História do Direito: Ascensão e Degeneração do Pensamento Jurídico
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História do Direito - César Maximiano Duarte
Sumário
CAPA
INTRODUÇÃO
TOMO I
– O PENSAMENTO JURÍDICO CLÁSSICO –
TÍTULO I: A GRÉCIA ANTIGA
Capítulo 1. O Período Arcaico
Capítulo 2. A Filosofia de Platão
I. O Sócrates de Platão
II. A Filosofia do Direito de Platão
Capítulo 3. A Filosofia de Aristóteles
I. Ética em Aristóteles
II. Reflexão prática aristotélica: a obtenção do Justo
III. Indivíduo e Sociedade
IV. Distinção entre Direito, Justiça e Moral
TÍTULO 2: O DIREITO ROMANO
Capítulo 1. Ihering, Modernidade e Direito Romano
I. Substância, Forma e Matéria em Aristóteles
II. Causas em Aristóteles
III. Direito, Filosofia e Ciência
IV. Indícios da necessidade de retomada da via antiga
V. O Estabelecimento das regras de direito
VI. Crítica a Ihering
Capítulo 2. Aspectos históricos relevantes
I. Considerações preliminares
II. A Lei das XII Tábuas
III. Evolução e sistematização do Direito
A Era dos Pontífices
A era dos jurisconsultos
A interpretação jurídica
As leis escritas
i. A Gênese
ii. Semântica
iii. Obediência às leis
iv. Método de derivação da lei natural
v. Aceitabilidade das leis
TÍTULO 3: BAIXA IDADE MÉDIA
Capítulo 1. Santo Agostinho
I. Síntese do pensamento agostiniano
II. As leis humanas em Agostinho
i. Obediência às leis
ii. Desobediência às leis
iii. As bases da (des)obediência às leis profanas
III. Direito agostiniano versus direito grego clássico
i. A incapacidade de formulação da Justiça
ii. A exigência de perfeição moral
iii. (In)aptidão para a sanção
IV. O conhecimento jurídico em Agostinho
i. Fontes do Direito
ii. Fins do Direito
iii. Alcance do Direito
Capítulo 2. Santo Tomás de Aquino
I. Informações iniciais acerca de Santo Tomás de Aquino
i. História
ii. Obras de São Tomás de Aquino
iii. Proêmio à filosofia tomista
iv. O Direito e a Política em Tomás de Aquino
II. As obras de Aquino
III. O direito natural tomista
i. A Fonte das fontes
ii. Características do direito natural
iii. A lei positiva na doutrina de Direito Natural
IV. Modo de extração do Direito
i. Razão prática
ii. A busca pelas causas finais
iii. Os tipos de bens
iv. A bem-aventurança
v. Aplicação no mundo jurídico
vi. Propedêutica
vi’. O Trivium
vi’’. Valor das línguas originais
vi’’’. Semântica
vi’’’’. Lógica
vi’’’’’. A Ciência: um estudo de caso
vii. O Método: a Dialética Inquisitiva
vii’. A qualificação da dialética
vii’’. (Mais) críticas à sistemática atual
vii’’’. O bom juiz
TOMO II
– DEGENERAÇÃO DO PENSAMENTO JURÍDICO –
TÍTULO I: O CONTRAPONTO AO TOMISMO
Capítulo 1. A Escola Franciscana
I. São Francisco de Assis
II. A Ordem Franciscana
III. O ponto de inflexão
i. Duns Escoto
ii. Guilherme de Ockham
ii’. Bases do nominalismo e seus reflexos
ii’’. Direitos naturais versus
direitos subjetivos
Capítulo 2. Martinho Lutero e a Reforma Protestante
I. O constructo jurídico luterano
II. A equidade
luterana
Capítulo 3. João Calvino
I. Calvino e sua proposta de ética social
II. Reflexos do calvinismo no Direito
Capítulo 4. A Nova Escolástica
I. A criação de um novo Direito Natural
Capítulo 5. O Humanismo
I. O Estoicismo
II. O Ceticismo
III. O Epicurismo
TÍTULO II: A base do pensamento jurídico moderno
Capítulo 1. Uma nova
teoria das fontes
Capítulo 2. O renascimento do Direito Romano
Capítulo 3. A sistematização do Direito
Capítulo 4. O surgimento de um novo Direito Natural
TÍTULO III: O Positivismo Jurídico
Capítulo 1. As bases do positivismo
Capítulo 2. O positivismo jurídico de Hans Kelsen
TÍTULO IV: O(S) NEOCONSTITUCIONALISMO(S)
Capítulo 1. O neoconstitucionalismo no Brasil
Capítulo 2. O Ativismo Judicial
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
SOBRE O AUTOR
SOBRE A OBRA
CONTRACAPA
H
istória do Direito
ascensão e degeneração do pensamento jurídico
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2023 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.
Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
César Maximiano Duarte
H
istória do Direito
ascensão e degeneração do pensamento jurídico
À Lígia e ao Enzo Raphael,
por serem capazes de amar quem tanto se ausenta.
Clama em alta voz, não te detenhas, levanta a tua voz como a trombeta e anuncia ao meu povo a sua transgressão, e à casa de Jacó os seus pecados.
(Isaías, 58, 1)
APRESENTAÇÃO
No ano seguinte à minha formatura, inscrevi-me nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. Regozijava-me de ter feito uma boa faculdade, não só no sentido institucional, cuja fama de onde estudei sempre foi a de ser a melhor faculdade de Direito da região, mas também no sentido subjetivo, uma vez que eu havia me dedicado exemplarmente, empregando todo o esmero que me fora possível para aprender e apreender o Direito.
Minha primeira contratação como advogado veio de um amigo. Ele me contratou para que eu desse um parecer sobre um processo que tramitava em uma das varas federais de nossa cidade. Retirei os autos (até então físicos) em carga e os estudei com bastante critério.
Recém-formado que era, apliquei o quid iuris que havia aprendido na faculdade: a arte do silogismo, sendo a premissa maior a lei, a menor o caso concreto, de que derivaria a conclusão.
Entreguei, então, um parecer exemplar ao meu primeiro cliente. Nele, descrevi o fato, apresentei os dispositivos legais aplicáveis e concluí afirmando as possibilidades que o juiz tinha de julgar, bem como as hipóteses bizantinas, para não dizer impossíveis, de conclusão jurisdicional.
Para o meu total espanto (e descrédito frente ao meu primeiro cliente, que era meu amigo), o juiz federal da causa julgou conforme uma das bizantinas
hipóteses que eu havia enumerado, em total confronto à legislação aplicável ao caso.
De início, pensei que se tratava de um erro
pontual. Afinal de contas, a minha visão acerca de juízes e promotores era a melhor possível: um concurso público tão difícil só poderia selecionar os melhores, e os melhores, obviamente, não cometeriam erros tão grosseiros como aquele que eu havia presenciado.
Com o passar dos anos, pude perceber que a situação que acabei de descrever era sistêmica. Cheguei a aventar a hipótese de que se tratava dos auxiliares de juízes e promotores que estavam a cometer os crassos erros
. Como o tempo tudo solve e tudo mostra, acabei por descobrir que tais ações eram deliberadas, conscientes, advindas da própria autoridade: comecei a utilizar os embargos de declaração para questionar os juízes acerca de seus motivos decisionais. Afirmo que até hoje não recebi resposta alguma, em nenhum dos casos em que atuei. Ao contrário, um deles ameaçou aplicar-me multa caso eu continuasse questionando; outro chegou a afirmar que os meus embargos eram inquisitórios
, colocando-se como uma pobre vítima de um advogado que lhe exigia explicações.
A pergunta que restava era: por quê? Por que os juízes não cumpriam as leis? Por que, mesmo não cumprindo as leis, teimavam em não apresentar um embasamento cognitiva e logicamente aceitável?
Adquiri um livro chamado A Teoria dos Jogos aplicada ao Processo Penal, do ilustre professor Alexandre Morais da Rosa. Nele, o autor, que é juiz de Direito do estado de Santa Catarina, expõe a existência de vieses e heurísticas dos julgadores e destrincha uma miríade de possibilidades, de cunho subjetivo, que podem vir a afetar o juízo de valor das autoridades jurídicas do país.
Não me contentei. E não me contentei porque a Justiça não pode estar nas mãos de alguém que julga ao seu bel prazer, negando-se até a explicar os motivos de suas decisões. Não me contentei porque o professor Alexandre Morais da Rosa explicava uma situação posta, e isso não era suficiente. Sua obra explicava-me com maestria os impulsos internos dos julgadores dentro do processo penal, mas não me explicava o porquê de esses juízes terem o poder de agir dessa forma autoritária; não explicava como esses juízes sentem-se seguros para agir como reis, mesmo dentro de um estado (em tese) democrático (que deveria ser) de Direito.
Na época em que lia a citada obra, impulsionado pela incontrolável sede de saber os motivos dessa aberração institucional instaurada, inscrevi-me em um curso de pós-graduação lato sensu, cujo objeto de estudo eram os "Problemas Fenomenológicos e [a] Hermenêutica". Foi nesse curso, ao estudar as bases da fenomenologia, no exato momento em que eu estudava os fundamentos históricos e filosóficos das teorias da sensibilidade em Hume, que tive o primeiro contato aprofundado com aquilo que é chamado de via antiqua.
Comecei a ler sobre Sócrates, Platão e Aristóteles. Encantado, comecei a ler diretamente as obras de Platão e Aristóteles. Enxerguei a incomensurável riqueza existente nos ensinamentos aristotélicos, e isso me levou inarredável e diretamente a Santo Tomás de Aquino e sua Suma Teológica.
Lembro-me de ter permanecido em êxtase: eu havia encontrado uma preciosidade de valor imensurável. A arte do Direito estava toda ali, intacta. O êxtase, então, começou a dar lugar para dois únicos questionamentos: como foi que eu, um estudante aplicado que fui durante o curso de Direito, jamais havia tido contato com aquele tesouro? A segunda questão, de ordem política, era: por que, céus, a arte do Direito não estava presente em nenhum curso de Direito contemporâneo?
Cuidado com o que desejas
— diz o ditado. Em profunda conversa com um amigo, professor de Filosofia, foram-me indicadas as obras do professor Michel Villey. O falecido professor francês não só respondeu às minhas duas perguntas, como me mostrou a marcha histórica da formação do pensamento jurídico moderno, apontando, passo a passo, as ocorrências filosóficas que culminaram nessa excrescência que a maioria de hoje equivocadamente chama de Direito.
Pois bem, o pano de fundo desta obra é um mundo pós-individualista, que relativiza história, religião, filosofia, gênero e, não falta muito, a própria realidade. No ambiente jurídico, houve a relativização da doutrina, da dogmática, das leis, das jurisprudências. Cada juiz julga a seu talante, despudoradamente, negando-se a explicar suas decisões. O transviado Ministério Público deixou de ser dominus litis, titular da ação penal, para assumir a figura de um órgão meramente acusador, punitivista; também deixou de ser o custos legis, ou fiscal da lei, pois, no seu afã de promover condenações em massa, muitas vezes transgrede as leis postas. A maioria dos advogados pasma-se com a situação, mas não sabe ao certo o que está de fato ocorrendo, buscando em vão, no próprio sistema que permite a existência desse autoritarismo institucional, alguma solução.
A situação atual não nasceu do nada, não se principiou num rompante. Trata-se do resultado de uma querela de filosofias opostas, cuja origem remonta o choque entre Direito e Poder na obra Antígona, de Sófocles, corporificada na narrativa platônica acerca da clássica discussão entre Trasímaco e Sócrates sobre o significado de Justiça, na qual Trasímaco, em contraposição à ideia metafísica do grande filósofo, afirmara que justiça não é outra coisa que o interesse do mais forte
¹.
O primeiro passo para nos libertarmos dos grilhões que a modernidade impõe ao Direito é o conhecimento, é conhecer o que o Direito já foi e no que ele se transformou. É somente após a obtenção dessa consciência histórica que seremos capazes de propor soluções para os problemas que nos afligem.
Este livro, portanto, é o primeiro de um conjunto que pretende, em um primeiro momento, desnudar a situação do Direito e as causas da degeneração do pensamento jurídico e, em um segundo momento, apresentar uma teoria que, ao menos em tese, consiga ofertar uma solução capaz de atingir a raiz dos problemas contemporâneos do Direito, colocando-o novamente no trilho do rico pensamento jurídico clássico, ressignificando-o por meio de sua (re)espiritualização.
Esta obra, propedêutica que é, tem como intenção trazer ao lume do leitor a ascensão e a queda do pensamento jurídico, e, o que é mais importante, as causas que nos trouxeram até o presente estado de coisas.
¹ PLATÃO. A República. Tradução de Ciro Mioranza. São Paulo: Lafonte, 2017. p. 25.
Introdução
O conjunto de livros do qual esta obra faz parte tem a ousadia de apresentar ao leitor uma forma diferente de extrair o Direito. É de se dizer diferente porque nova não é: baseada na filosofia aristotélico-tomista, fora extraída da interpretação pessoal do autor acerca das obras de Aristóteles, mormente da sua Ética a Nicômaco, e das de São Tomás de Aquino, em especial do seu O Ser e o Ente e da sua Suma Teológica.
Para nos tornarmos capazes de extrair o Direito de uma forma diferente, é necessária uma completa mudança de paradigma. Primeiro de tudo, é preciso perceber que aquilo que atualmente se aprende nos bancos da faculdade não é o Direito, mas sim um curso técnico de legislação aplicada.
A prova disso é de fácil alcance: o que é o Direito? Se o leitor respondeu sem pestanejar, de forma direta e objetiva, então há de se dizer que está livre da adjetivação de técnico. Agora, se o leitor pestanejou para responder, ou se, como mais de 90% dos bacharéis, ficou sem resposta, então o leitor, assim como o autor, é só mais um produto do sistema que agrilhoou o Direito no cárcere da pobreza intelectual, e, para além, espiritual.
Para desfazer esse nó górdio, é necessário, primeiramente, compreender, em linhas gerais, o que é o Direito. Nesse intuito, a obra será dividida em livros, sendo este o primeiro deles, referente à história do pensamento jurídico.
A primeira parte deste livro pretende abordar a formação do pensamento jurídico clássico, que se deu dos gregos antigos até São Tomás de Aquino — parte da história que, para este autor, guarda a essência do Direito.
Na segunda parte do volume histórico, estudar-se-á a decadência do pensamento jurídico, que se dá ainda na escolástica medieval, e perdura até os dias atuais.
Durante este livro não faltará flerte à Filosofia, pois é por meio da historicidade que a obra pretende chegar ao seu pórtico, momento de se adentrar na segunda obra da coleção.
Já no livro denominado Teoria Substancial do Direito: introdução, filosofia, teologia e prática, é sob os auspícios da Filosofia que seu campo de atuação há de ser apresentado, e, ainda obnubilados pela pureza de sua sublimidade, pensaremos no Direito, momento em que poderemos compreender filosoficamente a sua definição, suas fontes e sua finalidade. Pensaremos também na Justiça e na sua ligação com o Direito.
Depois de já esclarecido, primeiramente, por meio da história, o que é e o que não é o Direito, mergulhando em seu conteúdo puro, secundariamente, por intermédio da Filosofia, há de se perceber que o pensamento filosófico é grande demais para ser encarcerado em um sistema, etéreo demais para descer
ao mundo fenomenológico, ao menos tal qual se apresenta nos planos não sensíveis.
Será nesse ponto da coleção que se perceberá necessário o cometimento de um crime filosófico: teremos que conspurcar a Filosofia, no intuito de tornar seu corpo denso o suficiente para cair
no mundo físico. É em tal ponto que começaremos a tratar, de modo lato, da doutrina.
De volta ao solo do real, com a ideia da doutrina em mãos, já cientes os leitores dos detalhes do cárcere no qual se encontra recluso o Direito, começar-se-á a pensá-lo a partir da cosmovisão, ou seja, da observação do cosmo. Será apresentada, então, a Teoria Substancial do Direito, verdadeira quebra de paradigmas que se dará a partir da substanciação, da metasubstanciação e da transmetasubstanciação de nosso objeto de estudo, que, ao final, deixará de ser o Direito, e passará a ser a existência jurídica como um todo, sendo o Direito apenas a sua manifestação no mundo fenomênico.
O que se pretende, a partir desses passos, é retirar o Direito de seus grilhões contingentes, colocando-o de volta num eixo perene; é dar novamente ao Direito o espírito que sempre lhe pertenceu.
Num terceiro momento, a segunda obra tratará de um tema crucial para a compreensão holística da substanciação do Direito: a história e a filosofia são pontos de um percurso que culmina em um único ponto: a Teologia. Tratar-se-á, brevemente, daquilo que é chamado de causa primeira, sob o prisma de São Tomás de Aquino, causa da qual deriva toda a criação, e, por consequência, a existência jurídica, tanto física (o Direito) quanto metafísica (a Justiça) e transmetafisicamente (o Justo).
De momento, basta a ciência de que, ao final deste livro histórico, saber-se-á exatamente o que é o Direito, em que ele está agrilhoado, como ele está acorrentado e quem (ou o quê) o acorrentou.
Iniciemos, sem mais delongas, nossos estudos históricos, que serão a firme fundação para construções intelectuais mais sofisticadas.
Quadra estrutura de tópicosTOMO I
– O PENSAMENTO JURÍDICO CLÁSSICO –
A Formação do Direito Greco-Romano
Título I
A Grécia Antiga
A filosofia grega antiga é tão valorosa que reluz até os dias de hoje. Não à toa, portanto, que tal filosofia fora capaz de seduzir as duas grandes religiões de maior relevo mundial durante a Idade Média: o cristianismo e o islamismo, este primeiro que aquele.
Enquanto o cristianismo, muito por influência da filosofia agostiniana², encastelava-se nas Sagradas Escrituras, o islão mantinha bibliotecas abertas nas principais cidades que governava, cultivando a filosofia grega antiga.
A expansão do islamismo pela África, parte da Ásia e Europa começou a preocupar a Igreja Católica, que, como resposta, lançou mão das Cruzadas, expedições militares organizadas entre os anos de 1.095 e 1.291, cujo objetivo era combater o domínio islâmico na então chamada Terra Santa.
Houve um sábio cristão, contudo, que percebeu que a expansão do islão não se relacionava somente à expansão territorial. De algum modo, essa se dava como um reflexo de outra expansão: a cultural. Tomás de Aquino era seu nome.
Consciente da importância da filosofia grega antiga, Aquino propôs o casamento entre a filosofia religiosa cristã e a filosofia aristotélica. Sua tentativa, embora tenha tido algum pouco sucesso no século seguinte à sua morte, não foi, como um todo, acolhida pelo clero. Em seu lugar, surge, no século XVI, o protestantismo, retrocedendo aos ideais agostinianos.
Mas por que a filosofia grega sempre foi considerada inspiradora?
As condições da vida política e social de Atenas foram, sem dúvida, cruciais para o desenvolvimento de uma filosofia tão sublime. Já nos séculos V e VI a.C., pôde-se observar uma democracia plena na cidade-mãe da filosofia antiga.
Foi na Grécia antiga que surgiu o conceito de cidadania, ou seja, da participação do indivíduo pertencente a uma polis (cidade-estado grega) na gestão da cidade, seja pela participação direta na discussão acerca dos rumos da cidade, que se dava na Ágora, seja pela possibilidade de participar ativamente da vida judiciária, tornando-se um magistrado.
A Grécia antiga, portanto, democratizou a política e o direito ao trazê-los ao domínio de todos³. Dada essa democratização, surgiram inúmeros oradores, que guiavam o povo mais pelo dom da oratória que pela técnica jurídica.
A vida política da Grécia antiga era pujante. Até mesmo os filósofos só eram assim considerados por estarem inseridos na vida cívica grega. Não se tratava de velhos sábios ermitões, mas sim de cidadãos que passavam os dias a dialogar com as mais variadas pessoas.
É aqui, inclusive, que faremos a primeira comparação com o nosso atual e agrilhoado direito: a filosofia grega antiga, responsável pelo nascimento da teoria do direito natural, priorizava a dialética, ou seja, o choque de ideias por meio do diálogo, pois acreditava-se que as discussões tendiam a lançar luz a questões relevantes. A realidade do sistema judiciário de hoje é outra: salvo em institutos específicos, a exemplo do Tribunal do Júri, não se prioriza (aliás, evita-se) a dialética. Juízes fogem dela como o diabo foge da cruz, e o motivo será translucidado no decorrer desta obra.
A filosofia grega antiga é o berço não só das filosofias que consideraremos salutares para o Direito, mas é nela que se encontram também os germes do positivismo jurídico, do relativismo e até do sociologismo. Somos capazes de encontrar, na filosofia grega antiga, as raízes da fenomenologia de Edmund Husserl, e, por consequência, do existencialismo de Jean-Paul Sartre. De alguma forma, parece-nos que tudo o que é de filosoficamente relevante fora, ao menos de modo superficial, objeto da filosofia grega antiga.
Dividiremos o estudo de tal filosofia em três, tratando, primeiramente, de seu período arcaico, seguido pelo estudo da filosofia de Platão e de Aristóteles. Nesse meio, abordaremos, ainda, um importante acontecimento político-social, que culminou no desinteresse da população pela vida cívica e no surgimento de uma escola filosófica que servirá como uma das bases do pensamento jurídico moderno.
Capítulo 1. O Período Arcaico
Entre os anos 800 e 500 a.C., o povo grego iniciou a colonização da área costeira da bacia do mar Mediterrâneo e do mar Negro.
O que chama atenção na colonização grega é a presença de um planejamento preciso: da escolha do local a ser colonizado à nomeação do comandante da expedição, sendo que este último, ao chegar ao local pretendido, tornar-se-ia seu governante.
Antes da partida, o comandante consultava o Oráculo de Apolo em Delfos, o que demonstra a forte ligação dos gregos arcaicos com o aspecto religioso e devocional, natural de uma época em que o conhecimento acerca do mundo era extremamente limitado.
Como consequência da colonização, surgiu a expansão comercial entre as colônias e a metrópole, e entre as colônias e outras localidades. Algumas colônias gregas começaram a funcionar essencialmente como locais para a prática do comércio.
Como consequência do comércio, houve o fomento da indústria, em que Corinto e Atenas tornaram-se grandes produtoras de cerâmica. Não demorou muito para surgir uma moeda única, que se espalhou por toda a Grécia.
Como em todo lugar do mundo, existiam duas classes sociais distintas: uma classe mais abastada, proprietária das terras, e outra, menos abastada, constituída pelos camponeses que laboravam nas terras. Como a Grécia tornou-se uma grande exportadora de vinho e azeite, houve o surgimento de uma nova classe, a saber, a dos plutocratas, composta por indivíduos oriundos de classes inferiores, mas que enriqueciam graças às possibilidades comerciais e industriais.
Os plutocratas procuravam comprar terras, e os nobres procuravam refrear a ascensão da classe camponesa. Diante desses conflitos sociais que assolavam o século VII a.C., as polis procuravam meios pacíficos de solução desses conflitos. A ideia principal era a de nomear homens de reputação ilibada para criarem códigos de leis para as polis. Como as cidades-estado eram, em sua maioria, dotadas de muros (nómoi), essas regras, criadas para a polis, eram chamadas de nómos, refletindo a ideia de que tratavam de regras dotadas de força e vigor entre os muros da cidade-estado. O termo nómos é a etimologia da palavra norma.
Em Atenas, os legisladores mais conhecidos foram Drácon, Sólon e Clístenes. Drácon, extremamente severo, defendia que a punição para qualquer forma de roubo ou furto era a morte. Seu código, chamado draconiano, recebeu, por Dêmates, a pecha de não ter sido escrito a tinta, senão a sangue.
Para além do surgimento da nómos, a vida abastada e economicamente tranquila de alguns membros das classes superiores acabou lhes proporcionando a possibilidade de se afastarem dos negócios, dedicando-se, assim, a uma vida contemplativa