Canção de ninar do diabo
De Nico Bueno
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Canção de ninar do diabo - Nico Bueno
Conteúdo © Nico Bueno
Edição © Viseu
Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos, incluindo ainda o uso da internet, sem a permissão expressa da Editora Viseu, na pessoa de seu editor (Lei nº 9.610, de 19.2.98).
Editor: Thiago Domingues Regina
Projeto gráfico: BookPro
Coordenação Editorial: Giselle Rocha
Consultoria Editorial: Marcelo Mezzari
Copidesque: Isis Maureen
Revisão: Naddia Alves
Capa: Daniela Penedo
Diagramação: Ytana Mayanne
e-ISBN 978-65-254-4855-8
Todos os direitos reservados por
Editora Viseu Ltda.
www.editoraviseu.com
Dedicatória
Dedico este livro ao meu irmão, por ser inspiração.
E também ao meu avô extraordinário (em memória).
Agradecimentos
De todas as pessoas que estiveram ao meu lado durante este processo, quero agradecer primeiramente à minha família. Minha mãe por ser uma mulher forte como a Blair, ao meu pai por ser dedicado como Gato Preto, ao meu irmão Dominic por ter me dado a ideia para meu protagonista de mesmo nome e a minha avó por ser calma como Chucrute. Agradeço também aos pitacos e apoio dos meus padrinhos, que sempre estiveram ao meu lado. Quero citar meu mestre Jeff, também escritor, por sempre me incentivar a ter coragem para questionar e escrever. Esta história jamais teria saído do papel se não fosse pelo apoio da Manu e da Carla e pelos avisos e dicas do Giordanni, portanto, agradeço a estes também. Quero agradecer ao meu avô, pois se não fosse por ele jamais seria amante de histórias extraordinárias, e sua memória ainda ecoa dentro de mim. Do fundo da minha alma, deixo registrada aqui minha gratidão.
E aos meus gatos, que passaram dias me ouvindo falar pelo quarto, obrigada.
Prefácio
Essa é uma história sobre destino. Afinal, o que define um destino? São nossas próprias mãos ou as mãos de algo muito maior do que nós? Existe uma linha muito tênue entre escolher e aceitar quando se trata de destino. Um religioso diria que seu destino está nas mãos de Deus; um ateu diria que não existe destino; um réu diria que seu destino está nas mãos do juiz. Todavia um pirata diria que seu destino pertence ao oceano, às ondas e aos ventos. Para uma vida devota ao mar, sempre existe uma nova aventura, um novo horizonte para seguir. O destino, por mais que tenha sido escolhido por um velho pirata morto, como o de Dominic, pode ser tudo menos previsível. Para um pirata, a existência é um ato de revolução e rebeldia. E o que pode ser mais divertido do que desafiar o próprio destino?
Prólogo
A pequena e bucólica cidade costeira ainda dormia quando o galeão azulado apareceu no horizonte, onde o Sol timidamente mostrava seus primeiros raios. Da janela do segundo andar, do quarto coletivo de número três do Orfanato Santa Cecília, observava aquela cena — que bem podia ser um quadro — com as ruivas sobrancelhas franzidas um garotinho despenteado chamado Dominic Pitt.
Ele olhou para trás por cima do ombro, onde estavam dormindo o resto de seus colegas com a exceção de Blair Woolf, que o observava com curiosidade. Dominic pensou sobre quais mercadorias aquele grande navio estava trazendo naquela manhã, então olhou aquele horizonte uma última vez e saiu da janela.
Eles sequer esperaram para ver o galeão se aproximando da praia. Ninguém viu quando aqueles homens pularam para fora do navio sem medo. Suas botas fizeram um barulho baixo quando saíram das águas e pisaram na areia úmida. Eles tropeçaram entre si, caminhando em bando pela praia.
As ruas de pedra foram invadidas pelos passos firmes da trupe, que contava com uma variedade surpreendente de origens e estilos. Eles pareciam passear quando ouviram — e a maioria deles esperava por isso — o tiro sagrado do capitão Swan ecoar. O caos se disseminou depois disso.
Eram como bestas que caminhavam em duas patas, criaturas de instintos primitivos e inclinados à violência. Iam entrando de casa em casa e arrancando mulheres para a rua, puxando-as pelos cabelos. Elas gritavam e os maridos também, pedindo socorro para ninguém em particular. Depois de se divertirem um pouco, eles usavam de suas armas para atirar e cortar e quebrar aquelas pessoas. Era um sorteio cruel, e os poucos que saíam vivos eram feitos de reféns. Em alguns casos, sequer queriam roubar algo, atacavam as casas pelo prazer de aloprar, torturar ou matar.
E aquilo era, como dizia o capitão Swan, apenas a parte divertida. A montanha de peças de ouro e prata estava enterrada no coração da cidade: o orfanato. Lá estava o tesouro. Era uma mansão gigantesca e bifurcada, equipada com o que parecia ser um estoque infinito de espaço e de freiras. O orfanato sempre tinha espaço para mais uma alminha amaldiçoada pela vida, sempre tinha um lugar nas camas lotadas. Assim como sempre tinha uma daquelas melancólicas freiras em cada canto que se olhasse.
Quando aquele rosto apareceu na janela ao lado da porta, a freira magra, acompanhada de mais duas que eram igualmente franzinas, colocaram-se a encarar depois de tomar um susto. Foi a garota magra que gritou primeiro quando a porta se escancarou com o baque de um chute, e mais três daqueles rostos desconhecidos — e desvairados — apareceram. Ela empurrou as outras para trás de si, defendendo-as. Ou quase isso.
Eles se olharam e riram antes de matá-la e matar também as outras duas com uma facilidade injusta de se ver. O chão branco tornou-se vermelho e as botas pisotearam os corpos — que agora pareciam ainda menores — e passaram a subir as escadas.
Mas do andar de cima daquela parte do prédio, Dominic e Blair já estavam acordados e prontos para agir.
— Cale essa boca, Jubileu! – exclamou Blair para um menino menor, de cabelos negros e lisos, que puxava com as mãos as madeixas enquanto chorava após acordar com aqueles gritos.
— Eles estão vindo… – sussurrou Dominic, olhando para a soleira sem porta do quarto.
Ele sabia que eram piratas — havia visto a bandeira depois que acordou com o grito da freira e olhou pela janela. Não sabia, porém, que aquela bandeira, a caveira com uma bala nos dentes e uma espada atravessada horizontalmente no crânio, pertencia ao Tormenta Azulada, que estava sob a temida capitania de Bran Swan. Dominic estava com os grandes olhos azuis arregalados, esperando o momento certo.
A pessoa certa.
Ele esperava pelo capitão, pois sabia que ele apareceria ali e passaria por aquela soleira, que ficava apenas uma antes da sala proibida. Do ouro do rei. Então, apenas esperou, enquanto aqueles marujos explodiram o cofre e começaram a retirar o tesouro e levá-lo embora. Viu freiras sendo estupradas, ofendidas e estripadas. Viu crianças perderem a cabeça — literalmente — por chorar alto e pedir socorro.
Mas tudo sumiu quando o capitão Swan passou pela soleira, tudo congelou e esfriou. Ele parecia flutuar, como se suas botas de couro negro não tocassem no chão. Havia algo de austero e cruel em suas feições, diferente dos desvairados. Carregava consigo uma espada (atravessando as costas) e duas pistolas carregadas com balas de prata — e ele jamais disse por que não usava outras balas — estavam posicionadas nas laterais de sua cintura. A barba tinha pequenas trancinhas amarradas com fios de ouro.
O olhar, porém, era de uma lucidez não humana, carregava um brilho vil. A boca estava contraída em um bico, e ele assobiava calmamente uma melodia que todas aquelas crianças já haviam ouvido. Uma música que as freiras costumavam disseminar à noite, quando as crianças choravam. Ele passou pela soleira e adentrou a sala do cofre.
Então deu o tiro de partida e todos os demais piratas fugiram para fora. Ele estava terminando a mensagem — uma freira nua, com moedas lhe enchendo a boca e uma vassoura lhe penetrando o ânus — quando se virou ao ouvir passos arrastados.
Deu de cara — e de fato foi tomado por um pouco de surpresa — com um menino de vestes sujas, pés descalços e um sorrisinho nos lábios. Dominic o encarou por um breve momento, pensativo e curioso.
— Você é o dono daquele navio que está na praia? – perguntou ele por fim.
— Sou, criança – Ele deu uma risada que não chegou aos olhos – Por que está aqui, bloqueando minha passagem?
— Por que mata crianças? Vocês piratas são inimigos de Deus, mesmo. – Dominic, aos dez anos, repetiu como um adulto aquelas palavras.
E mentiu tão dissimuladamente quanto qualquer adulto era capaz. Ele não acreditava em Deus. Ele não acreditava em nada, só na desgraça. Era tudo que conhecia.
O pirata cuspiu no chão e olhou para o garoto.
— O deus dos marujos é o mar, garoto. E ele não tem piedade de nós, e nem nós de vocês – Ele, então, riu novamente. De um jeito quase assustador demais.
O menino, porém, não recuou. Apenas sorriu. Um sorriso de alívio, pois os guardas foram chamados por Blair, que por ser muito pequena conseguiu se esgueirar pelo orfanato e sair sem ser vista logo após o tiro de partida. Ela seguiu pelo beco, depois por três quadras e encontrou o posto dos guardas mais próximo, então explicou a situação.
Quando os guardas invadiram o saguão atrás de Swan, o encontraram com os olhos arregalados depois que o menino havia lhe falado maliciosamente que ele estava sozinho, já que sua trupe já havia partido depois de receber a falsa informação de que o capitão havia sido capturado muito antes de isso se concretizar.
Os guardas o carregaram para fora arrastado e aos chutes, enquanto ele disparava ofensas e esperneava. Dominic e Blair ganharam o direito de olhar a execução da primeira fila na manhã seguinte, dizendo algo sobre suas contribuições heróicas e mais alguma balela que não seria, de fato, significativa na vida de nenhuma daquelas crianças. E o pior: elas sabiam disso.
No dia do enforcamento do capitão Swan, o céu amanheceu tão cinzento que quase parecia noite, e o mar estava tão revolto que ninguém se atreveu nem a pisar na beira da praia. O grande palco de madeira no meio da praça já estava cercado de pessoas. Os dois pareciam chamar muita atenção, mas pelos trapos finos que usavam naquela manhã fria, não por seus atos heroicos.
Swan subiu mudo, e mudo permaneceu enquanto um homem lia sua longa lista de crimes, pecados e desacatos. O céu se fechava cada vez mais conforme o tempo passava, e quando a lista findou, as nuvens descarregaram suas lágrimas cortantes e frias. O carrasco enrolou a corda no pescoço de Bran Swan.
— Suas últimas palavras? – perguntou o padre.
O pirata finalmente levantou o olhar, procurando. E quando encontrou Dominic na multidão, ele o encarou. Muito fundo, dentro da alma. O menino tremeu, então arregalou os olhos, sentindo-os chorar também.
— O mar chamará por seu nome – disse Bran Swan, com a voz arrastada de um homem morto – E quando você não conseguir mais m… Ele te consumirá.
E então ouviu-se um baque esganiçado, e o temido capitão Swan havia partido.
1
Façam suas apostas
Homens mortos não contam histórias, diziam os lobos do mar.
Mas Dominic Pitt sabia muito bem quão pesadas eram as palavras de um homem morto, pois ele ainda conseguia ouvir a voz de Bran Swan ecoando em seus sonhos, que nunca eram felizes e sempre traziam as lembranças de uma certa manhã chuvosa. Ele ainda se lembrava do cheiro de sangue que aquele orfanato nunca deixou de ter após o ataque da Tormenta Azulada. Lembrava-se também da quantidade imensa de corpos — melhor dizendo, de restos — que foram recolhidos na mesma manhã.
O tempo passou mais rápido depois daquilo. Em um dia, Dominic e Blair eram crianças, e no outro, adultos condenados. Seguiram unidos, como unha e carne, no entanto completamente à parte e contra o resto do mundo. As ruas da Inglaterra passaram a ser lar depois que completaram quatorze anos e era um lugar difícil de viver para quem não possuía nada além das roupas do corpo e da coragem. Com o tempo, os irmãos começaram a descobrir formas melhores de ganhar dinheiro do que pedir aos ricos com cara de pobres coitados. Roubar e brigar virou rotina.
Mesmo naquele momento, apenas dois dias depois do seu aniversário de dezenove anos, Dom se encontrava tentando afogar tudo aquilo em uma caneca de cerveja. A taverna Corvo Bêbado estava lotada em plena segunda-feira, marujos de todos os lugares costumavam aparecer para contar histórias e fazer apostas na mais mal frequentada espelunca do Norte da Inglaterra. O lugar era claro, com luzes amarelas que deixavam tudo com um tom esquisito de embriaguez. As mesas ficavam dispostas de maneira desorganizada, mas o balcão era de um tom outrora claro, e naquele momento meio marrom pela velhice e sujeira. Todos bebiam, todos falavam idiotices.
De um dos cantos, a pequena figura albina de cabelos brancos, pele igualmente clara e olhos azuis quase lilases observava com atenção os homens que ali estavam. Blair jamais errava em escolher seus duelos. Ela tinha suas preferências quando se tratava de escolher um oponente. Preferia os que parecessem burros, jamais lutava com um homem com menos de um metro e setenta, odiava adversários que pesassem menos do que ela. E acima de todas as exigências estava o cheiro: quanto mais cheirasse a álcool, menos convidativa seria a luta.
Dominic esperava a sua irmã de criação puxar a briga com um homem que tinha pelo menos cinco vezes o tamanho dela. No geral, era simples começar uma briga em uma taverna, pois seus frequentadores nunca perdiam uma chance de desferir alguns golpes contra um bom adversário. Ninguém costumava levar Blair a sério, parte por ser uma mulher, parte por ter uma estatura ridiculamente pequena. E era aí que eles ganhavam, pois quanto menos gente apostava em Blair, mais dinheiro os moribundos órfãos recebiam.
Era um processo esquematizado: Blair procurava um bom adversário, Dom fazia as apostas, sempre deixando clara a sua torcida para qualquer que fosse o oponente. Ela apanhava nos primeiros três ou quatro golpes, e depois de deixar o inimigo pegar confiança, ela dava o bote. Por serem itinerantes e frequentarem diversas cidades, tornava-se fácil de nunca serem desmascarados. A rotação de piratas e outros tipos de ladrões era grande, só que quase nunca esbarravam com as mesmas pessoas.
E naquela segunda-feira não foi diferente. Dom estava recolhendo as apostas quando a briga começou, de fato, com um direto de direita que chegou a tontear a pequena