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O Pavilhão Dos Loucos Amores
O Pavilhão Dos Loucos Amores
O Pavilhão Dos Loucos Amores
E-book341 páginas4 horas

O Pavilhão Dos Loucos Amores

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Sobre este e-book

Uma jovem psicóloga e o seu inseparável orientador, um velho e doente psiquiatra. Um manicômio resistindo às pressões do movimento anti-manicomial numa sociedade hipócrita que desleixa e abandona os seus doentes mentais. Com rara percepção e maestria, o autor, à fundura, passa das descrições físicas para o esmiuçado detalhamento dos traços psicológicos e comportamentais dos internados naquele hipotético hospício, na linha, romanesca, de que quem vê a cara, o coração (e a mente) também vê. Uma forma diferente de amar, totalmente desconectada dos padrões usuais de comportamento, e de sanidade – a felicidade das coisas insignificantes. Amores que, talvez, não se gostem às mesmas horas. O amor como salvação da mais profunda solidão. Neste seu sexto romance, PIO FURTADO, surpreendentemente, com gnose, cognição e intimidade, se atreve a adentrar nos abismos da loucura humana. Então, contando as suas histórias, tipos e arquétipos psiquiátricos vão desfilando aos olhos dos leitores, que haverão de extrair-lhes – assim, ao menos, imaginou o autor – apesar das insanidades, o que ainda lhes resta de mais nobre, a alma. Sim, porque, deveras, sem requinte de sofismas, eles, os loucos, também as têm...
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de mai. de 2020
O Pavilhão Dos Loucos Amores

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    O Pavilhão Dos Loucos Amores - Pio Furtado

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    Pio Furtado

    Membro da Academia Brasileira de

    Médicos Escritores - ABRAMES - RJ.

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    © by José Pio Rodrigues Furtado

    Direitos autorais reservados

    Editoração eletrônica e Capa: Willian Castro (a partir de imagens free disponíveis na internet)

    Revisão: João Vitor Berg

    Arquivo digitado e corrigido pelo autor, com revisão final do mesmo,

    autorizando a impressão da obra

    Editor: Rossyr Berny

    Contato com o autor: jpiofurtado@gmail.com

    Para conhecer mais a Editora Alcance acesse:

    www.editoraalcance.com.br

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    ______________________________________________________________

    F992p

    Furtado, José Pio Rodrigues.

    O pavilhão dos loucos amores / José Pio Rodrigues Furtado. – Porto Alegre: Alcance, 2020.

    il.

    1. Literatura brasileira. 2. Romances brasileiros. I. Título.

    CDD 869.93

    ______________________________________________________________

    Bibliotecária responsável: Daniela S. Christ CRB 10/2362

    121214.png
    Para José Inácio e José Antônio,
    segundo e terceiro irmãos.

    Obras do autor

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    Prefácio

    TODOS TÊM SUA HISTÓRIA PARA CONTAR

    Luiz Antonio de Assis Brasil

    Há um cão dentro de mim a roer os ossos

    De todos meus pecados e remorsos

    Prado Veppo, O cão

    As regras de convívio de uma sociedade são dadas por uma elite central pensante – portanto, dominante – e se espraiam até os muros que a cercam. Tal modelo político expande-se no espaço, do mesmo modo que os círculos produzidos pela pedra jogada num lago. Os círculos só se detêm nas margens. E, no caminho, vão sendo deformados, submetidos a relações de poder que são replicadas, transformadas e pervertidas. Para os homens típicos, ou integrados, as margens são contidas por muros altos, que esses homens veem como intransponíveis, porque, se de um lado os aprisionam, de outro significam a materialização de uma zona de conforto.

    Indivíduos há que ultrapassam esses limites, esses muros pontiagudos, porque, para eles, a sociedade organizada não serve. Então contestam-na, mas logo presos e vigiados, são jogados ao mar na frágil barca dos loucos, uma entidade que habitava o imaginário medieval, depois utilizada como alegoria no célebre romance Ship of Fools, de Catherine Anne Porter. Os passageiros dessa nau mítica são os que Linda Hutcheon chama de ex-cêntricos, seres que não estão no centro da sociedade, mas, sim, à sua periferia. A humanidade raramente se indaga se essa barca não seria, em verdade, a única capaz de explicar criticamente a corrosão das normas e valores em nome dos quais foram punidos. Segundo Foucault, a história nos cerca e dá limites; paradoxalmente, não nos explica a nós mesmos, mas diz no que somos diferentes; não nos confere identidade, mas a dissolve em benefício do outro em que nos transformamos.

    Uma das maneiras de punir os ex-cêntricos – os loucos, os criminosos, os irremediáveis – é escondê-los em cavernas de ferro e cimento, em casarões de abandono. Todos esses impertinentes ao sistema são exilados e viverão uma não-vida, ou uma vida sem qualidades. Eis a temática de O pavilhão dos loucos amores, de Pio Furtado, que ora chega aos leitores e críticos.

    O autor, Pio Furtado, não é novato na literatura, a qual cultiva ao lado de sua atuante profissão de médico. Membro da Academia Brasileira de Médicos Escritores – ABRAMES-RJ, possui um bom repertório de romances publicados, os quais obtêm excelente ressonância entre os leitores, haja vista de que vários estão além da primeira edição.

    Quando lemos o pavilhão do título, a conotação é imediata: lembramos prioritariamente das edificações, em geral especializadas, que existem nas administrações hospitalares. Aqui, no caso, trata-se do pavilhão de um Hospício que abriga alienados mentais. Instituição à antiga, das tantas que existiram em nosso país no século passado, e isso a partir do nome, hospício, e por seus métodos, que incluem o uso do eletrochoque e da camisa de força.

    A narrativa inicia-se com a admissão de Dárcia Loreno, psicóloga recém-formada, ao quadro de funcionários do Hospício São José de Cupertino. Dárcia veio para trazer desconforto aos doentes já conformados. Cheia de ideias, acreditava no poder das mudanças. Primeiramente, fez pintar uma floresta de muitos verdes nos muros internos do manicômio e plantar algumas árvores e flores verdadeiras no pátio. A primavera trouxe pássaros e borboletas para o jardim. Depois, fez introduzir exercícios físicos, música, oficinas de arte e até promoveu piquenique num dos parques da cidade. O verde, a música, os exercícios e a arte fizeram muito bem aos internos. O piquenique, porém, foi um desastre e mostrou todo o desprezo que a sociedade organizada tem pelo estranho, pelo diferente. Mas Dárcia desempenhava bem seu trabalho, em tudo apoiada pelo velho psiquiatra Dr. Sicardo Dantunes.

    O trabalho dos dois – psiquiatra e psicóloga – era cheio de perguntas cruciais e até então represadas: seriam os loucos felizes? Existirá algum prazer muito secreto em sentir-se louco? Ou as dores e os remorsos proibiam que eles se abrissem para a terapia e para uma outra espécie de vida, um intermundo entre a sanidade e a loucura? Difícil conhecer além da superfície, pois, como diz o narrador: "[...] uma pedra não escova os dentes, nem come, nem evacua, [...] um vegetal, pelas grossas raízes, não sai do lugar, e não conversa, e não se veste, [...] animal não pede licença, não espera pela comida e não é dado a cerimônias.

    Seria essa nova vida, idealizada, melhor do que a que vivem? Era boa, mesmo, a vida dos sãos? Qual seria a verdade da psicologia, uma vez que, nas palavras do Dr. Dantunes, os tidos como normais, ou os que se sentem ou se acham normais, são prisioneiros das suas ânsias, das suas cobiças, das competições, das invejas, das ambições e crueldades: as vidas da maioria dos homens ardem no inferno destas condições, queimam nestas fogueiras de tantas lenhas [...].

    O passar do tempo costurava as ideias em provisórios conceitos. A jovem despertava, no idoso, espasmos de antigos ideais; ele, além do apoio contra as impertinências do Diretor Geral, funcionava como um garante do acerto das novidades trazidas por Dárcia, conhecedor antigo de todos os pacientes atuais e de outros tantos que já se tinham ido, atrás da morte. Ele era solidez e segurança; ela, vento e revolução.

    Uma peça do destino faz com que Dárcia perca a presença sempre confortante e segura do Dr. Dantunes; de repente está sozinha para entender e decidir sobre os pacientes do manicômio. Sente-se perdida, muito jovem, sente-se criança, tem cada vez menos forças. Consomem-na terríveis lembranças infantis que desconhecia. Não dorme mais.

    No entanto, sabe, não pode abandonar o trabalho que iniciou. Muitos confiam nela, dependem dela, necessitam. Dárcia também vive um sofrimento pessoal, muito doloroso, mas que não pode impor aos seus frágeis protegidos. E, sem saída, cumpre sozinha a imersão no mundo da loucura, responsável que é por todas aquelas almas. O tocante final será uma resposta às angústias do leitor e, por outro lado, traz outras, que implicam o conhecimento de nosso ser-no-mundo heideggeriano e repõe a discussão insolúvel sobre quem, na verdade, é o timoneiro da nau dos loucos.

    Escrito com uma linguagem objetiva, com uma trama cheia de episódios, tudo isso evocando os grandes romances realistas, especialmente os russos e franceses, Pio Furtado consolida sua carreira literária e segue fiel a si próprio – esta última, a grande virtude de quem escreve ficção –, dando a seus tantos leitores mais uma amostra de sua vocação romanesca.

    Nota do Autor

    Esta não é, em absoluto, uma tresloucada história, antes uma narrativa sobre loucos. Isto mesmo, caríssimo leitor! Vamos nos ocupar, por muitas páginas – que, espero e faço toda a força e empenho, lhes possam ser atrativas e cativantes – de insanos, de alienados, de desvairados, de conturbados, e das suas doidices e maluqueiras, porém, e quão importante haverá de ser essa ressalva, tomando-os por outras facetas obscuras das suas perturbações mentais. Hei de tentar – palavra! – ao extremo da razão e das minhas limitadas capacidades literárias, preservar-lhes as preciosas sobriedades, sanidades e perfeitos juízos; nunca será minha deliberada intenção induzi-los ou recomendá-los aos desequilíbrios, aos transtornos cognitivos e psíquicos, às louquices; e, por fim, espero, eu mesmo, ao cabo deste ficcional memorial, não tenha perdido as lúcidas faculdades intelectivas que, até então, penso, me qualificavam sano.

    Dárcia Loreno é uma jovem recém-egressa da faculdade de psicologia; se ao correr do curso não fora brilhante, ao menos, esforçadíssima; a bem dizer-se que queimou todos os fosfatos, pôs em fermentação os neurônios e em tumulto os conceitos; foi intensa, aguçada, reativa e diligente, de tomar tudo sobre os ombros, esticando a barra, deitando a livraria abaixo, numa labutação por dias de fazerem-se semanas. Pois então, soltada das amarras dos bancos universitários, deu-se com a pergunta: e agora? Promoveu ampla e gratuita distribuição do curriculum, indo a cada uma das clínicas da região, demonstrar, à praça, seus conhecimentos, experiência e habilidades e, porque não, as concepções e as ideias que, ao longo da formação, fora desenvolvendo no sentido de dar aos pacientes o atendimento mais humanizado possível, isto, por óbvio, incluindo a transgressão de alguns legados acadêmicos que julgava arcaicos e defasados. Visitou todos os colegas de profissão já estabelecidos, oferecendo-se para ajudá-los, ainda que sob mínima remuneração; mas, nada. Mercado difícil! Tentou de tudo, só faltou apregoar-se, tal qual numa feira-livre, num brique ou num camelódromo: quem vai querer!... quem vai querer!... Já andava na ponta da desistência, e procurar outra coisa para fazer, quando deu com um pequeno anúncio nos classificados da Gazeta Mercantil, diário que, costumeiramente, ninguém lê: Psicólogo. Casa de saúde necessita de profissional para acompanhamento de pacientes internados. Informações e detalhamentos direto no local, ao endereço [...] Eureka! Quem procura vai um dia que acha; e quem não sabe o que procurar, quando encontra, não reconhece! Não era este o caso de Dárcia, que sabia, e o sabia muito bem, o que da vida buscava. Tomou a linha férrea, pois que a localidade de Terenápolis ficava a hora e meia de trem de onde morava, e, direito como um fuso, se botou a caminho, de salto, batom e muita compenetração, pois quem vai ao Jordão, não há de esquecer a razão. Desembarcou numa pequena gare, no centro de um descampado, onde havia meia dúzia de viaturas que, pelo estado de manutenção, estavam mais para fiacres do que para autos-de-praça, de vez que, deles, não se poderia alcunhar táxis. E toca para o logradouro tão desejado. Vencidos os solavancos de uma saibreira estrada vicinal, quedou-se em frente a uma enorme e velha edificação. Por tempo andou em tornos e contornos, a esquadrinhá-la: era uma construção retangular de três blocos de dois andares, tendo, ao fundo, a fechar o perímetro, um muro de considerável altura; as fachadas, de tijolos à vista, davam-lhe a semelhança de uma montanha de barro; cada frontaria era fenestrada por mínimas janelas quadriláteras, aprisionadas por enferrujadas grades, que se entrecruzavam vertical e horizontalmente, de modo a permitirem, quando muito, a saída de um punho fechado e a entrada de talhadas de luz; os telhados de amianto, planos, sem calhas e com mínima inclinação orientada para o interior, deviam de escoar as chuvas no sentido de afogar-lhes o pátio interno; à volta, no silêncio dos surdos, uma baixa várzea que se continuava, bem mais longe, num imenso lago de águas mais cerúleas que o próprio céu. Bem acima do frontispício principal, encimando pesado portão de ferro, uma placa, na curvatura de um arco-íris, onde se lia: Bem-vindo ao Hospício São José de Cupertino. Apertou uma campainha com som de trombeta, mas que soava fraca e distante como se penetrasse em remotas profundezas. À porta assomou um homem grande como um armário de oficina mecânica e, antes de cruzar aquela portada, chamou-lhe a atenção, quase ao resvés do chão, estaqueada, uma placa com o aviso: Estamos lotados – não insista.

    Seguiram silenciosos por um corredor sombrio e opressivo por um ar viciado de peça não ventilada; o cicerone, igual a um praça raso e marchador, batendo os cascos, com um passo tão largo que a obrigava a multiplicar o seu por três, quando não dar pulinhos, a não perdê-lo pelo trajeto. À esquerda, de tanto em tanto, o largo corredor era interrompido por arcos que lindavam com um amplo pátio interno, se bem que este, cortado, de frente a fundos, a terminar no alto muro, por uma cerca de arame; uma divisória de tela miúda, como num galinheiro; no percurso ninguém, viva alma, embora, por duas vezes, ouviram-se urros que pareciam vir do fundo da terra. Numa vasta sala com pouquíssimos e lamentáveis móveis, mobiliário colonial batido e desgastado, ao fundo, numa mesa extraída de alguma fazenda dos tempos e domínios colônicos, em pé, a recebê-la, o Dr. Sicardo Dantunes. Era, o psiquiatrista, um homem já cavado nos setenta anos, a expressão aplastada e abatida escondida atrás de mal aparada barba encanecida, o olhar complacente e a voz mansa de um mestre conselheiro; tinha-se, invariavelmente, pendurado num cachimbo do tipo Diplomat, com o corpo na cor da imbuia, mas com a piteira preta de ebonite; a perenização do hábito, ou do vício, deixara-o com a boca ligeiramente torta, enviesada e tombada para a direita, e os dentes nos amarelecidos do milho amadurado além da conta. Fora ele quem solicitara a contratação de um psicólogo para ajudá-lo com os internos, vez que, esgotado das lidas diárias, das pirações e das sandices crônicas da clientela, desejava, resguardando inclusive a própria saúde então abalada, permanecer apenas no trato e na administração das medicações controladas.

    – Tome assento e acomode-se, minha jovem – recebeu-a o médico.

    – Muito prazer, Dárcia Loreno – disse a moça, enquanto sentava à beirada da cadeira, os joelhos juntos, comprimidos, os pés às pontas dos dedos e a bolsa ao colo.

    Com agudeza de espírito, afinal, estudioso das ciências psíquicas e, portanto, velho conhecedor das mentes e das personalidades humanas, por instantes, ficou o terapeuta a observá-la: tinha um belo rosto, suave, com inata capacidade de levantar ânimos arriados e serenar as ondas do mar; o corpo era de boa figura, esbelto, longilíneo e nas derrapantes curvaturas de uma perigosa estrada serrana; o cabelo castanho, na cor da noz madura, sempre puxado para trás e arrematado, na nuca, com uma piranha da sua grande coleção; era daquelas discretas que trajavam vestidinhos casuais, de cortes retos, como tubinhos de sarja ou de brim e que, circunspecta e recatadamente, terminavam nas barras das rótulas. Percebeu, ainda, o médico, como numa experiência sensitiva, que aquela sentia uma intensa necessidade de gostar dos outros. Essa por certo que serve; resta saber se aguenta – pensou com seus tabacos o médico.

    – Com que então pensa em vir trabalhar conosco – principiou.

    – A bem dizer a verdade, para não começar lorotando, esta foi a única oferta que tive; mas não que não tenha interesse, tenho sim, e muito.

    – Agradeço e reconheço a sinceridade...

    – Estou pronta para encarar qualquer desafio profissional – insistiu a jovem.

    – Devo dizer-lhe que aqui temos uma casa de doentes crônicos, por conseguinte, pouquíssimos melhoram...

    – Nem por isso, ou até por isso, devem necessitar de maiores cuidados psicológicos...

    – Todos nós precisamos; e deixe-me dizer-lhe uma coisa – continuou observando-a aos mínimos detalhes e reações –, todos nascemos loucos, apenas que alguns não se curam...

    Riu-se a jovem psicóloga, e já uma empatia, uma confraternidade, como tivera com alguns velhos professores, se foi aninhando na sua percepção.

    – A despeito da sua jovialidade, percebo que posso lhe falar abertamente, como entre entendidos e maturados colegas – seguiu o psiquiatra, reacendendo o inseparável cachimbo –, penso sermos seres diferenciados, para não dizer especiais, ao termos a rara oportunidade de trabalhar com estas mentes ditas perturbadas. Porém, posso lhe afiançar, depois de tantos anos estudando-as com afinco, que, conceitos meus, são elas extraordinárias, singulares, invulgares, e por isso, qualifico-as, em resumo, como apenas diferentes das usuais ditas normais.

    – Que maravilha ouvi-lo dizer tais coisas, por que eu, cá com as minhas ideias e manias, e sei que muitas delas soam discordantes com a maioria dos colegas, também tenho o entendimento de que eles, os alcunhados desequilibrados mentais, não devem ser tão infelizes quanto pensa a consciência e o imaginário popular.

    – Perfeito! – disse o médico, entre duas curtas baforadas –, será que enxergamos um cem avos de tudo de oculto que há no universo?, ou na mente humana? Digo, por incapacidade mesmo dos nossos órgãos de poder sentir, e perceber...

    – Muito que já pensei sobre isto – respondeu a senhorita da psique.

    – Não terão eles, os enunciados e referidos, irracionais, irrefletidos e tresvariados, diversas áreas do cérebro mais desenvolvidas, ou exploram outras que sequer desconfia o vão conhecimento? Vem comigo, acompanha comigo as confusões e dúvidas que me assaltam a cabeça – continuava agora entusiasmado, como se numa defesa de tese –, quantos loucos não abriram os caminhos das ciências e das artes? Loucos há inteligentíssimos, perspicazes e lúcidos, mas de quando em vez, num acesso, põem a perder todos os seus predicados. Loucos há que vivem dentro de sonhos bizarros, nas impenetráveis brumas da demência; nenhuma lei humana os rege, o sobrenatural os tem ao alcance das mãos, não têm razões nem preceitos lógicos e, fora da realidade, tudo lhes é possível. Serão os loucos seres privilegiados? Existirá um prazer garantido em ser-se louco? Mistérios do invisível que os sentidos dos saudáveis não alcançam! Demais, minha cara, não estarão os maiores loucos soltos, e não estigmatizados por este funestíssimo diagnóstico?

    – E eu acrescentaria, se me permite a sua vasta experiência, será que são infelizes? Quero dizer, os que vivem numas fantasias, em entressonhos, em quimeras e imaginações, vivenciando-as, na plenitude da sua loucura, não poderão, mercê disto, se terem prazenteiros e satisfeitos? Não que vivam em permanente abril e em eterno maio, pois que a nenhum ser humano, por favores do céu, é concedida a felicidade perdurável e infinita, mas que, no íntimo, possam ser, engenhosamente, felizes.

    Ficaram, por instantes, os dois analistas de analisarem-se, mutuamente; e te mostra que eu me mostro! Seguiram, depois, por uma guiada visita de reconhecimento de todas as dependências do manicômio, conduzida pelo leão-de-chácara de nome Ramão Rorge. Era ele, um gorila de avental branco, que portava uma cara terrosa, encardida como a dos beduínos que vagam pelo deserto; tinha mandíbulas, têmporas e orelhas fortes, iguais as dos lutadores, inchadas por acostumadas a absorverem os golpes; integrava o time dos que eram acionados sempre que houvesse necessidade de conter um alucinado que, eventualmente, entrasse em surto psicótico. Enquanto andavam, o Dr. Sicardo Dantunes, com toda a pachorra que o fazia peculiar, desapressado como convém a um bom analista, foi contando a história da instituição: o fundador, um sujeito chamado Amiteno Perduto, proprietário, à época, naquele local, de uma pequena estância, tivera uma filha com graves perturbações mentais; para que a menina, que vivia isolada num grande barracão que mandara construir, tivesse com quem brincar, andou e virou mundo, adotando algumas crianças com iguais deficiências, e outras mais, portadoras de autismo; pais havia que rejeitavam-nas, como os cisnes aos patinhos feios, e, portanto, se lhes calhou ótimo verem-se livres das ignomínias com as quais não conseguiam suportar, e viver; logo a casa tinha dez internas: as perturbadinhas, plenas de medos e fobias, com problemas de linguagem, de coordenação motora e de cognição, e as autistas, com graus variáveis de perda da relação com os dados e as exigências do mundo circundante; entretanto, interessante, juntas todas tranquilizavam-se, como se, finalmente, tivessem encontrado um habitat que lhes convinha, e acolhia. Vai e mexe que, então, nos anos trinta, foi criada a Fundação Casa Manicomial Perduto, sem fins lucrativos, sustentada pelo beneplácito principiador e gerida por uma diretoria de abnegados. Daquele despojado primeiro barracão fomos evoluindo até esta agora também antiga construção, que tomou o nome de Hospício São José de Cupertino, e os serviçais desta casa, chamados carinhosamente de Cupertinos, em referência aos possíveis seguidores daquele santo protetor dos loucos. Os três blocos de prédios que compunham o estabelecimento, cada um deles chamado de pavilhão, não tinham escadas para acessar-se o segundo piso, senão que se subia, por questões de segurança dos internos, por amplas rampas guarnecidas, de ambos os lados, por corrimãos de ferro; as paredes grossas tinham as marcas e os sofrimentos dos tantos que por lá passaram, e as ínfimas janelas, permitindo tão pouca passagem solar, dentro, produziam um clima melancolicamente sombrio. O pátio interno uma desolação total: piso de cimento já algo descoroçoado; álgidos bancos, também de concreto, dispostos paralelos aos paredões; bebedouros de água, como antigas fontes, azulejados com retalhos e cacos de ladrilhos e cerâmicas; duas árvores de folhas secas e poeirentas sobrevivendo onde seiva não se achava, uma às três, a outra, diametralmente oposta, às nove horas; e a indecorosa cerca de arame a separar os sexos, a direita de quem entrava os homens, à esquerda, as mulheres. O bloco da frente, mais administrativo, e com várias peças desativadas, chamavam-no Pavilhão Ampe, numa atual e única alusão ao inaugurador, tomando-se as duas primeiras letras do seu nome, Amiteno Perduto. O que abrigava as das saias, diziam-no das Rosas, os das calças, Pavilhão dos Cravos. E nunca, pela infausta divisória de gêneros, biombo de apartados e tabique de sentimentos, se tinham, no mesmo canteiro, os cravos e as rosas. Deles, os austeros pavilhões, ouviam-se, à integralidade dos dias e das noites, ruídos confusos, rumores surdos, murmúrios desconexos, zumbos ilógicos, ronronares incoerentes, e conversações, farfalhadas e palavrórios de sozinhos, a não esquecer, da grita, dos ulos e dos berrogrogues dos atarantados internos. Fosse como fosse, a estrutura arquitetônica erguia-se de forma que os de dentro quase não enxergassem o exterior, e os de fora, sequer suspeitassem da sua intimidade. De volta ao prédio principal, concluíram o tour, na sala do diretor-geral da instituição, Tedro Mosto. O administrador, homem corpulento e mal esculpido, à semelhança de um tronco de árvore, as grossíssimas sobrancelhas, salientando-se na cara quadrilátera, davam-lhe gravidade que impunha respeito e arrematavam uma esfinge que tinha a tolerância muito perto da crítica e da admoestação. Em outra sala estrita, severa e desguarnecida, sentaram-se numa mesa redonda que usavam para as reuniões administrativas, junto a uma parede da qual pendia um ascético e sisudo Freud. Este, de meio corpo, o cabelo repartido de lado, ampliando as dimensões da larga testa, a barba branca bem aparada, salientando-se no cavanhaque, a fatiota escura exibido parte do colete e a corrente do relógio, a cigarrilha entre os dedos, faziam-no presença que tinha uma intensidade penetrante. O iniciador da psicanálise observava-lhes; e talvez que prorrompesse ao fundo de suas almas... O diretor Mosto fez uma

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