Estação Deslembrança
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Estação Deslembrança - Helcio José Gonçalves
Copyright © 2023, Helcio José Gonçalves
Gonçalves, Helcio José - 1973
Estação Deslembrança: Memórias, contos e causos quase esquecidos/ Helcio José Gonçalves, 2023
180p.
ISBN 978-65-00-64166-0 1.
Livro Digital
Crédito da capa:
https://pixabay.com/pt/photos/locomotiva-a-vapor-comboio-fuma%C3%A7a-4044180/
INDICE
DEDICATÓRIA
Dedico esse livro a todas as pessoas que tiveram suas histórias esquecidas.
PREFÁCIO
Estamos vivendo na era da iteratividade, acesso ilimitado a conhecimento e informação, conectados vinte e quatro horas pela internet, redes sociais e smartphones. Nesse novo tempo presenciamos um distanciamento maior das novas gerações do mundo real, mergulhadas cada vez mais em relacionamentos e experiências virtuais. Desfrutamos de um conforto e fartura jamais vistos, mas que por outro lado nos condiciona a pressões nunca vividas em época alguma, impostas por estética, dietas, saúde, sucesso, conquistas e realizações. Um tempo cercado de competições e consumo. Tudo isto tem nos cobrado um preço alto, seja pela falta de tempo, nos privando do contato com familiares e amigos, ou por tornar a vida complicada demais.
Essa correria do dia a dia nos faz por vezes invejar a simplicidade do cotidiano de nossos pais e avós. Num tempo onde não havia pressa e se respeitava o ritmo da vida. Ritmo esse muitas vezes imposto pela natureza e limitações das tecnologias da época. Tempo onde o rádio era o único meio de comunicação, tempo de experiências verdadeiras, de honra, respeito e do contato humano.
Vez ou outra nos permitimos viajar ao passado, através de lembranças e histórias que nos trazem um misto de felicidade e alívio, que nos resgatam, mesmo que por alguns instantes, destes sufocos e pressões da vida moderna. De certa forma a nostalgia nos traz um alento, nos deixam mais serenos e ao mesmo tempo mais reflexivos sobre o que realmente importa na vida.
A partir de agora você embarcará na trajetória de vida de uma pessoa comum, mas com uma bela história, com pinceladas de contos e causos que não mereciam cair no esquecimento. Divido estas divertidas histórias com você e ficaria muito agradecido se continuassem a ser contadas, para que se perpetuem por muitas gerações.
Nêne, personagem da nossa história
A locomotiva a vapor avança furiosa pelos trilhos cuidadosamente cravados nos dormentes de madeira de lei da estrada de ferro que corta a densa mata virgem verde esmeralda. O ritmo ofegante da caldeira irrompe o silêncio da calma paisagem, fazendo vibrar as pedras do aterro do canal do Linguado. As águas escuras do mar, divididas agora pelos trilhos, refletem através da maré alta a longa composição viajando com pressa para seu destino.
Logo o ritmo incessante dá espaço para o estridente som dos freios de metal, fazendo o trem abrandar seu rompante e reduzir a velocidade lentamente até parar em frente a caixa d´água, para abastecer a sedenta locomotiva. O trem se aquieta e aos poucos dá pra ouvir novamente o som do canto dos pássaros e o ciciar das cigarras. Uma leve brisa carrega a bela fumaça branca expelida pelo trem. Alva como algodão a imensa nuvem de fumaça se eleva e contrasta com a imensidão do céu azul da pequena e isolada Vila do Miranda, no sul do mundo.
A Vila do Miranda não tem história nem registros, consta que se originou de uma vila erguida para abrigar as centenas de operários que construíram a estrada de ferro a partir dos idos de 1905, cortando a baia da Babitonga entre manguezais e a abafada floresta atlântica da ilha de São Francisco do Sul, terceira cidade mais antiga do Brasil. Há que conte que Miranda tem esse nome por ser a morada de um simpático velhinho que vivia num barraco a beira de uma frondosa figueira, ponto de descanso para os viajantes que paravam ali para descansar enquanto tomavam água fresca do poço e trocavam uns dedos de prosa com o senhor Miranda.
Durante a construção dos trilhos um frenesi tomava conta do local. Havia muita gente envolvida na construção não só da linha férrea, mas também das linhas de telégrafo. Logo ao amanhecer a fumaça dos fogões a lenha subiam pelos chaminés e o cheiro do café fresco espalhava-se pelo ar. Café servido em bules e canecas de lata, algumas esmaltadas, pintadas cuidadosamente a mão. Locomotivas a vapor, grandes e pequenas, iniciavam um vai e vem constante para o transporte dos operários por entre pilhas e pilhas de lenha, carvão, trilhos e dormentes. O apito estridente anunciava a partida para a labuta de mais um dia Operários corriam e se espremiam sobre os vagões e vagonetes. Quando todos partiam para os trechos de obras uma outra turma se colocava a cuidar da preparação da boia de tanta gente. Tachos de arroz, feijão, carne seca e muito tempero borbulhavam ao fogo aguardando para encher as marmitas e serem levadas até os famintos operários do trabalho pesado.
Ao final da tarde a volta dos operários do trecho era quase uma festa. Barricas, bacias, gamelas, sabão e latas de água eram usadas para lavar o suor, a graxa e aliviar o calor. Ao pôr do sol lampiões a querosene começavam eram aos poucos acessos nas cabanas e tendas estendidas ás margens da ferrovia, dando um colorido diferente para a escuridão da noite que se achegava silenciosa e se tornava soberana, exceto pelo céu esplendidamente estrelado. Depois da janta alguns operários se aprumavam em rodas de conversas e outros a pitar. Alguns mais adictos ao vício não resistiam a uns goles de aguardente, que depois de algum exagero, embriagados, acabavam por criar confusões e quebra-paus.
Logo que o trecho da ferrovia entre São Francisco do Sul e Parati ficou pronto acabaram-se as agitações do dia e da noite. De um dia para o outro não havia mais o cheiro de café das manhãs, nem vai e vem das locomotivas, nem mais o brilho dos lampiões enfileirados cortando a noite, nem o forte odor dos palheiros e cachimbos, nem o aguardente que servia de combustível para as brigas e discussões dos mais valentões. Todos os operários e engenheiros desarmaram suas tendas, juntaram suas ferramentas, amontoaram os trilhos que sobraram, embarcaram nos vagões e foram-se embora dali para sempre, seguindo a construção da estrada de ferro serra acima.
A estrada de ferro outrora trouxe progresso para tantos lugares, mas não para a Vila do Miranda. Não foi erguida nenhuma estação lá, não era ponto nem de parada nem de partida para passageiros, nem para mercadorias ou comércio. A ferrovia tão-só cortou a vila, servindo apenas de caminho para os trens. A paz e o silencio voltaram a reinar, interrompido apenas quando o trem pedia sua breve passagem.
O lugar passou a ser ocupado por poucos ferroviários que ficaram para trabalhar na manutenção da ferrovia naquele trecho junto com suas famílias e muito provavelmente por alguns ex escravos dispensados por seus senhores pela recém promulgada Lei Áurea em 1888. Essa gente de alguma forma tinha encontrado alguma forma de tirar seu sustento na construção da ferrovia ou no cultivo de pequenas lavouras.
Foi neste lugar pobre e esquecido que nasceu Nêne, no verão de 1936. Menino moreno, de sobrancelhas cerradas, que foi calçar seu primeiro sapato somente aos quatorze anos. Pobreza nunca foi problema, Nêne era rico de coração e sabia aproveitar bem as coisas simples da vida.
Sua mãe se chamava Maria de Borba Gonçalves. Pequenina, de pele morena, cabelos negros encaracolados e olhos verdes como esmeralda, olhos herdados da Vó Branca
, que diziam ser uma imigrante vinda da Bélgica. Contam que os pais da vó Branca, juntamente com outras famílias de imigrantes europeus, navegavam pela costa brasileira e depois de um trágico naufrágio algumas destas famílias acabaram se estabelecendo em Barra Velha, no litoral norte catarinense. Maria não tinha dedos em uma das mãos, todos os seus cinco dedos foram esmagados enquanto trabalhava num engenho de farinha de mandioca ainda menina. Farinha de mandioca e peixe eram a base da alimentação na região, sendo comum crianças e mulheres trabalharem nas casas de farinha ou de açúcar enquanto os homens trabalhavam na roça ou na mata atrás de lenha e caça. A mão da menina durante o trabalho foi engolida e ficou presa por dentre as imensas e pesadas engrenagens falquejadas em madeira. Quando conseguiram desprender a miúda mão de Maria da moenda os seus dedinhos estavam distendidos e dilacerados, se encompridando mais que um palmo do tamanho normal. Para que pudessem tratar os ferimentos tiveram que amputar todos os seus dedos, sem qualquer anestesia. Com