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Colônia Leste: Trilogia de Toucan
Colônia Leste: Trilogia de Toucan
Colônia Leste: Trilogia de Toucan
E-book459 páginas5 horas

Colônia Leste: Trilogia de Toucan

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Sobre este e-book

Segundo volume da Trilogia de Toucan, Colônia Leste, traz as novas aventuras e desafios dos irmãos Leigh um ano depois da Lua Púrpura.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de mai. de 2021
ISBN9781667401256
Colônia Leste: Trilogia de Toucan

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    Pré-visualização do livro

    Colônia Leste - Scott Cramer

    COLÔNIA LESTE

    TRILOGIA DE TOUCAN

    SEGUNDO VOLUME

    ––––––––

    Scott Cramer

    Colony East—Toucan Trilogy—Book 2

    Copyright 2013 Scott Cramer

    www.facebook.com/AuthorScottCramer

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser usada ou reproduzida de qualquer maneira, incluindo o uso na Internet, sem permissão por escrito do autor.

    ISBN-13: 978-1505943733

    Designer da capa: Silviya Yordanova

    www.facebook.com/MyBeautifulDarkness

    Editorial

    http://laurakingsley.yolasite.com

    Formatação por Polgarus Studio

    http://www.polgarusstudio.com

    ––––––––

    Este livro é uma obra de ficção. Todas as referências a pessoas, acontecimentos e organizações são usadas de forma fictícia. Todos os diálogos, nomes, incidentes e personagens são provenientes da imaginação do autor e não foram concebidos como verídicos.

    DEDICATÓRIA

    Para V., Megumi, J-girl, Harry e Misty-Duck

    REGRESSO à ilha

    CASTINE

    CAPÍTULO UM

    Sem dormir havia dois dias seguidos, e se recuperando da epidemia que tinha matado a maioria dos adultos do mundo, Abby sentiu que afundava ainda mais no colchão de jaquetas de inverno que empilhara no chão.

    Com receio de que alguém pudesse tentar entrar na casa, ela se levantou rolando para cima de um dos braços, queimado de sol. Alguém tinha que ficar de vigia. Embora a casa da mãe dela fosse uma das milhares abandonadas desde a noite da lua púrpura, Abby sabia que o continente era um lugar perigoso.

    Ela ansiava por respirar novamente o ar salgado da Ilha Castine. A trinta e dois quilômetros de Portland, no Maine, seu lar insular ficava, em linha reta, a cerca de trezentos e vinte quilômetros de Boston. Sentia falta da irmã, Toucan, e aqueles que estavam na ilha à beira da adolescência contavam com ela e o irmão, Jordan, para que retornassem com os comprimidos de antibiótico. Os comprimidos eram a única cura para a bactéria mortal.

    O cometa tinha atingido a Terra havia um ano. A poeira de sua longa cauda penetrara a atmosfera, fazendo com que o céu, o sol e a lua ficassem arroxeados. A poeira também continha germes que atacavam os hormônios humanos produzidos primeiramente na puberdade. Adultos e adolescentes mais velhos morreram em questão de horas. O cometa deixara um planeta de crianças em seu rastro, com os sobreviventes mais velhos vivendo com a bomba-relógio da aproximação da adolescência. Cientistas, em quarentena nos CDC’s, os Centros para Controle de Doenças, após diversos atrasos, tinham finalmente desenvolvido um antibiótico para derrotar a bactéria, e estavam agora no início da distribuição dos comprimidos pelo país.

    Abby virou a cabeça para espiar os demais na sala de estar. A luz do luar contornava Jordan no sofá, com apenas seus cachos castanhos desgrenhados como travesseiro. O irmão dela sempre parecia agradável enquanto dormia. Abby sentiu o sangue congelar ao se lembrar de quão perto ele estivera de morrer. Ela nunca mais iria reclamar da teimosia dele.

    Mandy e Timmy, as crianças do continente, compartilhavam uma poltrona almofadada. Timmy, de nove anos, tinha sobrevivido àquele ano totalmente sozinho. Com cabelos lambidos e um sorriso radiante, ele parecia saltar de tragédia em tragédia como se saísse correndo de uma volta de montanha russa para outra.

    Mandy, de catorze anos, parecia muito tranquila aconchegada a Timmy, nada a ver com a garota durona de vários piercings e cabelos curtinhos cujo olhar para um adversário era tão letal quanto a faca que ela carregava. 

    Pela janela, Abby viu a lua cheia alta do céu, e imaginou que seriam duas, ou uma, da manhã. Fazia silêncio lá fora, exceto pelos latidos a distância e o zumbido dos grilos chilreando no mato crescido dos gramados.

    Ela franziu o nariz devido à fumaça pungente que entrava pelas vidraças partidas. Era um cheiro de borracha queimada e produtos químicos. Um incêndio feroz devia estar ocorrendo em Boston, ou talvez em algum lugar perto de Cambridge. Outro edifício ou bloco urbano virando cinzas.

    Ela raspou a ponta escamosa da língua nos dentes e tentou engolir. Apesar da sede avassaladora, engatinhar até a lata de cerveja sobre a mesa a três metros de distância parecia um esforço grande demais.

    Todos ali precisavam de água e comida, e Mel era a melhor aposta deles. Melhor amiga de Abby desde a segunda série, Mel morava na Pearl Street, a dois quarteirões – pelo menos, era onde costumava morar. Abby não a via havia mais de um ano. Antes da epidemia, elas se juntavam e atormentavam Jordan sempre que ele as irritava, o que era sempre. Mel era mais forte e veloz do que qualquer menino que ela conhecia.

    No dia anterior, Abby tinha passado na casa de Mel e visto roupas no varal do quintal, mas elas podiam pertencer a moradores clandestinos. Ela tinha escrito um bilhete na porta da frente, pelo sim, pelo não, para informar Mel que ela e Jordan estavam na casa da mãe deles. 

    Será que a Mel compartilhava? Muitas crianças acumulavam comida e água porque acreditavam que era a única maneira de sobreviver. Abby, por outro lado, acreditava que cuidar de todos os indivíduos tornava o grupo mais forte. Era assim que ela tentava viver na Ilha Castine. Ela tinha noção de que a epidemia mudara as pessoas, mas achava que a amiga os ajudaria se pudesse.

    Olhando para cima, Abby sentiu uma fadiga profunda se instalar, e começou a ver imagens no teto – estava navegando para casa e tinha adentrado as águas calmas do Porto de Castine. Ela fixou o olhar na ponta do cais de um quilômetro e meio que se estendia até a entrada do porto. Era o lugar favorito dela na ilha para ficar sozinha. Ela imaginou que a fumaça nociva do incêndio distante era o perfume denso, natural, das algas marinhas na maré baixa. Suas pálpebras foram se fechando, e uma sensação de paz baixou sobre ela como a neblina sobre uma lagoa.

    ~ ~ ~

    Abby acordou em sobressalto. Pés estapeavam a calçada lá fora. Alguém estava correndo pela Pearl Street. Piscando para tirar a sujeira nos olhos, levantou, mas a tontura a derrubou de novo. Virou-se para a janela. A lua, suja pelas ondas de fumaça, pairava logo acima dos telhados no outro lado da rua. Logo amanheceria.

    O corredor estava mais perto. Adrenalina bombeava no corpo de Abby com sua aproximação iminente, e ela achou que ele iria subir correndo os degraus e entrar na casa. Será que ela devia acordar os outros?

    De repente, tudo ficou silencioso, exceto pela palpitação nas têmporas de Abby. Ela ficou na dúvida se ele tinha parado ou se estava se movendo silenciosamente pela grama crescida. Ela prendeu a respiração e ficou na escuta de rangidos ou raspões na madeira, qualquer coisa que anunciasse que ele estava subindo os degraus. 

    Abby ouviu mais corredores se aproximando. Parecia ser um bando inteiro de crianças. Talvez estivessem perseguindo o primeiro corredor, ou um grupo maior estivesse perseguindo todos eles. A perseguição dos fracos pelos fortes era extremamente comum no continente.

    Mais uma vez, ela cogitou acordar os outros. Porém, sem detectar nenhum perigo, decidiu deixar que dormissem. Eles eram invisíveis, disse a si mesma. A casa de sua mãe, saqueada muito tempo atrás, não era diferente de nenhuma outra da rua. Mesmo que fossem descobertos, eles não tinha nada de valor, exceto metade de uma lata de cerveja.

    Abby engoliu com dificuldade, lembrando-se da motocicleta de Mandy. Ela e Mandy a haviam empurrado para trás do matagal na lateral da casa. A moto era muito valiosa para eles, pois proporcionava uma maneira veloz de patrulhar os barcos no Porto de Boston e de ir buscar os comprimidos de antibiótico no aeroporto. Ela esperava que a tivessem escondido bem.

    — Em que direção? — um menino gritou.

    Abby reparou que ele tinha uma voz grossa. Devia ter a idade dela, ou talvez fosse até mais velho.

    — Por ali! —  disse outro menino.

    — Esperem aqui — disse uma menina.

    — Já era! — disse o Voz Grossa, desta vez com raiva. — Perdemos ela de vista.

    Abby percebeu que quem estava correndo era uma menina.

    As crianças pararam para recuperar o fôlego. Enquanto permaneciam ali, bufando e conversando, suas vozes se insinuaram pela janela quebrada. Eles deviam estar na rua, bem em frente à casa. Sentada, com as paredes rodando à sua volta, Abby se segurou. Ela se concentrou nas vozes. 

    — Confiem em mim, ela está por aqui — a menina disse. — Está se escondendo. Eu sei.

    — Ou então... —  Abby não conseguiu ouvir o resto da frase.

    Eles ficaram se xingando e discutindo sobre onde poderiam encontrar a corredora, Abby contou quatro vozes: duas meninas, dois meninos. Todos pareciam ter treze ou catorze anos. O menino com voz de adulto tinha que ter pelo menos essa idade.

    Ele ainda não via motivo para acordar os demais. Fosse o que fosse que estivesse acontecendo lá fora, não era da conta deles. A prioridade dela era retornar à ilha.

    Jordan grunhiu alto e abanou os braços. Abby sentiu calafrios na espinha. Não era o primeiro pesadelo do irmão naquela noite e, felizmente, ele sossegou depressa. Abby prendeu a respiração, preocupada com a possibilidade de a gangue ter ouvido o surto.

    — Eu preciso de um comprimido agora! — o Voz Grossa berrou.

    — Brad, para de reclamar! — a menina soltou. — Todos nós precisamos.

    Ainda tremendo, Abby percebeu que as crianças estavam doentes, e quem podia culpá-los por estarem ansiosos? A doença era horrível – um mês de febre alta, perda de apetite, alucinações no estágio final e erupções dolorosas que devoravam a pele nos últimos dias antes da morte. O antibiótico era a única cura. 

    — Como a gente pode ter certeza de que ela tem comprimidos? — o outro menino perguntou.

    — Por que então ela fugiria? — disse a menina.

    Abby queria gritar para que eles fossem para o aeroporto, como todo mundo. Boston era um centro de distribuição da Fase 1, uma das poucas cidades do país a receber a primeira remessa de comprimidos. Os cientistas estavam distribuindo o antibiótico no Aeroporto de Logan. 

    — Brad, eu não te entendo — a menina disse. — Ela talvez tivesse dividido conosco.

    — Você tem algum problema comigo? — Brad replicou.

    — Você fez besteira! — a menina acusou. — Elas não te fizeram nada.

    Brad esbravejou:

    — Não olha assim para mim!

    — O que você vai fazer? Esmagar os meus miolos também?

    — Eu perdi a cabeça, ok? — Brad disse.

    Encolhendo-se, Abby engatinhou até a janela e se encostou na parede embaixo do parapeito. O ar frio e esfumaçado do exterior se derramava sobre ela como uma cascata poluída. Ela não se atrevia a levantar a cabeça, com receio de que eles vissem o movimento.

    — Vamos nos separar e encontrar aqui de novo em dez minutos — a menina sugeriu.

    — Ela já deve estar a um quilômetro daqui agora — disse Brad.

    Abby esperava que, para o bem dela e da corredora sem nome, que fosse verdade.

    — Ei, o que é aquilo?

    A voz de Brad sacudiu Abby. Ele tinha se aproximado mais da janela. Muito mais.

    — A gente está perdendo tempo! — o outro menino disse.

    Brad sussurrou:

    — Ali! — ele estava respirando profundamente pela boca.

    Brad estava tão perto agora que ela conseguiria esticar a mão e tocá-lo. Abby ouviu-os discutindo algo.

    — Não acredito! Uma moto.

    — Está acorrentada.

    — Você acha que tem gasolina?

    — A tampa está trancada.

    — Qual é a surpresa?

    — Você sabe dirigir?

    — Não deve ser muito difícil.

    — A placa é do Maine — Brad falou baixinho. — Eles vieram do Maine buscar comprimidos. Estão no lado de dentro. Eles têm comprimidos. Tenho certeza.

    Eles pararam de falar e acenderam uma lanterna. Abby levou a mão à boca para sufocar um ruído de espanto. Pilhas eram escassas, algo que somente as gangues mais violentas tinham.

    Uma luz cintilou nos pedaços quebrados da vidraça. O feixe dançou no teto acima dela, indo para a frente e para trás como os olhos de um predador faminto. E então se apagou.

    Abby sabia que eles entrariam a qualquer momento na casa e exigiriam as chaves do cadeado da corrente da moto. Se dependesse de Abby, eles podiam ficar com elas. A moto não era uma necessidade, não valia o sacrifício de suas vidas. Mas, com Mandy, a história era diferente. Ela lutaria pela moto.

    A gangue também pediria os comprimidos. Abby esmagara e enfiara o último que tinham na garganta de Jordan. Eles não acreditariam em nada daquilo, o que poderia acontecer? Pessoas desesperadas agiam de forma imprevisível e, pelo que tinha ouvido, parecia que Brad já tinha esmagado os miolos de alguém. 

    Eles não estavam à altura da gangue de Brad. Embora fossem quatro contra quatro (isso se ela tivesse contado as vozes direito), ela e Jordan estavam se recuperando e, com sorte, tinham a força combinada de uma pessoa, e Timmy só pesava, molhado, vinte e três quilos. Restava apenas Mandy. De faca em punho, Mandy conseguia enfrentar dois de uma vez, mas ainda restavam outros dois.

    Abby ficou pensando se conseguiria argumentar com eles. Ela explicaria que a fila do antibiótico no aeroporto andava devagar, mas andava. 

    Se não funcionasse, ela podia tentar blefar. Uma gangue de motocicleta deve ser bastante perigosa, certo? Ela os convenceria de que sua gangue estava em maior número e que eles, os caçadores, estavam prestes a se tornarem presa. Infelizmente, Abby sabia que não conseguiria mentir mesmo que se sua vida dependesse disto. 

    Esmagada pela dúvida, ela pressionou as costas na parede, preparada para fazer algo que, esperava, os assustaria – ganhando minutos preciosos para acordar os demais.

    Ela ficou de pé, abanando os braços loucamente e gritando. Os gritos saíram como grasnadas patéticas, e uma nova onda de tontura tomou conta dela. Ela agarrou o parapeito para se equilibrar.

    Chocada, olhou pela janela. A gangue já tinha recuado para o outro lado da rua. Grata por sua garganta seca, Abby se abaixou rapidamente, sumindo de vista. 

    Espiando pela janela, com cuidado para evitar um caco de vidro a centímetros do nariz, viu quatro silhuetas próximas. Um menino era trinta centímetros mais alto. Tinha que ser o Brad. 

    Abby saiu da janela e um ruído veio do lado de fora.

    — É ela! — Brad gritou.

    A lanterna foi acesa e o feixe de luz se concentrou sobre uma menina saindo dos arbustos no outro lado da rua. Ela vestia uma jaqueta verde e tinha cabelos compridos. Ela correu na direção deles, como um touro atacando um matador. Então, fez um desvio no último segundo e saiu correndo pela Pearl Street. Como leões perseguindo uma gazela, as quatro crianças saíram correndo atrás dela.

    Não fazia sentido. Por que a menina tinha corrido para eles? Abby atribuía isso à loucura do continente.

    Esperando que a gangue de Brad voltasse para levar a moto e comprimidos se não pegassem a menina, Abby sacudiu Jordan pelo ombro.

    — Ei, acorda!

    Ele grunhiu, cruzou os braços e rolou para o outro lado.

    As histórias sobre como o irmão conseguia dormir apesar do barulho eram lendárias. Sirenes de bombeiros. Sirenes de nevoeiro. Criancinhas berrando.

    — Anda, Jordan!

    Quando o sacudiu de novo, ele afastou a mão dela com um tapa.

    Aceitando a derrota, ela passou para os outros. Era comovente ver Mandy chupando o polegar e Timmy agarrando a mão livre dela com ambas as dele. Abby estremeceu ao se lembrar da confissão chorosa de Mandy, mas isto a ajudava a compreender o porquê de Mandy, que só conhecia Timmy havia algumas horas, estar agindo como sua protetora ferrenha. Mesmo aconchegados na poltrona, eles pareciam estar com frio, então ela os cobriu com uma jaqueta.

    Decidindo deixar todos dormir, Abby agarrou a única cerveja que tinham e  inclinou a lata até os lábios. Era uma edição púprura especial, criada para celebrar o cometa. Ela tomou um gole minúsculo, mal umedecendo a língua inchada, e fechou os olhos, sentindo a onda pálida de sabor. Ela queria jogar a cabeça para trás e engolir o resto para aplacar a sede forte que sentia, mas guardou o resto para os demais.

    Ela empurrou a banqueta do piano para o lado da janela para ficar de vigia. Ao leste, o céu exibia um traço de luz através da fumaça enevoada. Ela olhou para os jardins frontais das casas onde costumara brincar, enquanto sua mente repassava as vozes dos vizinhos que tinham morrido na noite da lua púrpura. Os sentimentos dela tinham se entorpecido diante da perda impressionante de pessoas que, antigamente, fizeram parte de sua vida.

    Narcisos floresciam no jardim sob a janela. O soluço veio sem aviso, juntamente com lágrimas que Abby não acreditava ainda ter. Elas desciam pelo seu rosto. Ela tinha ajudado a mãe a plantar os bulbos de narcisos três anos antes. 

    Os sentimentos de Abby com relação à mãe ainda estavam em carne viva. Ela e Jordan tinham enterrado o pai no ano anterior. Eles, juntamente com Toucan, tinham passado pelo luto em família. Mas a mãe ainda estava ali na casa, na cama no andar de cima, intocada durante o ano mais recente. 

    Jordan tinha ido ao quarto dela.

    — A mamãe parece tão em paz. Abby, vai ver.

    Abby retinha a uma imagem especial na cabeça — a mãe na balsa da Ilha Castine, saudável e feliz, cabelos ruivos ao vento, acenando do convés. Abby queria preservar aquela lembrança que tinha dela.

    O dia despontou e varreu para longe as sombras e os pensamentos sombrios. Ervas daninhas altas brotavam das rachaduras da calçada, e um carpete de folhas de bordo e carvalho cobria a rua. A natureza estava reconquistando a cidade. Abby ficou pensando se, algum dia, Cambridge lembraria uma antiga cidade maia engolida pela selva, ou se os jovens, com a ajuda dos poucos adultos que restavam, a preservariam e reconstruiriam.

    O céu clareou em um tom cinza e reluzente, e vagalhões de fumaça negra se erguiam e borbulhavam a distância. A fumaça era tão espessa e negra que o sol era um borrão no céu. Esse incêndio alteraria os planos deles? Eles conseguiriam chegar ao aeroporto seguindo a rota que ela conhecia ou teriam que encontrar um caminho diferente?

    Aquele e outros problemas eram um peso enorme em sua mente e, logo, Abby não aguentou mais ficar sozinha, independentemente de quanto os outros precisassem descansar. Ela olhou para cima e para baixo da rua uma última vez e depois se virou para a cena de crianças adormecidas.

    — Ei, hora de acordar! — Abby apertou o ombro de Jordan com uma das mãos.

    Mais uma vez, ele afastou a mão dela com um tapa. Ele estava fazendo jus à reputação de urso rabugento e dorminhoco. Ela cogitou arrastá-lo para fora do sofá, o que seria merecido.

    A maçaneta da porta da frente clicou e Abby ficou paralisada.

    Como ela podia ter sido tão burra? A gangue de Brad tinha voltado. Eles tinham observado-a na janela o tempo todo, e se aproximaram assim que ela se afastara.

    O coração dela explodiu. Ela correu para Mandy e apertou o braço dela. Os olhos de Mandy se abriram. Abby colocou um dedo nos lábios dela e apontou na direção da porta.

    Mandy entendeu imediatamente. Ela puxou a cabeça de Timmy para mais perto e pôs uma das mãos sobre a boca dele.

    — Shhh... — sussurrou em seu ouvido.

    A porta rangeu.

    Abby ergueu quatro dedos, mostrando a Mandy o número de crianças com quem teriam que lutar. A seguir, levantou um dedo com a mão erguida para mostrar que um deles era um monstro. Mandy assentiu com a cabeça e retirou a faca da bainha. A visão da lâmina comprida provocou um arrepio na espinha de Abby.

    Mandy pôs a bainha no chão. A seguir, cutucou Timmy e apontou para um canto da sala, querendo que o menino ficasse a um distância segura. Timmy permaneceu onde estava, preparado para enfrentar qualquer ameaça. Mandy franziu os olhos com um ar de reprovação. Emburrado, ele foi para o canto nas pontas dos pés.

    Quando a porta fechou, fazendo um clique, Abby receou que a gangue tivesse entrado.

    Será que eles deviam acordar o Jordan? Se falasse alto agora, ela poria todos em perigo. Ela respirou fundo e se concentrou na entrada. A palpitação do sangue em seus ouvidos sufocava todos os demais sons.

    Mandy ficou encostada de costas na parede, pronta para um ataque de força súbita. Segurando a faca, gesticulou para Abby se afastar. Sem querer se desviar muito de Jordan, mas confiando no instinto de Mandy, Abby foi para um ponto ao lado do piano de onde podia ver bem a entrada. Um movimento capturou o olhar dela. Ela ficou tensa. Timmy começou a se mover para frente.

    Assim que a menina de jaqueta verde entrou contornando a quina da parede, Mandy ergueu a faca e recuou. Em um único movimento, girou o torso e apontou a faca.

    — Pare, eu a conheço! — Abby gritou.

    Assim que a ponta da faca encostou na jaqueta da menina, Mandy estremeceu, surpresa. Ela abriu a mão e a faca caiu no chão.

    Abby jogou os braços ao redor da amiga, Mel, e chorou profundamente aliviada.

    CAPÍTULO DOIS

    Jordan se ergueu de supetão quando o motor da moto foi ligado. A cabeça dele começou a rodar, e ele estendeu um dos braços para trás para se apoiar no encosto do sofá. Ele estava sozinho numa sala que conhecia muito bem. As memórias foram chegando uma a uma. A casa em Cambridge. Era ali que ele tinha crescido. Aos nove anos, ele tinha se mudado para a Ilha Castine com Abby, Toucan e o pai, mas a mãe tinha ficado para trás por causa do emprego em Boston. Agora, a mãe estava pronta para se juntar à família na ilha.

    Não, todos os adultos, incluindo a mãe dele, tinham morrido um ano atrás. Uma dor pulsou no fundo de seu coração. Na noite passada, ele tinha encontrado o corpo dela no andar de cima. Para dizer o adeus final, ele tinha tocado o braço dela por baixo do cobertor. Jordan cerrou os pulsos e grunhiu, tentando forçar as lembranças tristes para fora do cérebro.

    Ele se lembrava vagamente da chegada. Abby o tinha amparado para subir os degraus e entrar. Ela o direcionara até o sofá. Tudo estava voltando. Deixando-o sozinho na casa, Abby tinha ido até o aeroporto buscar comprimidos. Uma coisa parecia certa. Ela devia ter conseguido, senão, ele não estaria fazendo perguntas.

    Jordan soltou um suspiro de alívio quando viu uma cama improvisada de jaquetas no chão. Talvez Abby estivesse na frente da casa com a pessoa da moto? O barulho do motor desacelerando, por alguma razão, deixou-o agitado.

    — A-Aaa...— a tentativa dele de chamá-la saiu como um gaguejo em sua garganta ressequida.  

    Ele queria ir até a janela, mas com a sala rodando daquele jeito, ele cairia de cara no chão antes de dar mais de um passo.

    Ele passou uma das mangas pelos olhos, pensando se estaria alucinando. Ele tentou alcançar a lata, mas derrubou-a. A cerveja púrpura começou a gotejar da beirada da mesa. Passando a língua sobre o tampo empoeirado, tentou, em vão, engolir a cerveja — a seguir, deixou-se cair no sofá e xingou a si mesmo.

    O motor da moto acelerou. Jordan ficou vermelho de raiva ao, de repente, se lembrar da gangue que o tinha abandonado juntamente com Abby em New Hampshire. Mandy, Jerry e o líder deles, Kenny, estavam levando-os de Portland para Boston para buscar comprimidos. Jordan nunca se esqueceria do rugido das motos velozes se afastando, abandonando-os para morrerem na beira da estrada.

    Um nó se formou em sua garganta quando ele avistou a bainha da faca no chão. Ele a reconheceu imediatamente. Nunca tinha visto Mandy sem a faca comprida pendurada no cinto.

    Como era possível que Mandy estivesse ali? E por quê? Abby devia ter esbarrado nela em algum lugar e oferecido estadia. Era típico da irmã ser tão misericordiosa. Era típico de Abby, também, fazer algo tão idiota.

    Uma onda fria de medo o atravessou. Mandy devia ter esfaqueado Abby. Ela era capaz de tudo. Ele examinou a sala e, felizmente, não viu sangue, mas isto não significava que Abby estivesse segura.

    Ele se levantou em um salto e, imediatamente, perdeu o equilíbrio, desabando sobre um dos joelhos. Ele fixou o olhar em um quadro acima do piano. Era uma aquarela de barcos à vela no Porto Castine. Usando o quadro como âncora visual, ele se levantou e cambaleou como se tivesse bebido lata de cerveja inteira, mas conseguiu se manter de pé.

    Ir para a janela era um desperdício de tempo. Ele não conseguiria defender Abby com os olhos. Ele precisava de uma arma.

    Ele foi para a cozinha para se armar com uma faca. Atravessando ondas de tontura e náusea, deu três passos cambaleantes até a parede entre o corredor e a sala de estar. Dali, raspando um dos ombros na parede, caminhou com dificuldade até o corredor, onde parou para mirar sua próxima meta, a bancada da cozinha. Se conseguisse chegar até a bancada, teria um apoio constante até a gaveta das facas. Na gaveta, tinha um cutelo para carne que a mãe sempre usava para cortar frango.

    Ele se inclinou para a frente e agarrou a bancada. Mão sobre mão, passo a passo, foi contornando a bancada, passando pelo fogão, o armário dos temperos, a gaveta das cebolas, a torradeira ao lado, um caco de vidro, uma caixa de cereais vazia. A jornada parecia sem fim.

    Com um puxão, abriu a gaveta das facas e engoliu um soluço. O cutelo não estava ali. As facas para carne também tinham sumido. Ele percebeu que bandoleiros tinham levado todas as facas grandes.

    Ele pegou um faquinha, que tinha uma lâmina estreita, de cerca de sete centímetros. Era a mais afiada da gaveta. Melhor que nada, suspirou.

    Segurando a faca, deu um passo adiante em direção à porta da entrada e cambaleou. Balançando os braços para manter o equilíbrio, foi para a esquerda. Ele passou o peso de um pé para o outro, tombou para a direita e se projetou para frente. Desabando sobre o chão, bateu um dos ombros com força.

    Jordan ficou de joelhos e engatinhou em ziguezague, desviando-se dos cacos de vidro espalhados no chão. Ao alcançar a porta, tateou à procura da maçaneta e logo afastou a mão quando a palma encontrou o vidro denteado da janela estilhaçada. O sangue gotejou pelo braço dele.

    Ele transferiu a faca para a mão cortada e apertou o cabo para estancar o fluxo de sangue. Em um único movimento, ele se levantou e escancarou a porta.

    — Jordie!

    Ele saltou para trás. Abby se pôs na frente dele. O rosto dela estava encovado. A sujeira craquelava sua pele queimada. Os cachos ruivos dela estavam sem vida. Ela parecia semi morta. Um menino também estava ao lado dela na varanda, com uma outra menina da idade de Abby. O olhar da menina era vazio, como se estivesse em choque, uma tristeza profunda se refletia em seus olhos.

    Nesse exato momento, Mandy desceu a Pearl Street em sua moto.

    Jordan soltou:

    — A Mandy te machucou?

    — Me machucou? — Abby sacudiu a cabeça. — Ela salvou as nossas vidas!

    ­— O quê? — a faca caiu da mão dele, e o menino novo desceu os degraus galopando até a calçada. — A gangue da Mandy nos deixou morrendo — disse Jordan.

    O rosto da irmã assumiu um ar de preocupação.

    — A Mandy deu os comprimidos para a gente.

    O que o deixou espantado foram os olhos de Abby. Pela primeira vez em semanas, estavam brilhantes e cheios de otimismo. Ela devia ter sido enganada pela Mandy.

    — Não me interessa o que ela deu para a gente. Não devemos confiar nela.

    Abby pegou a mão dele e inspecionou o corte. Na base do polegar, tinha cerca de cinco centímetros. Ele fez uma careta enquanto ela procurava por sinais de corpos estranhos, como cacos de vidro, com a ponta de um dos dedos.

    — Precisamos limpar e fazer um curativo nisso.

    — Onde a Mandy foi? — ele perguntou.

    — Foi esconder a moto.

    — Abby, ela é perigosa.

    Ela franziu o cenho.

    — Aconteceu muita coisa de que você precisa saber.

    — Quem são eles? — ele perguntou, apontando para os desconhecidos.

    Abby apontou com a cabeça para o menino na calçada.

    — Conheci o Timmy a caminho do aeroporto, e você se lembra da Mel.

    — Mel? — Jordan ficou de queixo caído.

    Aquela era a mesma menina que dava uma chave de braço nele até que implorasse por perdão? Mel Ladwick, a melhor amiga de Abby, que ele adorava provocar para ver se conseguia ganhar dela, embora Mel sempre o alcançasse. Ela corria como um leão. Agora, Mel era uma versão fantasmagórica de si mesma. Havia algo muito errado com ela.

    Abby o segurou pelo cotovelo.

    — Vamos para a cozinha.

    Ele resistiu ao esforço dela para virá-lo e se pôs à frente na varanda. O céu acima era sombrio e ainda mais escuro ao sul. A vizinhança estava silenciosa e deserta. Jordan tinha a sensação estranha de que uma grande bomba explodira e todos tinham fugido. Tossindo devido à fumaça, ele olhou desanimado para a rua. Ele não sabia por que Mandy ia esconder a moto e não estava interessado. Antes que ela voltasse, ele teria que dar uma palavrinha com a irmã a respeito de confiar nas pessoas erradas.

    CAPÍTULO TRÊS

    Abby tinha três problemas imediatos.

    Desde que tinha escapado por um triz da facada de Mandy, Mel andava atrás de Abby como uma sombra e não dizia uma única palavra. Abby já tinha visto crianças em choque. Alguns paravam de comer, outros choravam sem parar e alguns, como Mel, refugiavam-se no próprio mundo. A melhor abordagem, Abby achava, era se afastar e dar tempo a Mel para se recuperar.

    Aparentemente, Jordan tinha esquecido tudo que ela

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