frustração dos meus dias. Das minhas amargas tentativas.

    – O que tentou fazer durante o tempo que se passou desde nossa última conversa?

      Eu corri os olhos para o chão de cerâmicas, adornadas por vivos losangos vermelho e preto. Depois os voltei para ele.

    – Eu mostrei a ela nossas fotos. – revelei – As fotos da minha infância e o perfume que ela costumava usar com tanto gosto quando estava lúcida. Mostrei também os tecidos que ela adorava costurar e bordar. Não sinto que tive muito êxito. Certamente não tenho na maioria do que faço. Já tenho me acostumado com isso.

    – Não diga isso, Dante. – respondeu o Padre. – As coisas da vida geralmente são melhores do que aparentam ser. A felicidade está certamente nas atitudes mais simples desta vida. Você só precisa enxergar as coisas de um outro ponto de vista. Com novos olhos para enxergar novos horizontes.

    – Talvez eu deva mesmo me conformar. – comentei, vencido. – Não acho que mamãe vá voltar a ser como era antes. Isso já soa impossível aos meus ouvidos. E às vezes eu choro por causa disso. E choro também toda vez que a vejo chorar.

    – Ela parece se lembrar das coisas que lhe aconteceram no passado? – indagou o Padre.

    – Não acho que seja isso. – eu disse. – Acredito que só seja o triste impulso de chorar e não pelas lembranças de nossa vivência ruim com meu pai.

    – A mente rejeita as memórias, mas o corpo não esquece, Dante. – disse ele. – Já pensou que talvez a melhor maneira de lidar com isso seja mostrando a ela tudo o que aconteceu? Ela poderia ter avanços significativos. Às vezes, os choques de nossas realidades sombrias são tudo aquilo de que nós mais precisamos para continuar seguindo em frente. Deus está nos detalhes.

    – Deus parece ter se esquecido de nós. – proferi sem qualquer piedade a fé dos dois cristãos presentes.

    – Não fale assim. – ele disse, sentido. – Persista, não desista, meu caro Dante. Sua mãe precisa de sua perseverança juvenil agora mais do que tudo neste mundo. Você acha mesmo que eu não enfrentei esta guerra que você está encarando agora? Todos nós temos nossos demônios. Todos nós travamos batalhas. Algumas tão breves quanto a de Anglo-Zanzibari, outras tão longas quanto a Guerra dos Cem Anos. Mas todas com suas devidas relevâncias. As coisas sempre foram difíceis desde que o primeiro homem surgiu, mas desde que fiz da cruz a minha âncora, têm sido muito mais fácil de lidar com estas mesmas coisas. Não que você precise da cruz também. Na verdade, tudo o que precisamos é de apenas algum apoio, alguma base concreta onde possamos construir a nossa casa.

      Eu olhei em volta rodopiando em pensamentos. O cheiro de madeira daquele cubículo me deixava confortável.

    – Então... você acha que eu deveria mostrar a ela tudo o que aconteceu? Assim de repente?

    – Sim, eu penso que sim. – o Padre foi claro. – Uma verdade é sempre melhor do que uma pérfida realidade. Sempre será melhor do que qualquer mentira, meu caro Dante. Evitar que ela reviva estes momentos infelizes pode ser arriscado. São as memórias dela, são as memórias que a trarão pouco a pouco para o chão. Você está certo, ela certamente jamais voltará a ser como era antes. Ela retornou às canções da inocência mais cedo do que deveria, mas isso não significa que você não possa mudar algo neste jogo. Pense nisso como uma dádiva divina. Você tem em suas mãos o poder de mudar suas vidas. O poder de nossas vidas está naquilo que nós somos e naquilo que fazemos para mudar nossos destinos.

    – Este poder parece completamente fora de alcance para mim. – eu disse a ele, rejeitando suas palavras, como um enfermo a rejeitar um prato de sopa rala.

    – Mas não está. – rebateu ele. – Persistência, Dante. Persistência.

      Com o efeito de suas palavras, eu me fechei em meu casulo solitário por alguns segundos até decidir falar novamente:

    – Estive pensando sobre o diário que ela escreveu.

    – Então ela escreveu um diário... – concluiu Salomon.

      A palavra diário pareceu incomodar mamãe. Ela se sacudiu na cadeira como que impaciente e depois procurou se fechar em seu casulo solitário também.

    – Ela parece se martirizar só com o simples ato de se proferir a palavra. Imagine só se eu a mostrasse outra vez.

    – Sobre o que trata o diário? Se assim me é permitido saber... – indagou Salomon, sem cerimônias para camuflar a sua curiosidade.

    – Sobre as relações conturbadas de mamãe e papai ao longo dos anos provavelmente. – conjecturei.

    – Você então preferiu não tocar nos segredos dela. – concluiu ele outra vez.

    – Eu sinto como se estivesse a degradando. São os sentimentos dela, não meus, Padre.

    – Você tem toda razão. – concordou ele. – Tem toda razão em querer preservar os sentimentos dela. Toda pessoa precisa de sua privacidade, nem que esta tal necessidade se resuma ao ato de expressar-se nas páginas de um simples caderno.

    – Eu não sei se devo, Padre. – eu disse a ele. – Às vezes tenho medo do que posso encontrar naquelas páginas. Medo da verdade por trás das letras tão desesperadamente rabiscadas. Mas parte de mim acredita que eu deveria ler o diário. Que não seria errado fazer uso desse artifício para auxiliá-la.

      Ele olhou para mim, comprimindo os lábios.

    – Uma verdade é sempre melhor do que uma mentira, Dante. Lembre-se disto.

      Eu fiz que sim e sorri um sorriso sem dentes.

    – O senhor deve ter razão. – contemplei meus pensamentos. – Talvez esconder o que aconteceu não seja a melhor coisa a se fazer. Não agora que ela precisa tanto de mim. Eu só não sei exatamente por onde começar.

    – Comece de um violento início, mas jamais chegue ao fim sem saber que lutou com tudo o que tinha.

    – Tudo bem. – outra vez um sorriso amarelo.

    Salomon ficou calado por algum tempo. Então olhando de mamãe para mim, insistiu:

    – Como vão as coisas com você?

    – Vão dando errado. – eu disse um tanto jocoso. – A vida parece estar pregando uma peça em mim a cada dia que se passa, Padre.

      Compadecidamente ele sorriu e duas covinhas surgiram junto às rugas de seu rosto.

    – Você não vê isso como um motivo de se regozijar?

    – O quê? – eu indaguei sem entender o sentido exato de sua questão.

    – Estas peças que a vida parece pregar em você... não vê isso como um benefício? Algo que lhe torne mais forte?

      Eu neguei, entortando a boca.

    – Eu sinto como se as coisas jamais fossem de fato melhorar. Estou sempre tentando, porque sou alguém que por natureza tenta com tudo o que tem. Mas parece que estou mesmo predestinado a falhar miseravelmente no que quer que eu me proponha a fazer. E esse é um sentimento muito ruim, penoso, mais que infernal. Admito, choro todas as noites por essas malditas razões. Sei que talvez eu esteja sendo só fútil, me dando ao luxo de protestar por uma desgraça que não é só minha, mas isso dói e abre uma cova profunda em meu peito onde eu me enterro e me destruo. Esse ato sem fim de falhar dia após dia não é o melhor dos mundos. E a situação de minha mãe parece sobrepujar todas as minhas forças, até as mais convictas. É preciso engolir a verdade de que este é o nosso destino agora. E se destinos são imutáveis, talvez sempre tenha sido para ser assim não importando os esforços. O mal se fixou em nossas vidas, e não penso que algum dia partirá.

    – Ele irá. – disse Salomon, confiante sobre a nossa sina como que tocado por Deus e falando por Ele. – As coisas sempre melhoram, nada se fixa, o rio nunca é o mesmo. Há de encontrar a sua verdade mesmo depois de uma torrente impiedosa de desventuras. Das mais perversas, das mais duradouras. Há sempre um paraíso no final da jornada.

    – Não acho que seja assim para mim. – retruquei. – Talvez isso funcione para qualquer pessoa da face deste planeta, mas não para mim. Eu sei que não, e não há mal em aceitar estas coisas.

    – É assim para cada uma das milhões de pessoas neste planeta azul, caro Dante. É como um grande ciclo: para chegar ao paraíso, há um inferno e um purgatório pela frente. Foi assim com Jesus Cristo. Foi assim com Jó também.

    – Não acho que teria a paciência de Jó. – eu proferi, extasiado pelo rumo que a conversa havia tomado. – Acredito fielmente que nasci para permanecer por um longo período neste tal inferno espiritual a que as pessoas tanto se referem, mas nunca me conformando com isso.

    – Não fale assim. – disse o Padre. – Quando perceber que as complicações espirituais lhe afetam de forma tão violenta, procure colocar a dor interna como externa.

    – O que quer dizer com isso, Padre? – eu indaguei, tomado pela confusão.

    – Se você cravar suas unhas com todas as suas forças numa determinada área de sua epiderme, Dante, pode enxergar o dano que este ato pode lhe causar e a dor que pode lhe afligir. Imagine o seu ser frente aos pensamentos negativos. Essas são as consequências, Dante. Os danos causados neste processo podem ser irreparáveis.

    – Entendo o que quer dizer. – disse a ele. – Eu sou grato por suas palavras. Às vezes elas me fazem perceber o quão tolo eu tenho sido.

    – Eu estou no mundo para ouvir e ajudar as pessoas. – disse ele, solidário. – Estou aqui para ser o seu auxiliador. Sempre que você precisar, criança.

      Eu assenti e agradeci a ele com um sorriso, um verdadeiro desta vez.

      Dei uma olhada no relógio de pulso que tia Rosalinda me dera no meu último aniversário para que eu me programasse às novas necessidades de mamãe.

    – De todo coração, Padre, eu lhe agradeço. Obrigado por me ouvir. Ouvir a voz sombria deste coração solitário.

    – A solidão lhe levará ao lugar certo um dia. – ele procurou me consolar. – Ela sempre leva a algum lugar, Dante.

      Eu fiz que sim, dizendo:

    – Assim eu espero.

      Não partimos sem antes recebermos a benção de Salomon. Ele disse que eu deveria rezar cinco vezes o Pai Nosso e cinco vezes a Avê Maria pela minha alma e pela alma de minha mãe.

      Ele sabia dos meus pensamentos confusos quanto à existência de Deus. Sabia muito bem a situação crítica em que mamãe se encontrava e que o que acontecera a ela me tornara ambíguo. E disse compreender meus pensamentos mesmo que não concordasse com muitos deles.

      Beijei sua mão e parti dali com mamãe apoiando-se em meu ombro esquerdo. Eu a beijei no rosto e contemplei o sol.

    III

    SOLDADO VINCENT

    Aquele que nunca viu a tristeza,

    nunca reconhecerá a alegria.

    Khalil Gibran

    – Ei, Dante... É Dante, não é? – soou uma voz que ia se aproximando à medida que falava.

    – Sim. É sim. – limitei-me a dizer.

      Era o soldado Vincent olhando para mim. Deixando-se ser iluminado pelo sol e assemelhando-se à figura de uma criatura angelical resplandecente.

    – Você... você está precisando de alguma ajuda ou algo assim?

    – Ah, não. – eu disse meio sem jeito. – Eu estava apenas levando minha mãe à igreja. Como de costume, sabe? Mamãe ainda é muito ligada a sua fé.

      Mamãe apertou o meu braço e tentou se esconder por trás de mim, embora esta não fosse uma boa ideia já que ela ainda tinha quase o mesmo tamanho que eu ou alguns poucos centímetros além disso. E eu talvez não fosse crescer tanto quanto se esperava de um adolescente de dezesseis anos, pálido e franzino dada a baixeza de minha genética.

    – É bom saber que se dedica tanto a ela, cara. Você sabe... nossos pais são tudo o que temos de mais precioso neste mundo.

      Eu concordei com ele, fazendo que sim, apesar da sentença clichê.

    – Neste caso, eu quase que só devo me dedicar à mamãe.

    – Ah, algum problema com...? – ele não terminou sua pergunta. Eu lhe lancei uma expressão um tanto quanto repreensiva e ele pareceu captar a mensagem no ar.

    – Eu lhe conto sobre isso outro dia. – disse a ele, baixinho. – Quando nos esbarrarmos uma vez mais por esta florida Belleville.

      Ele sorriu seu melhor sorriso. A barba precoce por fazer iluminando-se ao feixe solar.

    – Tudo bem. – ele entendeu, oferecendo-se com um sinal para nos ajudar. – Você não quer que eu leve vocês para casa?

      Eu corei diante de sua generosidade. Talvez ele só estivesse mesmo sendo gentil e nada mais do que isso. Entretanto, com a generosidade em demasia tendem a vir os amores platônicos irreversíveis.

    – Eu tenho que comprar algumas coisas no supermercado. – eu disse a ele, comprimindo os lábios.

    – Se você quiser, cara, eu posso ajudar vocês dois. Não é um problema para mim.

      A palavra cara pareceu quebrar qualquer vínculo afetuoso que surgia entre nós. Ou que pelo menos eu estivesse criando na solidão de meus próprios sentimentos carentemente afetivos.

    – Não me entenda mal. – ele disse, sorrindo. – Eu perdi meus pais muito cedo. Tinha sete anos quando isso aconteceu, e foi um processo doloroso até que eu voltasse a ser como era antes. Quer dizer, nós nunca voltamos a ser o que éramos antes depois de fatalidades como estas, não é? Eu só procuro ajudar as pessoas da forma que eu gostaria de ser ajudado. Quer dizer, eu gostaria de estar com meus pais. Gostaria de fazer isso com eles, entende?

      Eu o interrompi com um sinal.

    – Olhe, me perdoe pela falta de... bem, pela falta de sensibilidade da minha parte, soldado Vincent. Eu não fazia ideia do que aconteceu com você. – eu me vi constrangido. – Eu só quero que entenda que somos abertos a qualquer auxílio. Bem, você vê. Mamãe e eu somos praticamente sozinhos naquela casa. Praticamente, não. Na verdade, é bem evidente que vivemos a sós, restando-nos o pouco da parca companhia de minha tia no final de cada mês.

    – Tudo bem. – ele disse. – Hoje tenho uma segunda mãe e um segundo pai. E gosto de tratá-los assim, pois são tão cuidadosos quanto os meus anteriores. Quando os meus verdadeiros pais vieram a óbito, eu precisei ficar com uma tia minha, irmã de meu pai. Foi ela quem me criou, ela e seu marido, então tecnicamente pude reparar alguns dos meus traumas de infância.

      Eu comecei a andar em direção ao supermercado de Belleville enquanto ele falava, e ele pareceu entender a minha pressa pois apressou seus passos depois de trancar a picape.

    – E foi uma convivência boa... com sua tia? – ele quis saber. Fitava o chão enquanto andava.

    – Tia Stella Maris foi a pessoa quem mais me apoiou durante os tempos escuros do meu luto que parecia quase eterno. – contou ele.

    – Pudera, você era apenas uma criança. – interrompi sua fala. Mamãe prosseguia o caminho cingindo meu braço esquerdo como se estivesse apertando a teta de uma vaca leiteira. Estava receosa do até então estranho e enigmático soldado. E apesar de tomado pela figura dele, eu sabia que sua suspeita era mais do que fundamentada.

    – Sim, eu era. – concordou ele. – Mas sempre me considerei muito forte, apesar de tudo. Talvez tenha puxado isso do meu pai, homem rude feito um urso.

    – Você gostava muito dele, não é? – eu contemplei sua face e vi o brilho em seus olhos.

    – Eu adorava meu pai. – respondeu ele de imediato e mil memórias pareceram flutuar oniricamente diante de sua visão. – Ele foi e sempre será um grande amigo meu. Mesmo depois da morte.

      Eu assenti a seu comentário, perceptivelmente capturado pela exultação de suas palavras.

    – Mamãe era sempre mais rígida do que ele. – prosseguiu. – Queria que eu melhorasse sempre mais meu desempenho. E papai sempre me salvava das obrigações a que ela me forçava.

    – Então ele era como o seu herói, não é? Como o seu salvador? – interroguei meu paciente em seu divã invisível.

    – Sim, ele era. Meu pai herói. Um grandessíssimo amigo a que eu tive o azar de perder muito cedo. – ele sorria como se visualizasse aquele de quem falava. Os olhinhos claros e a epiderme uniforme clareando-se ainda mais contra a luz imponente do dia. Ele brilhava e tinha um espelho em sua própria face.

    – Eu entendo. – limitei-me a falar.

    – É aqui? – indagou ele quando paramos diante de um conjunto de galpões cujo letreiro anunciava os melhores preços da semana.

    – Sim. – eu respondi o óbvio. Fiz um gesto com a cabeça, chamando-o para se juntar a nós.

    – Vejam só que adesivos bonitinhos. – ouvi ele dizer. – A sua mãe parece ter gostado muito deles.

      De fato, ela tinha estrelas no lugar dos olhos.

    Sorri com meus botões ao recordar que dera de cara no vidro logo quando havia chegado a Belleville. Um momento decisivamente terrível e constrangedor. Este era exatamente o motivo por que haviam sido colados aqueles mesmos adesivos floridos na vidraça por que mamãe tanto se encantara. Não dei o gosto ao soldado de conhecer este fato tão risível, e agradeci aos céus por mamãe não poder formular mais palavras, pelo menos naquelas circunstâncias era algo bom.

    Por ser tão sem jeito com as coisas, havia sido apelidado de marionete. O garoto que parecia ser guiado por cordas e que mal podia dar conta do próprio corpo.

      Diante do meu sorriso inesperado, ele perguntou inesperadamente:

    – Quantos anos você tem, Dante?

    – Dezesseis.

    – Só dezesseis? – ele pareceu realmente se assustar com o fato de eu ter anunciado aquela idade.

    – Pareço mais velho? – indaguei meio ofendido.

    – Na verdade, eu lhe daria uns dezoito ou vinte. – confessou ele. – Não me leve a mal, é só que... parece mais maduro.

    – Sim, sou bem precoce. – eu disse a ele entre um sorriso. – Não vê as espinhas que brotam na minha cara? Que martírio elas me causam! Meu mundo orgânico é um vulcão em erupção.

    – Não são tão ruins assim, cara. – observou Vincent, repetindo a palavra proibida. – Eu já fui repleto delas. Mal saía na rua. As garotas deviam ficar assustadas com tamanha feiura.

    – Não vejo problema algum com seu rosto. – comentei enquanto pegava uma cesta.

    – Bem, pelo menos isso, não é? – ele deu de ombros. – A verdade é que elas vão embora da mesma forma que vem: de repente. Lembro-me bem do terror que elas eram. Parecia mais uma alergia em nível crítico. Eu que ainda sofro de rosácea.

    – Não deveriam ser tão ruins assim. As espinhas no seu rosto. Parece que nem as teve.

    – Pois eram. – afirmou ele. – Era até difícil de conquistar as garotas. Elas eram o meu pior pesadelo.

    – As garotas?

    – Não, as espinhas, claro.

      Eu fiquei meio constrangido, por algum motivo que nem eu entendia. Puxei mamãe para mais perto de mim, pois ela havia se distanciado ao se empolgar com as amoras. Cutucava-as insistentemente. Às vezes, fazia coisas que Freud explicaria bem.

    – Você acredita que eu tive uma ex que terminou comigo por causa das minhas espinhas? – ele persistia nessa conversa com certa obstinação.

    – Acredito, pois já aconteceu comigo. É normal. – menti para tentar fazê-lo mudar de assunto. Eu não entendia bem, mas sempre me sentia tão estranhamente constrangido quando os garotos começavam a falar de garotas para mim como se eu fosse um conquistador barato que entendesse do assunto. Era ainda como se de repente um grande paredão crescesse diante do meu corpo e me fechasse numa prisão extremamente claustrofóbica. Talvez eu fosse meio alheio a tudo isso, e talvez eu não gostasse mesmo de ninguém.

    – Sério? – indagou ele.

      Eu coloquei algumas maçãs na cesta.

    – Sério. – respondi de qualquer jeito.

      Mamãe pegava coisas aleatórias – como laranja, salgadinhos, bolachas, enlatados e achocolatados –, ia amontoando tudo na cesta sem a minha menor permissão.

    – Mamãe, não! – eu a repreendi e ela se encolheu fugindo do meu olhar. – Por que tem comido tanta besteira? E pensar que falava tanto de mim... Não é você quem dá as cartas aqui, ouviu bem?

    – Se você quiser, cara, eu posso pagar essas coisas para ela. – interrompeu o soldado. – O que recebo da Força Aérea dá para ajudar a mim, a minha tia e a seu marido. E ainda chega a sobrar alguma coisa. É que eu sou muito privilegiado, sabe? A boa conversa faz você alcançar o Olimpo.

    – Você vai deixá-la mal acostumada. – eu gracejei. – Fora o trabalho que tenho para fazê-la escovar os dentes todos os dias.

      Mamãe entristeceu sua expressão ao me ver devolver tudo de volta para as prateleiras.

    – Tudo bem. – eu disse a ela, vencido. – Só um pacote de salgadinhos e nada mais do que isso.

    Seu nível de animação se elevou significativamente. Sorriu para mim como se, em sua anterior lucidez, houvesse acabado de descobrir que tinha ganhado na loteria.

    – Só não resmungue quando seus dentes começarem a doer. – alertei. O soldado Vincent riu dos meus modos.

      Depois que terminei de pegar tudo o que eu queria, levei a cesta até o caixa. Mamãe tentou colocar secretamente um pacote de balas com a ajuda do soldado que passava os produtos do Macédoine às minhas costas. Quando percebi o conluio silencioso, voltei-me para eles dizendo:

    – Era só o que me faltava agora. Estão numa conspiração contra mim, é isso? Ô Cassius, já chega de besteira por hoje. E Brutus, não fique dando a ela tudo o que bem quer. É um caminho sem volta, já lhe aviso!

      Os dois caíram na gargalhada. Divertiu-me ver mamãe tão feliz daquele jeito. Talvez o soldado fosse o remédio de que ela precisasse. Alguma coisa na personalidade dele a divertia muito. E não era só ela que ficava radiante com a sua presença...

    – Mamãe! – eu a repreendi enquanto ela insistia em colocar um pacote de nachos no balcão de alumínio. – Quando chegarmos em casa, teremos uma conversa bem séria...

    – Não seja tão rude com ela, Dante. – disse o soldado. – Eu pago o que ela quiser. Ponha na minha conta, por favor. – contrariou-me ele para a moça do balcão já impaciente.

    Eu suspirei, vencido, porque não era bom em debater certas coisas em público. Revirei os olhos meio chateado porque sempre havia controlado mamãe muito bem naquele aspecto, e agora, alguém destruíra em segundos os avanços que havia conquistado.

    – Dois contra um é covardia. Você sabe disso. – eu disse a ele meio rancoroso.

    O que ele fez foi sorrir para mim e depois para mamãe que retribuiu a ele o sorriso. Ele passou a mão nos cabelos dela e a beijou na testa, como se ela fosse a própria genitora dele. Ela gostou do afago e inclinou a cabeça na direção dele como um gato que pede por mais carinho.

      Já com as sacolas de compras em mãos, o soldado Vincent nos indicou a sua picape fazendo menção de que nos levaria até em casa. Eu recusei e disse que mamãe e eu precisávamos caminhar um pouco, porque a caminhada ajudava mamãe a exercitar sua mente e se lembrar do caminho caso ela se perdesse alguma vez.

      Ele, no entanto, insistiu:

    – Tudo bem. Mas vocês terão de adiar a caminhada para outro dia, porque hoje vão pegar carona com o papai aqui.

      O soldado conseguia ser irritante em certos momentos. Mas minha irritação para com ele tinha quase o efeito de uma admiração.

      Ele nos levou para casa com as janelas do carro abertas. Atravessou Belleville numa fração de tempo e adentrando num caminho adornado pelos arvoredos que dançavam com o vento, atingiu nosso território de solidão. Quando enfim chegamos, ele estacionou a picape branca em frente à nossa calçada e saiu do carro para ajudar mamãe. Eu a ergui com a ajuda dele e depois o agradeci pelo gesto, por tudo mais.

    – Ei, Dante. – chamou-me pelo nome outra vez, como se gostasse de como ele soava. – Eu estava pensando em trazer meu vídeo game para passar o tempo qualquer dia desses. Você gosta de vídeo games?

    – Sim, eu tive um quando morava com meus pais. – eu disse a ele. – Tive de vender para que viéssemos para cá.

    – Bom, – ele disse. – então terá a oportunidade de jogar de novo. Vou trazer meu Nintendo e jogamos eu, você e sua mãe, o que me diz disso?

    – É ótimo. – tentei transparecer animação, mesmo que eu fosse tremendamente apático a qualquer coisa que fosse.

    – Então estamos combinados. Sua mãe vai adorar. – supôs ele, sorrindo seu melhor sorriso.

      Eu fiz que sim.

    – Eu vou indo então. Qualquer coisa, ligue para mim. Eu estarei sempre disponível para ajudar vocês dois, está bem? Não hesite se realmente precisar.

    – Obrigado, soldado. – tentei parecer grato. – Eu nem sei como lhe agradecer.

    – Chame-me de Vincent, cara. – ele bateu no meu ombro. – Você pode me agradecer assim. Você é meu amigo agora.

      Eu procurei não parecer um idiota, mas a palavra amigo me atingiu como um soco no estômago.

    – Mais uma vez, obrigado. – repeti a fim de evitar qualquer faniquito.

    – Não é nada. – ele disse. – Até logo, Dante. Ah, quase ia me esquecendo!

    – O quê?

    – Como posso contatar você? Você tem telefone?

    – Espere um pouco. – eu disse a ele e pareci um pouco desesperado para lhe entregar o número do telefone daquela maldita casa. Nunca lembrava de cor porque havíamos nos mudado para lá não fazia muito tempo, então precisei caçar o post-it que tia Rosalinda havia me entregado com o número do telefone residencial. O post-it estava grudado na velha geladeira. Assim que o encontrei, copiei ligeiramente os números para o outro papel arrancado de uma velha agenda numa velocidade estonteante. Entregue-o ao soldado fingindo uma fleuma que não existia em mim.

    – Vejo você em breve, amigo. – ele se despediu com uma reverência militar.

    – Em breve. – eu repeti meio desnorteado.

      E então ele partiu com sua picape roncadora. Fiquei um tempo ali parado, vendo-o sumir na estrada poeirenta exatamente como havia feito da primeira vez. Depois entrei em casa ao lembrar de que mamãe precisava de mim na maior parte do tempo. Ela parecia feliz. Eu também.

    IV

    CONHECENDO GAIA

    Conhecer alguém aqui e ali que pensa e sente como nós,

    e que embora distante, está perto em espírito,

    eis o que faz da Terra um jardim habitado.

    Johann Wolfgang von Goethe

    Quando conheci Gaia, ela estava parada na frente de uma drogaria da rede Romanelli (a maior da minúscula Belleville) e fumava seu cigarro cor de rosa com tanto estilo que eu até senti que também queria fazer aquilo. Falando em cor de rosa, a cor do cigarro fazia jus à cor de seus cabelos. Eram longos e lisos até a cintura e os olhos tracejados perfeitamente por delineadores pretos que rendiam a ela o ar de uma fêmea felina. Gaia parecia saber gostar de sua confusão artística, pois que confusão visual era aquela garota! Ela estava encostada ao lado de um poste de luz enquanto fazia acrobacias com seu fumo.

    – Quer um cigarro? – ofereceu-me quando me notou por perto como se já me conhecesse há anos.

    – Não, obrigado. – eu disse meio ríspido. Quem ela pensava que era afinal?

    A garota deu uma nova baforada contemplando os arvoredos ao longe.

    – Tem certeza de que não quer um cigarro? – ela insistiu sem olhar para mim.

      Eu pensei duas vezes e mais outras três.

    – Vamos, me dê um. – disse, vencido pela curiosidade de experimentar.

      E foi assim que começamos uma conversa. Através de cigarros. Ela sacou um deles da carteira que tirou do bolso de sua calça xadrez e estendeu para que eu pegasse.

    – É bom?

    – Então você nunca fumou... – concluiu ela.

      Eu dei de ombros, repetindo:

    – É bom? – repeti.

    – É ótimo. – disse ela com um sorriso sardônico no rosto de porcelana.

    – Hum. – foi tudo o que consegui dizer.

      Ela suspendeu o isqueiro de prata que tirou do outro bolso da calça e acendeu meu suposto primeiro cigarro.

    – Cuidado para não queimar as mãos. – gracejou.

    – Não sou tão tosco assim. – eu disse a ela.

    – Sabe, – começou a dizer a garota. – este cigarro cor-de-rosa não combina com suas mãos.

    – Eu bem deveria saber disso. – respondi logo depois tentando dar uma baforada.

    – Você vai tossir em um, dois, três... – previu ela, o meu oráculo de Delfos.

      E eu tossi como quem sai de um incêndio.

    – Vai com calma. – ela disse.

    – Como sabia que eu iria tossir? – indaguei.

    – Bisonhos como você sempre tossem na primeira vez. É meio que previsível. – ela disse, ainda sem olhar para mim, sempre fitando algo ao longe. Supus então que deveriam ser os soldados, descamisados, em um botequim do outro lado da praça. E estava certo...

    – Eles são lindos, não são? – indagou-me como quem indaga a um inconfidente. – Principalmente quando estão reunidos. Tão vigorosos! E sempre tão atrevidos. Sempre sabem onde pegar. Um ou outro foge à regra, mas são coisas da vida.

    – O que pensa que eu sou? Uma prostituta de cabaré? – revidei à sua audácia de me dizer tais coisas.

    – Uma prostituta de cabaré não precisa ouvir isso. Ela o sabe como ninguém.

      Eu entortei a boca me sentindo um idiota.

    – Então... – ela começou. – Por que decidiu fumar? Essa era realmente a sua primeira vez, não era?

    – Na verdade, não. – confessei. – Uma vez tive uma experiência no porão da casa de um irmão de meu pai, tio Adolph. O nome dele era Adolph por causa de Hitler, acredita?

    – E a experiência foi boa? – ela quis saber, ignorando o fato histórico.

    – Foi terrível! – eu exprimi terror ao me recordar do episódio.

    – O que foi que fumou então?

    – Eu não sei. Só sei que estava num cachimbo de madeira. – lembrei.

      Ela caiu na gargalhada. As mãos segurando a barriga para não doer de tanto que ria.

    – O que é tão engraçado? – indaguei abespinhado por sua insolência.

    – Você é engraçado. – disse ela, jocosamente. Os olhos bem tracejados ainda semicerrando-se através do sorriso. Quando ela ria, seus olhos riam também, e isso era incrível.

    – Devo ser mesmo. – murmurei mais para mim mesmo do que para ela.

    – Você não respondeu a minha pergunta... – disse depois de pigarrear.

      Eu pensei um pouco. Dei mais duas baforadas no cigarro e tossi outra vez.

    – Vá com calma, garoto. – agora parecia mais séria. – Isso não é um brinquedo.

      Eu sorri meio sem jeito.

    – Eu não sei bem por que decidi fumar. – confessei em seguida. – Eu só ando meio agitado. Tenho estado impaciente e meu coração covarde não para de palpitar.

    – Está apaixonado? – perguntou isso soprando a fumaça na minha cara.

      Olhei para ela, incrédulo.

    – Por que está me perguntando uma coisa dessas?

    – Que foi? – ela disse. – É uma pergunta normal, não é? Você diz estar agitado e diz sentir seu coração palpitar. Isso me parece amor. Ou pelo menos os sintomas que têm.

    – Pois saiba que não é! – resmunguei, ofendido. – Um enfarte tem iguais sintomas, e ainda assim é menos perigoso.

    – Se você diz assim...

      Ficamos calados por um tempo. Observando a movimentação monótona e cotidiana de Belleville.

    – Então... – ela tentou quebrar o gelo. – Por que está aqui nessa cidadezinha ridícula?

    – Minha mãe. – respondi.

    – Ela está doente?

    – Ela ficou doente. – disse, firmemente.

    – O que ela tem então?

    – É complicado de dizer.

      Ela voltou os olhos para mim.

    – Então tente.

      Eu suspirei, olhando para os lados.

    – Ela adquiriu uma doença estranha. – foi o que eu disse, ao que ela me lançou uma expressão interrogativa.

    – Estranha?

    – Sim. – foi o que respondi. – Ela se tornou ingênua outra vez. Ou pelo menos parece assim aos meus olhos. É difícil de explicar, e não sei se essa doença está nos livros.

    – Ingênua? – perguntou. – Como assim ingênua?

      Voltei meus olhos a ela.

    – Eu disse que era complicado.

    – Tente! – repetiu ela, curiosa.

      Eu formulei então um jeito mais claro de dizer aquilo para ela.

    – Ela age como uma criança, entende? Começou a agir assim depois que meu pai a abandonou e sumiu de nossas vidas. No começo, pensei que fossem apenas devaneios. Uma forma de recalcar a dor que ela estava sentindo naquela época. Entretanto, ela afundou no grande lago de sua mente de tal forma que jamais retornou à superfície.

    – Ah... – ela disse. – Então ela enlouqueceu... Ficou biruta, doidona...

      Eu a lancei uma expressão raivosa.

    – Não fale assim da minha mãe, está bem? Minha mãe não é maluca!

      Ela ergueu as duas mãos para cima como que desarmada e disse:

    – Me desculpe! Olha, eu não queria ter...

      Antes que ela terminasse de falar, eu já havia me deslocado de onde estava alguns passos à frente. Estava decidido a ir embora dali. Aquilo não parecia saudável. Nem para mim e nem para a reputação de minha mãe.

    – Ei, você não precisa ir embora! Ei! – ela chamou.

    – Na verdade, preciso sim. – proferi. – Eu tenho uma mãe para cuidar. Preciso levar este remédio para casa. E mamãe está sozinha neste exato momento. Ela precisa de mim. Ela não pode ficar sozinha por muito tempo.

      Ela atirou no chão a bia de cigarro e a pisou para que apagasse.

    – Veja bem. Eu não quis ofender você e a sua mãe. Eu só me expressei de forma errada. Só isso. Por favor, não me leve a mal.

    – Eu não estou lhe levando a mal. – falei, fingindo um sorriso. – Está tudo bem. Isso é muito corriqueiro mesmo.

    – Eu imagino. – ela disse meio sem jeito. – E imagino o quanto deva sentir por isso. O quanto tem sido difícil para você.

    – Eu estou bem comigo mesmo. – confessei a ela. – Eu e mamãe só precisamos de nós mesmos e de mais ninguém.

      Ela assentiu meio envergonhada. Então como que em dúvida se dizia ou não dizia o que lhe pareceu surgir à cabeça, ela decidiu por fim expressar-se:

    – Se você quiser se divertir um pouco e viver um pouco mais a sua juventude, apareça lá em casa qualquer dia desses. Mas vá quando puder. Não quero lhe forçar a nada. E prometo não escorraçar você de lá.

      Ela sorriu para mim. Seus lábios não eram grossos. Na verdade, o batom que ela usava parecia compensar a falta deles na sua boca.

    – Okay. – eu disse, não demonstrando muito interesse. – Tudo bem. Só não lhe garanto ir de verdade.

    – Rua Portinari. Atrás da Igreja da Intercessão. Número 29. – ela disse, mesmo sem eu ter perguntado. – Ah, o meu nome é Gaia. Gaia Béatrice.

    – Okay. – repeti. – A propósito, o meu nome é Dante. Dante Homme.

      Ela sorriu para mim mais uma vez. Os cabelos cor de rosa flamejando à luz do sol. Virou a face para a rua e sua movimentação, então pôs-se a caminhar ladeira acima até desaparecer da minha vista.

      Eu fiquei um tempo ali parado, até me lembrar do que havia ido fazer. Dei uma última baforada e apaguei meu primeiro cigarro. Tecnicamente era o meu primeiro.

      Parti a passos longos.

      Quando cheguei em casa, eu tinha cem por cento de certeza de que havíamos sido assaltados. Ou que mamãe simplesmente tivesse tido um de seus acessos de raiva e, por consequência disso, as coisas estivessem fora do lugar como se encontravam naquele exato momento em que fixei meus olhos em direção à porta. Eu havia tido o cuidado de trancar a casa e girar a chave duas vezes para que mamãe não escapasse. Ela ainda adormecia quando saí bem cedo.

      Cheguei mais perto. Um passo ou dois na pequena varanda.

      Pensei em indagar em alto e bom tom se alguém estava presente, mas isso não faria muito sentido e nem seria muito prudente, a menos que eu quisesse ser cruelmente esfaqueado ou coisa pior.

      Empurrei a porta até ela estar a uma boa distância da base para que então eu pudesse então passar. Xinguei com o ruído que ela ocasionou, mas minha revelação na divisa da porta fez minha tia surgir na obscuridade daquele âmbito.

    – Achei que estivéssemos sendo assaltados. – ela disse ao se recuperar do susto.

    – Que engraçado, pois eu pensei o mesmo. – disse a ela meio que sorrindo. – Havia esquecido que tinha a chave daqui.

    – Já faz um mês desde a última vez em que eu estive neste lugar. O tempo tem passado de forma tão fugaz. – ela disse exprimindo surpresa.

    – Sim, é bem verdade. – concordei, caindo em seu abraço.

      Abraçou-me forte como no passado mamãe costumava fazer depois de chorar pelos maus feitos de meu pai. Depois cheirou o meu cabelo numa fungada delongada e enfim declarou:

    – Você está com um cheiro esquisito, Dante.

      Pensei rápido.

    – Fui à igreja hoje. Estavam acendendo velas na Grande Cruz para os que morreram no desastre da semana passada na estrada que dá para a de Belleville. Eles estavam usando incensos. Deve ser por isso o cheiro.

    – Ah! – ela exclamou, não parecendo convencida. – Fiquei sabendo pelo jornal. Cinquenta e um mortos na RN14. É, eu li as manchetes.

    – Aquela rodovia é muito perigosa. – eu disse. – Um acidente lá é quase inevitável.

    – Sim, é por isso que eu escolhi vir por outro caminho. – ela disse. – Não acho que eu vá me acostumar tão cedo com a RN14. Sua tia aqui não se sente muito confortável em estradas, a velocidade na rodovia é muito maior. Nem sei por que sou parisiense.

    Eu fingi um sorriso e então houve um hiato.

    – Mas me diga, tia... – eu dei início a um novo rumo em nossa conversa. – Como estão indo as coisas na cidade?

    – Normal. – contou ela meio desanimada. Os olhinhos esverdeados devaneando pelo assoalho. – Tem sido tudo muito maçante. Mas é isso que as cidades fazem, não é? Tiram de você toda sua juventude.

    – Tem trabalhado muito, não é mesmo? – eu disse. – Não precisa fazer o que está fazendo. Trabalhando por três. Está sempre tão cansada. Temo que a senhora durma ao volante no caminho para cá.

    – Bah. Não fale bobagens. Isso não vai acontecer. – ela me reprimiu. – Sou dura na queda. Ainda tenho força para sustentar mais dois se for preciso.

    – Até parece. A senhora precisa de um tempo para cuidar de si mesma. – falei isso levantando do sofá de onde há pouco juntos havíamos sentado.

    – O que importa, de fato, aqui é você e sua mãe. – ela apanhou a página de classificados que eu havia esquecido ali por perto. – Seria egoísmo meu abandonar vocês dois a própria sorte.

      Eu balancei a cabeça negativamente ao que ela havia acabado de dizer. Mas suas considerações eram impassíveis.

    – Olhe. – eu apontei para ela a seção do jornal já amassado. – Estive checando a página de classificados por estes dias.

    – Hum. – foi o que ela se limitou a dizer.

    – Eles têm vagas adequadas para mim. – eu disse procurando expressar empolgação.

    – Quanto é a remuneração? – ela quis saber.

    – Geralmente não é muito. – falei. – Mas eu não preciso de muito dinheiro. A vaidade é irrelevante a mim. O que importa é mamãe aqui.

      Ela abandonou o jornal sobre a nossa pobre mesinha de centro. Ao se levantar, passou a mão nos meus cabelos e disse:

    – Você ainda está muito novo para isso. Tem só dezesseis anos, Dante. Tem a sua juventude inteira para viver ainda.

    – Estou no momento exato para trabalhar. – argui um pouco chateado por seu desmerecimento.

    – Tem certeza disso? – ela arqueou as sobrancelhas.

    – Tenho. – eu estava convencido do que queria.

    – Pois eu não penso assim. – rebateu ela. – Me deixe manter as coisas por enquanto. Eu sei que posso. Muito em breve, meu pequeno Dante, as coisas irão mudar. Para você, para sua mãe e para mim. Vão sim. Nesse meio tempo, viva o que tem para viver. Aproveite o tempo que tem. Aja como um jovem e viva intensamente. Se sua mãe persistisse sã, ela não gostaria que você se prendesse num casulo solitário. Eu tenho certeza que não.

      Eu ponderei até dizer:

    – Eu já não me sinto tão bem como antes. Não tão jovem. Eu me sinto um adulto.

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