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Provência - Pio Furtado
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Provência - Pio Furtado
E-book359 páginas4 horas

Provência - Pio Furtado

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Sobre este e-book

Um rio solitário e peculiar esquecido no coração do agreste. Se, a ele, algum desavisado lhe voltar às costas, num trompaço, é já que cairá no injurioso e ultrajante castigo do semiárido sertão. Um homem rude e ignorante que domina as águas. Ao entorno dele, por sua abonação e consentimento, surge um arruado que, mesmo ante as agruras e necessidades, vai tomando forma de aldeamento. Ajuntamento de fugidos da sede e da miséria – resignados, bem-ouvidos e longânimos que se valem, na mesma tampa, da religiosidade e do misticismo: beatitude e sectarismo. O cangaço de valentias, de maldades e de contradições impondo respeito, medo e terror aos ribeirinhos, aos longínquos povoamentos e aos insulares de terras esturricadas. Vidas impossíveis, gentes sem possibilidades. Um improvável amor que, como a flor do mandacaru, brota no âmago dos espinhos e dos acúleos. Folclorísticos personagens: sofridos, endoidecidos, desamparados, irremediados que têm, em comum, as marcas da seca, da pobreza e da insipiência. Estes os componentes e os comemorativos deste novo e fascinante romance Provência, do escritor Pio Furtado.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de jun. de 2023
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    Provência - Pio Furtado - Pio Furtado

    Pio Furtado

    Academia Brasileira de Médicos Escritores

    Academia Rio-Grandense de Letras

    © by Pio Furtado

    Direitos autorais reservados

    Editoração eletrônica e Capa: Willian Castro (a partir de imagens free disponíveis na internet)

    Revisão: Ana Carolina Cezimbra

    Arquivo digitado e corrigido pelo autor, com revisão final do mesmo,

    autorizando a impressão da obra

    Editor: Rossyr Berny

    Contato com o autor: jpiofurtado@gmail.com

    Para conhecer mais a Editora Alcance acesse:

    www.editoraalcance.com.br

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    ______________________________________________________________

    F992p Furtado, José Pio Rodrigues.

    Provência / Pio Furtado. – Porto Alegre: Alcance, 2023.

    1. Literatura Brasileira. 2. Romances Brasileiros. I. Título

    CDD 869.937

    ______________________________________________________________

    Bibliotecária responsável: Daniela S. Christ CRB 10/2362

    ISBN: 978-85-9537-096-8

    Para José Fernando Rodrigues Furtado, sexto irmão e sétimo filho – a expressão das palavras solicitude e prestatividade.

    Notas do autor

    Esta não pretende ser uma obra antropogeográfica, senão que se vale dela para realçar o ambiente das personagens, dentro do conceito que tenho, ou procuro manter, ao escrever histórias sobre pessoas – o ser humano à frente. É, antes, uma transposição da vida, que, à época em que se situa a trama, se vivia. (A arte como permutação da vida, em oposição a arte meramente abstrata). O ambiente, espero, há de dar-lhe a cor, os matizes, os substratos e a estrutura para o movimento dos protagonistas, dos agentes e dos sujeitos da história.

    Vali-me da vivência estreita com o valoroso povo nordestino, sobretudo na minha infância-juventude, quando, por dezesseis anos, morei em Brasília, filho do Deputado Federal pelo Rio Grande do Sul, Cid Furtado. Extasiava-me, naqueles recuados idos, ouvindo as conversas de meu saudosíssimo pai com o Marechal Juarez Távora. Cearense, do Partido Democrata Cristão pelo extinto Estado da Guanabara, fora um dos 18 do Forte de Copacabana e, à época, estava Ministro da Viação e Obras Públicas, do Governo do presidente Humberto de Alencar Castelo Branco – com o qual também convivi, se bem que muito pouco. O Marechal, no curso dos anos vinte, após a epopeia da Praia de Copacabana, seguiu com o Movimento Tenentista com a Coluna Prestes, na sua marcha de vinte e cinco mil quilômetros pelo sertão. Esta andança se deu até o rompimento deles, quando Luís Carlos Prestes enveredou de vez para o comunismo. Contava ele, o velho herói, incríveis histórias dos nordestinos, do cangaço e da vida na caatinga.

    Mesmo que este desambicioso texto possa ter algum mínimo valor documental, até para torná-lo verossímil, volto a esperar que esta ficcional sociedade criada dentro do seu tempo, escape desta fatalidade documentacional. Nesse fim, procurei situar o enredo num tempo fictício fugindo do domínio histórico, mas que este corresse atrás do primeiro a torná-lo presumível e realizável. (Talvez que isto, tais premissas, ajudem a definir o estilo pós-moderno que intento na minha modesta ficção, como bem a caracterizou o brilhante crítico literário, professor Eduardo Jablonski – a quem estou para sempre grato – no livro: Pós-modernidade em Pio Furtado – Editora Alcance, 2021). Destarte, então, que seja este presente trabalho de ordem eminentemente crítica um documento humano como ele, humildemente, quisera ser.

    Aqui intento colocar o vocabulário do sertanejo rude como reflexo do meio onde vive. E, algum neologismo, não para justificar a minha ignorância linguística de léxico e de vernáculos, mas, antes, para exprimir a criatividade popular. (Ah, os neologismos! Por vezes famigerados recursos dos escreventes que não acham, nos seus acervos pessoais, as palavras adequadas a expressar o que sentem. Se virassem todos verbetes nos dicionários, aonde iria parar a nossa pobre língua?). O vocabulário regional, além de emprestar verossimilhança, foi pensado e pesado para dar sonoridade e ritmo à narrativa. Deliberei também, além da linguagem popular do sertanejo, melódica por si só, aproveitar arcaísmos e outros regionalismos – então vai por aí a narrativa, como realmente fala o homem do agreste, como se dá a oralidade mais funda do sertão. E não se tome por um falar errado, senão que um legítimo dialeto brasileiro. Ah! A não esquecer, a trama vai contada por mim e, de vez em vez, pelos personagens que, em algum momento, assim desejaram – dei-lhes esta liberdade de expressão.

    Submeto-lhes, portanto, caríssimos leitores – pronto a qualquer crítica – uma obra situada na região fitogeográfica fictícia da caatinga, que, no fim, representa o antigo nordeste brasileiro, desértico, povoado por arruados, arraiais indistinguíveis e pequenos vilarejos, ou por moradores isolados, insulares, ermitões perdidos no tempo e no espaço. Numa imponderável densidade demográfica, pontilhados de grupamentos humanos, às vezes representados por uma única e numerosa família ao Deus-dará. De longe em muito longe, uma usina para o beneficiamento de alguma cultura, um pouco maior do que a de subsistência: milho, mandioca, babaçu, cana-de-açúcar. E a pecuária extensiva, caprina e do rústico zebu.

    Fica aqui uma homenagem a muitos amigos de infância/adolescência e outros tantos na idade adulta, nordestinos da mais pura raiz.

    PIO FURTADO

    Academia Brasileira de Médicos Escritores

    Academia Rio-Grandense de Letras

    Vai o remo cavando a água. Cadenciosa e vigorosa escavação de um lado e de outro da rústica canoa de araucária que sobrenada a voluntariosa corrente; mas não se esburacam as águas e nem a amolada quilha, estendida da popa à proa, lhes produzem cicatrizes, que rio a tudo encobre. Vai o canoeiro a canoar, bracejando terra a terra; é cabra de pêia¹, escolado autodidata nas artes náuticas, não fosse, fosse bocoió, tinha coragem não, de peitar aquele aguaceiro. Vai o canoeiro a canoeirar, passando a vau no varrer dos remos, o vento rasante, na borda da igara, levanta uma meruginha, como um chuvisco, que lhe faz o molhe-molhe do corpo. Como um garapeiro velho, às vezes até se manga daquela torrente, porém aprendeu a respeitá-lo: quando não está bom dos chavelhos...

    Rio Corumbé, por vezes chamado pelo imaginário místico e crente dos caboclos de Rio das Santas, que muito já as viram andejando sobre as águas, no palpitar das estrelas e com a lua a brilhar nas cálidas noites dos estirados estios. Borbotão caudaloso, de cabeceiras paridas de um manancial nos distantes altos da Serra da Castanheira. No topo daquelas montanhas, possivelmente o lugar mais tranquilo do mundo, não se ouve sequer o pio de um maçarico-solitário, o cainho de um cismado lobo-guará ou o ressonar de uma madraceira e entorpecida preguiça. Aos acasos, a darem acordo de si e fazerem constar, ramalham as esparsas árvores, em conversas sussurradas, por persuasão do vento que lhes drapeja as folhas. Nos seus píncaros a serra é nua, rochosa e acidentada; mais abaixo, quando encorpa-se e se fecha a vegetação, e a atmosfera se enriquece de oxigênio, transmutam-se-lhe a flora e a fauna. Então, vem o Rio Corumbé descendo a planície, num suave e flexuoso declive, cruzando por terras generosas e emprestando-lhes fertilidades e abundâncias, a chegar ao sertão, ainda longe do desaguadouro, como uma torrente que, até esse tempo, permanece indomável. Porém, neste globo dominado pelas águas, há desérticos tremendos. Aqui não se faz diferente. Adiante deste, pouco à frente, a dizer a verdade, há o semiárido, o agreste, o áspero, estéril e seco. A Caatinga.

    Caatinga de quase dez por cento do território nacional, o solo raso e pedregoso – teimoso. Lugar onde as poucas nuvens se esfarrapam, somem e desertam, restando por cima o sol. O sol com a sua língua flamejante a lamber o couro, a casca, o envoltório, a crosta, a carapaça, e toda camada externa de qualquer superfície que exista debaixo de si. Vasta região assentada em estratos arbóreo, arbustivo e herbáceo adaptado à secura de meu Deus. E por aí se vai por planaltos, chapadas, depressões, por onde evaporam-se todas as águas, até as das lágrimas dos sertanejos. A grande e esquecida floresta branca dos tupis.

    O igaruana toma o nome de Argão. Provenciano Argão, sucedâneo e aportuguesado de uns Aragãos descaídos, desúteis, esperdiçados e desguaritados, que miscigenavam-se naquelas esquecidas e recônditas grenhas. Que Aragão, nas origens espanholas, por conjúgio com a portuguesa princesa, Isabel de Castela, exerceram grande domínio e influência cristã na Península Ibérica. Todavia, desse primitivo azulado sangue, no nosso protagonista não restara um ínfimo matiz anilado, porque cruzado, mestiçado e hibridado com as seivas indígenas, negras, mamelucas, caboclas e de outros adventícios e forasteiros sangues. Produto final destas variações genéticas, Provenciano Argão era um malparado sertanejo, curtido e assado nas crueldades do sol que lhe dava aos costados, de talho e de banda, numa sina imorredoura. O mesmo sol que lanceta e racha a terra, que faz poalha da argila, que calcina a vegetalidade rasteira, que, fumegante e incendiário, impõe refúgios aos bichos, que, desalmado, faz tressuar os sertanejos e se lhes disseca os corações. Só não se mete com o rio, que é muita água para beber; por umas, no rigor da soalheira, até lhe ocasiona baixios às margens, expondo seus subcutâneos, mas por aí se detém. Como um gafanhoto d’água, o remador tem o rio dentro de si; sabe das suas manhas e artimanhas; para ele o rio é mais cínico do que esperto. Fosse noite, fosse dia, conhecia todos os caminhos da travessia; nela o tempo parecia lhe pertencer; não tinha pressa, apenas remava, embicando a embarcação num ângulo correto com a corrente, controlando-a, com olhar de cisma e a face esfogueada, à viva força dos bíceps. A canoa navega fendendo a corredeira, desaprumando-se de barlavento a sotavento², a chegar num tosco e rudimentar ancoradoiro, trapiche de paus, pedras e calhaus. O serpejante enxurro, naqueles vagos infinitos, naqueles confins da natureza, fronteiras da piedade e últimas da misericórdia, é tão somente um atravessadoiro. Do outro lado, haverão de percorrer uma légua de picadas e carreadouros a chegar a São João de Salta Boi, a maior cidadezinha da região.

    Cruza, o barqueiro, pelos quarenta janeiros (nascido em primeiro do ano), por isso, como todos os primevos, é teimoso e obstinado, agressivo e independente, embora reservado e quietarrão nas emoções. O remar o verteu num membrudo, corpulento e alambazado. O mundo tem lugar determinado para todas as pessoas; o dele é naquele carreiro, travessa de quem precisar. De vício, que algum todos temos, além das pingas, puxava do palheiro e mascava e babava naquela ponta de palha de milho até a brasa ferretoar-lhe os beiços carnudos; de vez em vez, ainda de pito à boca, pigarreava forte, para limpar as chaminés, e engolia, dos esgotos, o negro catarro. Quando em terra firme, repartia uma casinhola de quatro peças com a mulher, Siá Micarina, e a filha-moça, Daudinha, na idade das introdutórias regras. À volta da choça, uma rocinha de milho, um eito de mandioca e algumas extraviadas galinhas-d’angola a darem pintos à voracidade dos carrapateiros, quiriquiris e outros gaviões daquelas despovoadas entranhas. No entorno, muito além das vistas, solidão e espaço. Ali não se medita, e não se sonha – se sobrevive.

    Nas adjacências, naquela compridez de chão, muitas jardas abaixo, um ribeirinho, seu concunhado, que vivia de pescar à linha e de espinhel. Josuélio dos Esteves, o mais assíduo atravessador do Rio das Santas, mas que não pagava, ou, ao Argão, o fazia em peixes, cujas fieiras, à cacunda, carregava-as a vender na São João de Salta Boi: eram, dada a bizarria ou a simpatia das águas, apequenados curimatãs, jaús, abotoados, mandis, acarás-açu, surubins-chicote, tucunarés-pitanga... Sim, tudo pescado pequeno que, naquela torrente, os grandes não se aquerenciavam; os poucos que ficavam tinham doutorices nas iscas, nos cevos e nos engodos. No geral, cedo, depois da piracema, os filhotes maiores davam nas barbatanas a escapar ilesos dos gorgolhões e jorramentos, a não dizer das ferozes e esganadas piranhas-vermelhas. Arre égua! Piranha só é boa no caldo.

    A mulher do pescadeiro, irmã de leite de Siá Micarina, regenerada da vida, tinha a voz chorosa de quem se acostumara às pancadas; fora, por imposições da miséria, mulher-dama de salão, de pernas incendiadas esperando varão, mas, ao depois, passados os fogos da juventude, nos apagões da maturidade de usada puta, acabou arribada do beréu³, pelo apaixonado Josuélio. Depois de muito botar a baratinha no espeto, se foi a Mariéia esconder-se naquela baixa da égua⁴, com o homem que, na tora, a retirara do putame. Com os anos minguaram-se-lhe as roliças carnes, que, na casa das primas, a boia é sempre farta; agora, biguatinga⁵, desmilinguida, era só o buraco e a catinga. Como parira tarde, só tiveram um filho que, por malvadez do destino, talvez tardio castigo, nascera murcho das pernas, condenado a arrastar aquele que não vê o sol, o mané-bobo, e os guizos⁶, pelos polvilhos dos corredouros do mundo. Tolhido das funções andantes, o aleijado molecote de nome Deusino mais a mãe, vivendo a rasto, à unha e à faca, suavam os topetes na perpétua escamação e evisceração de peixes. Naquelas beiradas, naquela vida minguada sem concerto nem solução, juntos compunham o estado-maior da desgraça.

    Por sua vez, Siá Micarina era mais inteirona; ainda não varara as primeiras casas da terceira década; gorda não era, mas tinha lá o seu fornimento, uma corporatura de robustez, como uma bem-criada matrona. Mulher de muitos poucos algodões, vestia-se quase que invariavelmente com tecidos de ganga ou de morim, e nos comprimentos das crentes. Aliás, tinha a fé de uma retirante, devota que era de Santa Luzia e Santo Antão, orgulhava-se da finada mãe que fora da Ordem Terceira da Penitência. Trazia à língua, em qualquer precisão, a oração da Pedra Cristalina:

    Valei-me, minha Pedra Cristalina, no mar achada

    entre o Cálix Bento e a Hóstia Consagrada;

    Treme a terra, mas não treme Nosso Senhor Jesus Cristo

    no alto do Seu altar benquisto.

    Os cabelos puxados para o fulvo escurecido usava-os presos num coque rosquinha ou abarcados por um lenço de linheiro atado sob o queixo. A configuração da face, pintalgada das manchas solares, como nuns cloasma lhe dava um aspecto nublado, de feirante da banca das beterrabas. Aos demais, era lenta de raciocínio e vaga das ideias, o que se coadunava com o falar arrastado e titubeante aos ós-e-ás. Não tiveram, o canoeiro e a sua galega, outros filhos, porque a concubina não segurava criança nos seus miúdos; pra já que eles, ainda girinos, escorregavam para a fossa.

    Há que se apresentar, agora, a filha, porque dela se ocupará alguma parte da história. Dauda Argão. Para todos os fins, efeitos, usos e necessidades, no carinhoso sempre chamada de Daudinha. Rica criaturinha! Uma delicada, atrativa e sedutora flor nascida de um torrão seco, numa rachadura da caatinga. Era, a esta época, moça-menina, pois que naqueles entrementes, nos meios-tempo entre os ruges e as filhas de pano. Nunca que se tivera aos cuidados do toucador, mas não carecia, era bonita como até então não existira nos costados do sertão. Sabia-o, o retalho de espelho que tinha à parede do engegado quartinho a lhe espelhar e refletir a beleza todas as manhãs; sabiam-no os passarinhos que lhe vinham a cantar e sobrevoar nos seus deliciosos passeios matinais; sabiam-no as flores que se inclinavam à sua passagem como se reverenciassem a uma deusa; sabiam todos os viventes que com ela cruzavam. De rígidas e torneadas carnes morenas; de grandes olhos reluzentes que nunca, dia ou noite, a abandonavam; de cabelos do mais sedoso doirado; de um conglomerado de sardinhas às asas do nariz que lhe insinuavam uma feição moleca e de ares desdenhosos; de uma boca que inspirava ganas de beijos, lambidas e dentadinhas; de um maneio descaradinho da cintura, daquelas que têm o pecado escondido no andar rebolado das cadeiras; de no arrastar das sandálias fazer balançar toda a amoreira. Usando dois ou três desvalidos vestidinhos de chita que se acabavam antes dos joelhos, costurados pela mãe, daqueles inteiriços, de vestir pela cabeça, e calçando rudimentares e desgastadas sandálias amarelo-queimado de cinco tiras, em couro de cabra, tudo lhe caía bem. No seu envolvente corpo, que outros adornos não carecia, ficavam-lhe quaisquer roupas melhores do que se de altas alfaiatarias. Era como uma artista de cinema encontrada no meio de um sonho. Ah! Moça-menina solitária, indefesa e esquecida que dava suspiros que morriam na doçura dos ares que a envolviam. Ah, moça! A solidão às vezes é sinônimo do desespero. Ah, menina! Com o favor de Santa Luiza, não vá pôr a perder, naquelas aquém-fronteiras de ninguém, uma existência tão maravilhosa. Eita vida sem jeito!

    Os que atravessavam o Rio das Santas, naquele desertificado e areento sítio, muitos não eram; não dava mais que uma viagem por dia. Vinham de lonjuras e desconvizinhanças, dos cafundós de caixa-prego, nos confins da caatinga, no geral, gente apartada da seca. Na direção de Salta Boi e de outras cidades circunvizinhas, eram doentes a procura de recursos, menino para ser batizado, noivas atrás de enxoval, teimosos lavradores a arranjar sementes, campesinos a adquirir pequenas ferramentas, cabra ruim largando família, cangaceiro fugindo das volantes; e andantes muambeiros, andarengos mascateiros, bufarinheiros, aguardenteiros e escambistas de trocar e vender à rasa e às rebatinhas. E aquele mundo vago se fechando sobre todos eles.

    Tirantes estes fortuitos viageiros restavam espaço e solidão. Insulamento como num eremitério. Ali não se medita e nem se sonha, apenas se sobrevive; e aquilo não era coisa que Deus mandava, mas que o diabo fazia. Os longos e embrasados dias calcinam a esfarelada terra até que, no horizonte, ao poente, sobrem apenas os resquícios poeirentos do sol. Então, as noites entram, com todo o seu negrume, pelas frestas das tábuas e nos vãos do telhado, na casinhola do exilado Provenciano Argão, sobrecarregando-lhes o abandono e a orfandade; a proscrição e o banimento de excomungados.

    Persiste o canoeiro na vida pluvial impulsionada às pás dos remos. Naquela abundância de Corumbé, na alma do sertão, não cruzam batéis, paquetes, lanchas ou qualquer outra embarcação, nem mesmo de pesca; às margens, nem praia, nem regatos, nem plantações ribeirinhas, só as poucas linhas de pesca do Josuélio e a barricada que serve de trapiche de partida com os batentes para as cordas.

    As travessias do rio, na tosca canoa de pau linheiro, sucupira escavada a ferros e fogo, com três bancos a comportar, além do timoneiro-remador, seis passageiros, eram quase sempre reais peripécias; e, pior, na estação das cheias. Por vezes, a corrente estava tão densa como leite derramado, e se complicava por empuxos, repuxos e redemoinhos de rio encachoeirado e revolto; por outras, debaixo de vento forte, a xucra e bronca piroga corcoveava mais do que potro redomão quando liberto dos arreios. As atravessadas às noites eram mais demoradas, o rio parecia mais largo; crescia, tomava corpo, avolumava de medo do escuro e das assombrações que pairavam sobre a sua crespa superfície, aos rebrilhos da lua. Com tempestade, porque também nelas se iam, o rio cobria-se de surpreendentes e bizarras ondas como um infinito oceano; escavava-se, entre os vagalhões, vales e gretas; construíam-se e se desmoronavam repentinos negros paredões e muramentos; riscavam ameaçadores os coriscos; esbravejavam, vociferavam e estrondavam trovões como ribombos de canhões à queima-roupa; espancava a água atormentada e vagida do céu; e minha Santa Bárbara! Se não me mata agora, não me mata mais! Valei pelo canoeiro, que a barcaça não tem outro leme que a largura e a presteza dos remos. Em qualquer situação, o corpo incólume e a alma a salvo, só quando a montaria acostada e amansada, os cabrestos atados aos cabeços do trapiche e os pés fincados à resoluta terra.

    Numa dessas, eu canoeiro de fé e confidência, Provenciano Argão, tive que atravessar às carreiras uma mulher embuchada ganhando a cria. Chegaram, em casa, no meio da madrugada, a tal Dona Vaina mais o marido que nem o nome se lembrou de dizer. Vinham numa mal alinhavada charrete puxada por um matungo de ossos, pele e feridas, tendo varado a noite naquele salta-e-pula.

    – Ô da casa! Me acode, me acode, homi de Deus! – chamou gritando a parruda.

    – É já que tô indo – respondi ao berreiro, sungando as calças.

    – Nóis têm que atravessá ligeiro, ligeiro...

    – E isso são horas de cruzá o Corumbé? – indaguei, interrompido da dormida.

    Daí que contaram que a embarrada⁷ já estava nos trabalhos havia dois dias, mas o aliviamento trancara. A mulher era parideira velha, tanto que já descansara de onze, mas, aquele, o doze, na horinha de esbarrigar, dera de empacar como cabrito teimoso, o fura-bucho. Com duas olhadas, medi a madurona: era gorda e grande, a barriguda; devia de ter uma bigaia⁸ do tamanho de uma gamela, daquelas cunhadas com a gameleira inteira. E, mesmo assim – Ave Maria! – não dava conta. Botamos a dona na piroga, e nestas manobras, por estar sem os forros, nas beiradas da buçanha⁹ se via uma perninha de fora, tremendo como vassoura-do-campo.

    – Avia, homê! – dizia a parturiente para o abilolado marido – arre-ema!

    Medi também o gajo, agora sentado no segundo banco, escorando aquele angu de polenta: um pituca magrelo, escurinho, abostado, que sabia-se lá como usara o seu cabo-de-relho, dele extraindo a baba-do-quiabo para fazer tanto filho. Provável que um bando de Craudineis.

    – Se avexe não, sinhora Vaina, estamos quase chegando – dizia eu, a acalmá-la, a cada safanão das águas que a botava em espasmos furibundos, a lhe percorrer a barriga, fazendo gemerem as tripas.

    Eram esborralhados garrotes, desencabrestados sismos e reviravoltas fortes, arregradas e acochadas de abarcar a alma; doida sanha de contrações nervosas; delírio de loucura que a botavam a abocanhar e mordiscar os paus da canoa. Eu dava no remo, açoitando as águas numa atravessada com a neblina da antemanhã; no céu, um que outro rasgo de pálida luz. Salvava que, macaco batido e surrado, sabia todos os caminhos da travessia, fosse claro, fosse escuridão.

    – Diacho de meninos qui só dão é danação – resmungava a riputriuda¹⁰, enquanto o da paternidade tinha-se quieto e assustado como um fugidio bugio.

    Quando arribei a barca aos castões dos atadouros, o marido saltou e se foi a buscar condução para levá-la à maternidade. Fiquei de comadre aparadeira, orando pela Senhora dos Partos para que o miúdo aguentasse mais um pouco. A mulher sem posição, fora dos eixos como vagão descarrilado, miava como uma onça ferida na xereba¹¹. E aquela buchada enorme corcoveando ao forrobodó das contrações, trancos de fazer uma santa martirizada sair desembestada; ao mesmo tempo, uma roxidão tomava conta daquele membrozinho dependurado. Arre, parição arretada! Não sei quanto tempo depois voltou o companheiro; veio numa carreta e com uma improvisada padiola de lona; paletearam a pobre, e se sumiram na picada.

    Em duas semanas voltaram; por horas estavam a esperar acocados à beira do rio. Contava a mãe:

    – Veio todo roxinho como um açaí maduro, mas há que veio. Óia, óia só, seu moço.

    Abriu os puídos cueiros, que tinham agasalhado os outros tantos, e exibiu o desmilinguido recém-nato.

    – Engasgou com a água do parto e custou a chorar – continuou a puérpera voltando a encasulá-lo – e foi só depois de muita pancada no pé dos peito. Achavam que não vingava...

    – E tão pronto indo pra casa? – estranhei.

    – Cansei de hospitar – respondeu com cara de entojo – vou é butá o bichim a mingau de pitomba e taioba, suco de pinha e de cajá, e a chás de algarroba; e também vou benzê-lo com folhas de arruda. Prometi ele a São Ubaldo, que é mais por nóis. De então para diante, até que tenha crescido o bastante pra trabaiá, ai de mim! Vou cumprir a promessa.

    – E si pode sabê que jura que foi?

    – Oxe! Num altarzinho de pau de umbuzeiro que tenho, vou butá a estátua do santo e, todos os dias, na hora das Ave-Marias, vô queimá um cotoco de vela e, enquanto ela estiver ardendo, vô rezá por seu padrinho, ajoelhada sobre três grãos de mio. Por conta disso, ele toma o nome de Ubaldo. Ubaldo Pedido do Santo.

    Fiquei a olhar para a trinca. Primeiro para a tal Vaina, acalentando aquela trouxinha, que mãe é mãe. Tinha a buchada recolhida, as bitetas¹² de leitaria murchas, as pernas riscadas e ulceradas de varizes, e ainda devia de ter a inhanha¹³ inchada e ardida. O pai, naquela embretada, limitava-se, na sua pouca monta, a um velho que antes já dera fogo. O bacurim, o afilhado do santo, senti firmeza não. Se se safasse seria mais uma boca a penar de fome naquele degredo de sertão. E foi só quando apeamos que me pagaram as atravessadas com uns caraminguás que conseguiram de doação junto com alguma roupinha de criança pagã.

    Em seguida veio a encruzar o Rio das Santas, um cabra muito estranho e muito suspeito. Um galalau de buscar coco sem vara de chunchar. Trazia um inseparável chapéu descido sobre a fronte a encobrir-lhe as feições, porém, mais abaixo, viam-se-lhe saltadas as cordoveias

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