Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Em Nome Do Senhor
Em Nome Do Senhor
Em Nome Do Senhor
E-book295 páginas4 horas

Em Nome Do Senhor

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

O título Em nome do Senhor não diz, desde logo, que o texto é romance policial. Pio Furtado inicia a narrativa com dois longos parágrafos, pura descrição da personagem sacerdote, com suas impressões pessoais sobre a cidade e sobre as confissões que ouve diariamente. A história é conduzida por narrador onisciente, tudo sabe e tudo vê, no passado e no presente e, se quisesse, também no futuro. E desde o início presenteia-nos com um rodízio de personagens que frequentam mesmas frases, num estilo muito difícil para um escritor, mas que Pio Furtado logra sucesso. Seus parágrafos são, como regra, longos e isso exige do leitor paciência e atenção, porque a quantidade de informações é como uma cachoeira. O tema é interessante e desperta a curiosidade: a justiça por mão própria pelo confessor que busca a reparação para as vítimas que choram no confessionário. Lembrei um conto que escrevi há muitos anos, sob o título Oferta Especial, onde os pais de dois jovens, um assassinado e outro sobrevivente de um assalto para roubar tênis, e o que eles fazem por conta própria. Surge o antagonista, um promotor de justiça, noivo de parente do sacerdote que desconfia do padre como autor dos crimes na paróquia. No romance policial existem dois segredos de escritura que, não sendo bem-sucedidos, o Autor não logra sucesso: os anticlímaxes, o clímax e o(s) ponto(s) de virada. O anticlímax, como o termo sugere, brinca com o leitor, parece ser o clímax, o momento maior do conflito, mas que é desfeito a seguir; e podem ser vários anticlímaxes. Mas clímax, o momento maior, é só um, e deve ser bem-posto ao final do texto. E Pio Furtado sai-se bem na empreitada. O ponto de virada, que podem ser vários, mas não muitos; talvez dois ou três; é o pontapé na cadeira para derrubar o leitor. A narrativa está sendo conduzida para uma direção e altera seu rumo. Há um ponto de virada neste livro e não me detenho neste ponto para não subtrair ao leitor o prazer do texto. Poderia dizer algo sobre a verossimilhança, muito presente no romance policial, mas que, sendo esse gênero literário, permite discutir-se sua qualidade ou intensidade. Veremos o que resultará no espírito do leitor ao deparar-se com o ponto de virada nesta obra. Que é, basicamente, o único. O romance, como narrativa longa, é desafio para o escritor. Romance policial é desafio mais instigante, o Autor está sempre sobre o fio da navalha, um escorregão e põe tudo a perder. Friedrich Dürrenmatt escreveu A promessa com a vontade de criticar o gênero, é o que dizem. O seu personagem-narrador afirma, a certa altura: “Para ser sincero, nuca tive os romances policiais em alta conta e sinto muito que o senhor também os escreva. Perda de tempo. Vocês constroem ações de um jeito lógico, e tudo segue como um jogo de xadrez, aqui o criminoso, aqui a vítima, aqui o cúmplice, aqui o beneficiário; basta que o detetive conheça as regras e refaça os movimentos, logo ele terá posto o criminoso em xeque, ajudado a justiça a triunfar. Essa ficção me deixa furioso.” EM NOME DO SENHOR é para ser saboreado como o vinho, aos goles, bem acomodado. Pio Furtado sabe escrever. O mais cabe à recepção do leitor. José Carlos Rolhano Laitano Cadeira nº 27 da Academia Rio-Grandense de Letras. www.josecarloslaitano.com.br
IdiomaPortuguês
Data de lançamento11 de jun. de 2019
Em Nome Do Senhor

Leia mais títulos de Pio Furtado

Relacionado a Em Nome Do Senhor

Ebooks relacionados

Ficção Geral para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Em Nome Do Senhor

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Em Nome Do Senhor - Pio Furtado

    Prefácio

    O título Em nome do Senhor não diz, desde logo, que o texto é romance policial.

    Pio Furtado inicia a narrativa com dois longos parágrafos, pura descrição da personagem sacerdote, com suas impressões pessoais sobre a cidade e sobre as confissões que ouve diariamente.

    A história é conduzida por narrador onisciente, tudo sabe e tudo vê, no passado e no presente e, se quisesse, também no futuro. E desde o início presenteia-nos com um rodízio de personagens que frequentam mesmas frases, num estilo muito difícil para um escritor, mas que Pio Furtado logra sucesso. Seus parágrafos são, como regra, longos e isso exige do leitor paciência e atenção, porque a quantidade de informações é como uma cachoeira.

    O tema é interessante e desperta a curiosidade: a justiça por mão própria pelo confessor que busca a reparação para as vítimas que choram no confessionário. Lembrei um conto que escrevi há muitos anos, sob o título Oferta Especial, onde os pais de dois jovens, um assassinado e outro sobrevivente de um assalto para roubar tênis, e o que eles fazem por conta própria.

    Surge o antagonista, um promotor de justiça, noivo de parente do sacerdote que desconfia do padre como autor dos crimes na paróquia.

    No romance policial existem dois segredos de escritura que, não sendo bem-sucedidos, o Autor não logra sucesso: os anticlímaxes, o clímax e o(s) ponto(s) de virada. O anticlímax, como o termo sugere, brinca com o leitor, parece ser o clímax, o momento maior do conflito, mas que é desfeito a seguir; e podem ser vários anticlímaxes. Mas clímax, o momento maior, é só um, e deve ser bem-posto ao final do texto. E Pio Furtado sai-se bem na empreitada.

    O ponto de virada, que podem ser vários, mas não muitos; talvez dois ou três; é o pontapé na cadeira para derrubar o leitor. A narrativa está sendo conduzida para uma direção e altera seu rumo. Há um ponto de virada neste livro e não me detenho neste ponto para não subtrair ao leitor o prazer do texto. Poderia dizer algo sobre a verossimilhança, muito presente no romance policial, mas que, sendo esse gênero literário, permite discutir-se sua qualidade ou intensidade. Veremos o que resultará no espírito do leitor ao deparar-se com o ponto de virada nesta obra. Que é, basicamente, o único.

    O romance, como narrativa longa, é desafio para o escritor. Romance policial é desafio mais instigante, o Autor está sempre sobre o fio da navalha, um escorregão e põe tudo a perder. Friedrich Dürrenmatt escreveu A promessa com a vontade de criticar o gênero, é o que dizem. O seu personagem-narrador afirma, a certa altura: Para ser sincero, nuca tive os romances policiais em alta conta e sinto muito que o senhor também os escreva. Perda de tempo. Vocês constroem ações de um jeito lógico, e tudo segue como um jogo de xadrez, aqui o criminoso, aqui a vítima, aqui o cúmplice, aqui o beneficiário; basta que o detetive conheça as regras e refaça os movimentos, logo ele terá posto o criminoso em xeque, ajudado a justiça a triunfar. Essa ficção me deixa furioso.

    EM NOME DO SENHOR é para ser saboreado como o vinho, aos goles, bem acomodado. Pio Furtado sabe escrever. O mais cabe à recepção do leitor.

    José Carlos Rolhano Laitano

    Cadeira nº 27 da Academia Rio-Grandense de Letras.

    www.josecarloslaitano.com.br

    Obras do autor

    CAPA%20NEOPLASIA%20(400x600).jpg

    Neoplasia (2013).

    CAPA%20ANATOMIA%20(400x600).jpg

    Anatomia de um certo cirurgião (2015).

    CAPA%20VILIP%c3%8aNDIO%20(400x600).jpg

    Vilipêndio (2016).

    O Derradeiro Bandeirante (2018).

    CAPA%20DERRADEIRO%20(400X600).jpeg

    Em nome

    do Senhor

    – Padre, dai-me a vossa benção porque pequei.

    – Pois diga, meu filho, fale, abra o seu coração para o Divino Perdão.

    Todas santas sextas-feiras a invariável escrita, no costumeiro ramerrame de ouvir cochichares segredados e arrependidos; dias de confissões, e as decorrentes penitências, que entravam tarde-noite adentro, desde o abrir da Igreja de Santo Aarão, com o penoso arrastar, puxando para dentro, as duas maciças folhas do antigo carvalho, entalhadas com as cruzadas chaves de Pedro; e se iam até ao esgotamento do confessor, de tímpanos fartos, afadigado e deprimido pelos pecados da humanidade. No topo do Morro da Matriz, única elevação naquela região litorânea e portuária, a basílica era uma construção imponente, solenemente agarrada à pedra, a cumprir o que bem determinara o Fundador, exibindo a alteza e a celsitude da sua arquitetura bizantina: uma construção retangular, com dois prolongamentos laterais – o batistério e a capela secundária – assemelhando-se a uma cruz tombada; o domo central, sustentado por quatro enormes arcadas de pedra e vazado por quarenta janelas arciformes, oferecendo a ilusão de um halo celestial; os dois campanários, terminando, acima dos sinos, em pontiagudas torres que, de tão altas, pareciam espetar o firmamento; e entre elas, embora também ainda muito acima do solo, uma longa e estreita sacada, guardada por um parapeito em barra grega, como num minarete, um privilegiado observatório da banda ocidental da cidade; à frente, no adro circundado por uma mureta de rochas argamassadas e caiadas, encimada pelas estátuas dos evangelistas, a praceta de conversações, encontros e fofocares após os cultos; a nave central de paredes maciças, fenestradas por mosaicos vitrificados e, internamente, às paredes laterais, entre pequenos oratórios e nichos de santos, os confessionários; o altar-mor, ladeado por seis colunatas jônicas da mais pura, e santa ardósia, içado do chão por cinco degraus em mármore levigado, tendo, ao fundo, em meio a muitos arabescos dourados, no fechar dos olhares, o Santo Lenho, em bronze, mas à imitação de madeira; lateralmente, à esquerda, projetando-se como uma estrutura em balanço, desafiando as leis da gravidade, uma prateleira, levitada por contrapeso, para albergar o púlpito, em robusto mogno-africano, a suportar as grandes homilias e pregações, quando não, os pulos e os soqueares dos mais ardentes e exaltados pregadores que se agitavam e debruçavam-se sobre o seu peitoril; ainda, atrás do templo, nas desproporções e despretensões das moradias dos mortais, unida por um corredor, a casa paroquial; meia-dúzia de acanhadas e simplórias peças a acomodar o clero secular, a dizer, o presbítero e alguns eventuais hóspedes de outras paróquias, auxiliares nos santos dias ou em outras comemorações religiosas. Por muitos anos daqueles tempos, haviam-se, os paroquianos, e a cidade em geral, com um cura, que, de pronto agradara, e mais do que tanto, logo caíra nos gostos e apreços populares. Era, o padre Filisto Clemente, um homem agora já auferido pelos setenta e oito anos, frágil como cristal de açúcar, magrinho, fininho como agulha de cozer saco de linhagem; caniço de bambu verde, tinha-se em pele e osso, uma caveira forrada de rendas e vestida por uma longa, e algo puída, batina preta, abotoada por pelotinhas milimetricamente enfileiradas do colarinho à barra; quem, de repentino, o visse às ruas em dias de vendaval, juraria ter visto uma pandorga escura, em forma de sotaina, voando rasante ao chão; ao sol, a proteger a calvez debruada de brancos fios, usava um capelo negro, um galero de asa larga com cordões que terminavam em borlados quase ao peito; a completar a esquálida figura, detinha também alongada a face, com o nariz afilado, os lábios espremidos e o queixo ligeiramente pontudo; e não que fosse depauperado, decadente ou doente de enfermidade consumptiva; isso não!; apenas que era assim, constitucionalmente alquebrado, desfortalecido como menino anêmico de vermes; e não que andasse por arames ou decaísse de fome, de vez que, aos clérigos, no geral, nunca lhes faltam a boa comidinha caseira. Se fraco das carnes, uma fortaleza do espírito: fé inquebrantável, força moral, piedade extrema e augusto caráter no patamar de todas as virtudes; tenacidade, perseverança, dedicação, e uma bondade de Calcutá que se esvaía nos mansos olhos castanho-claros; a caridade das boas ações; sacerdócio de solidariedade e filantropia, como num mecenato; de benfazer o bem, laborando pelos pobres, pelos oprimidos e pelos injustiçados, muito além do ordinário, a servir de chavão: quem dera fosse o padre Clemente! Santinho e grande pregador, o reverendo Filisto; e sempre pronto para os horrores das confissões, mas que, estas sim, dentre todas as outras atividades de dedicado prelado, o faziam penar. Usava, invariavelmente, como numa cisma, o mesmo confessionário, aquele localizado quase à porta, a direita de quem entrasse: uma hermética e maciça casinhola na amaritude e austeridade da madeira-de-lei escurecida, nos brilhos e nos lustrados inquisitoriais; um estande pesado, "o quantum sufficit", a esmagar, embaraçar e compungir o contrito; por fora, encerrava-o uma portinhola entalhada em embrechados e garatujas como um emaranhado de tipos geométricos às formas de flores e plantas; para o arrependido, no máximo, um genuflexório de estrado baixo, quase a ajoelhar-se ao rés do chão, no duro da tábua, e melhor que tivesse algum prego de cabeça para fora, para já ir dando tentos às penitências, além de uma mísera prateleirinha a apoiar às sudoréticas e vacilantes mãos postas; ao interior, nada além de uma rústica cadeira de espaldar alto forrada de surrado veludo em matalassê arroxeado; e, de permeio, a separar o confessor e o penitente, como um véu que separasse as forças do bem e do mal, o látice recoberto por uma diáfana cortininha fumê. Confessionário: lugar de pôr cobro e refreadouros, pois, agora é que são elas! Aquele, em especial, diferente não era, antes, tinha pelo abracadabrante aspecto o poder de desinquietar o bicho dos remorsos, como a cutucar fera com vareta curta. E já lá vinha um a cerrar os olhos e, numa tropelia de palavras ditas num só fôlego, pois que se parasse, a respirar que fosse, pensava, e recuava do ditério; e uma que vinha a contar pecadilhos, de ciumezinhos, de mesquinharias, de frioleiras e outras bernardices, historietas nada a haver, mais para fofocagens da paróquia do que coisas a dever; a não falar de uma série interminável de diabre-tezinhos pubescentes, franganitos na muda da voz e mal apontados os buços barbiloiros; tinham os olhos como bolitas de fogo, as mentes de porongo, maus por dentro e por fora, todos estouvados e arrojadiços, sempre aprontando travessuras do cabo, que à época os faziam orgulhosos, coisas de contar vantagem, de se por em letras de forma a destacar no curriculum vitae – cada qual no seu máximo de encrencas, desde o espiar de calcinhas ao roubar das garrafas de leite dos vizinhos; tinha daqueles que, em quase imperceptíveis vapores etílicos, a dar coragem, vinham de longos introdutórios e preambulares, como a distrair e cansar o pobre do ouvinte, para, depois, no meio, ou ao cabo, quase an passant, largar um cabeludo que, este sim!, valesse a pena desembuchar-se a desabafar a alma; e uma que os trazia escritos a não esquecê-los no nervosismo de contar e que, depois de ditos, ou melhor, de lidos, enquanto ouvia o que vinha do lado de lá, os picava em mínimos pedacinhos e os punha no bolso, a não vazarem e, Deus o livre, que fossem remontados ali adiante; e mais outra mulher, que batia a carteira do próprio marido para comprar mais aos filhos... aquele sovina!; e ainda mais uma embotada das faculdades e apoucada das ideias a dizer que pecara por comer de coisa que não lhe autorizara a patroa; havia os que vinham com faltas pregressas, remotas, nos pretéritos mais-que-perfeitos – havia feito, tinha cometido, pecara – dizendo coisas então de meia-idade ou quando não do onça, escorridas nas ampulhetas do tempo, exumadas e, pior, contadas e recontadas, perdoadas e reperdoadas, e por demais penitenciadas, como se fossem os únicos numa vida pecadora; e, como não, tinha os pecantes que inventavam delitos e infrações menores, escolhendo-os, a sofrerem leves penas, e a não contarem os que realmente cometiam, mas tomando-os, no mesmo ato, como também absolvidos; e, até, um menino, na casa dos dez anos, que um dia lhe viera, todo sestroso, a dizer de um gravíssimo crime, uma grande maldade que o consumia em remorsos e que, depois de instantes de indecisão, talvez pensando no que diria aos pais, caso não o fizesse, disparar: Seu padre, eu matei um pinto... eu matei um pinto... eu matei um pinto, com... com uma pedrada certeira. Pobre humanidade! – pensava o bom clérigo – como se repetem os seus pecados! Sabia-os todos. Fosse por um ou por muitos, o invariável era que o que ia a confessar o fazia sempre furtivamente, espiando ao redor, a não encontrar vizinho ou conhecido à íntima e surdamente a acusá-lo: Aonde vai você’? Então, confessando heim! Pois sim! Que diabos terá feito! De assim ou de assado, uma vez entrado na gaiola, o tonsurado ministro com a sua generosa e magnânima voz suave, ou o próprio confessionário por ofício, soprados aos seus ouvidos, arrancavam os segredos e as confidências, a fazer com que quem se dispunha a contar um santo acabava por dizer um santuário. E a todos a mesma regra: inculpação, perdão e absolvição. Usualmente as suas penitências eram leves, de uma Ave-Maria a uma dúzia de pais-nossos, raras vezes um terço inteiro, com Salve-Rainha e tudo o mais. Todavia, se era indulgente e benévolo com as faltas, as iniquidades, as transgressões e as falhas humanas, os crimes hediondos, os facínoras, os malfeitores contumazes, os celerados desalmados e perversos, os homicidas inclementes e os criminosos brutos, duros e frios, que muitos havia, transtornavam-no, ao ponto de quase desfalecer; nestas circunstâncias, se transmudava da bondade à apreensão, como se num transe de expectativa, num suspense de horror, e uma cólera secreta, interior, o inflamava; seus olhos se punham ascendidos, mas numa estranha fixidez, num além invisível, dando-lhe um olhar impassível e severo; tomado de uma curiosidade malsã, desenhava-se-lhe, ao rosto, uma funda aflição, porém, a despeito da raiva, da boca para fora, só lhe saiam palavras de conforto e perdão. Mas qual! A tudo bastava confessar o crime? Isso!? E pronto!? Tão rápido e fácil? Perdoava-lhes o Senhor, entretanto, que o desculpasse o Conselheiro Adamastor, como humano que, por óbvio o era, jamais haveria de os exculpar ou indultar. E todos haveriam de pagar, na conta da sociedade e das pessoas que, com seus atos indecorosos, chocantes, de farta-velhacos, injuriaram e ofenderam. Que lhes fossem poucas as chamas do inferno" – pensava, numa renhida luta interna entre a santidade e a humanidade. Nesta dualidade e nos dilemas de Castor e Polux, a duas mãos esquerdas, na ambivalência entre o profano e o consagrado, metido em fofas e debuchos, entrado em talas e sarilhos, a pele de santo coberta com as escamas do diabo, intimamente sofria o que enjeitara o cão, e mais do que couro de fazer torrado. Quando, nestas ocasiões, saía do confessionário, era uma avezinha cansada de longo voo pela costa, as narinas batendo palpitantes, o corpo alquebrado, as pernas tremulantes, empalidecido a ficar marmóreo, empinava um litro de bem concentrada água de laranjeira, caía de borco no seu catre e adormecia banhado em suores. Na manhã seguinte – que padre de paróquia se levanta antes das cinco – só dava de melhorar da crise vivencial entre o real e verdadeiro e o imaginário e sonhado, depois de recitar o Ângelus e dizer a missa das seis, quando, após a benção final, dizia para si mesmo: Et Verbum caro factum est. Et habitávit in nobis. E já caída a venda dos olhos, dava de braços ao trabalho. Era sempre visto junto dos pobres, dos miseráveis, dos aleijados, coxos e rotos, confortando-lhes as almas infelizes, como também os corpos lazarentos e esfomeados; nem uma nem duas deixou de comer levando o próprio prato a dividi-lo com os famintos e com aqueles que, aos pedaços, a cada dia, morriam mais um pouco, roubados da comunidade que lhes voltava a face; neste encargo, também poucas não foram as vezes em que foi enxotado pelos donos de bares e restaurantes quando, com uma lata de alumínio, outrora recipiente de cinco litros de azeite português, percorria-os a catar-lhes os sobejos, os desperdícios e as raspas do bem viver. Aqui do bom que sobra é para os cachorros, seu padre, e não para estes vadios que infestam as nossas ruas– diziam alguns, e outros, sim, sim, mais tarde; e o mais tarde nunca que vinha. Que fazer se quem a rico não empresta, a pobre nem promessa? Depois eram as aulas de catecismo, as reuniões com os paroquianos, a organização das festas beneficentes, as obras de conservação da igreja, as pastorais da saúde, as visitas aos enfermos nas casas e nos hospitais, os batizados, as crismas, os casamentos, as novenas, as missas de horários, e mais isso e mais aquilo, sempre acolhendo, orientando e pregando, num intenso prestar de quem não é para si, mas para vós, tentando, por todos os meios e feitios, fazer com que a humanidade salvasse-se a ela mesma. Por companhia, às poucas horas surdas do dia, o sacristão e a empregada-diarista da casa paroquial. O sacrista, que atendia por Mongário, de cuja família desconheciam-se as cascas e as lascas, simplesmente, desempregado, lá um dia aparecera e ficara; era um tipo estranho e um tanto mal engendrado. Não muito alto, mas tinha a socada corpulência de um carregador de feira-livre, dir-se-ia, numa apedeuta descrição, de consistência atarracada, e uma ligeira giba, uma saliência convexa ao dorso do pescoço, talvez que fosse um lipoma ou uma bossa, e que não chegava a caracterizar-se como uma corcunda, pois que não lhe deformava a postura, estando mais para um cupim de gado zebu do que para corcova de dromedário; tinha uma feieza que acanhava, uma figura de fazer horror à primeira e à última vista, decerto por isso mesmo, falava pouco, e acovardado como um boi-do-cu-branco, mas obediente qual menino de coro; nas vestes de acólito, calça vermelha, túnica branca até a cintura e daí prolongando-se um tanto mais num rendado de filó, e com um pequeno capuz de coroinha, até que passavam desapercebidas as suas atrigueiradas inadequações pessoais; contudo eficientíssimo, isso nenhuma dúvida; trabalho escondido e competente na arrumação e nos arranjos da sacristia, dos livros litúrgicos, das roupas, das alfaias e trajes e objetos necessários às missas, bem como na limpeza das imagens sacras, a lhes espanar dos ombros o pó e os sobejos acumulados dos pedintes, e na ordem, guarda e conservação dos espaços e bens materiais da igreja; e, ainda, a sinalizar e a não deixar de lado as raríssimas qualidades pessoais, pois que, todos, por piores que sejam, algumas têm, se feios lhe eram o pórtico e a frontaria, belíssima era-lhe a voz de tenor lírico, aveludada e redonda, que, ao entoar os santos, emocionava; não poucas eram as beatas que, no fundo das concentrações e com sinceridade de corações, se iam às lágrimas, ou que fossem apenas arquejos, afogueares ou fervorosos desvelos, aquelas notas, falando-lhes às almas, as tocavam nas sensíveis mataduras; de resto passava totalmente inapercebido, na incuriosidade de objeto desleixado. Quem suporia ser dele aquela voz? Que bisonhice! A limpar o chão da igreja e demais pesadas tarefas: trepar na alta escada de duas pernas para limpar os alpinos vitrais, trocar píncaras lâmpadas, afugentar das cantoneiras sobranceiros morcegos, varrer montesinas teias de aranha, e mais dar manutenção às torres e aos seus campanários, pois que para tanto não chegava o sacristão, e no mato bem não se dá o carneiro, tinha-se os braços do Leocardio; Zé Leocardio, melhor dito, e por demais conhecido dos paroquianos, ex-pintor de paredes, daí o gosto pelas alturas e escadas, agora, carteira-assinada em emprego regular de faxineiro; era um tipo longilíneo, muito que assentado no macacão de brim do qual nunca saía, na casa dos trinta e oito, quarenta novembros, vez que novembrino, do Dia de Todos os Santos; daqueles que cuida de si e que Deus valha pelos outros, tinha os membros fortes e duas manoplas avermelhadas de invejar qualquer boa pá; tacanho, sempre de tacha arreganhada, não que fosse um asneiro ou um mentecapto, porém taciturno, e lacônico como um pássaro na muda, tipo cão que não ladra, mas que a tudo observa. A arrumadeira-cozinheira da residência paroquial era uma gorda matrona, dona de senhores úberes de dar mamadura e aleitamento a faminta ninhada, e, procurando não se achava, segura-peito, corpinho, baluarte ou amparo que sustentassem aqueles tais marmelões desajeitados; peitaria transbordante dependurada e mal equilibrada em sutiãs laxos; usava, por cima de enáguas

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1