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Em Busca Da Curiosidade
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E-book421 páginas5 horas

Em Busca Da Curiosidade

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Sobre este e-book

Nos três anos que Martin Roque e seu grupo de amigos, Os Curiosos, passaram correndo atrás dos mistérios do terceiro livro de Alice no País das Maravilhas, eles conseguiram tudo que procuravam: a verdade. Agora que o segredo de Lewis Carroll e Alice foi revelado, Roque achou que todos os seus problemas se resolveriam. Entretanto, a sua atual realidade está tudo, menos resolvida. Com a chegada de um visitante inesperado que traz novas informações secretas sobre o passado de Carroll, Martin descobrirá que há mais sobre aquela história do que qualquer um dos Curiosos pudesse inicialmente imaginar. O grupo vai perceber que os mistérios por trás do conto de fadas e seu escritor estão longe de acabar, que o que eles tinham descoberto há um ano era só o começo de uma ameaça bem maior. Agora Martin, Sabrina, Lucas e até mesmo Nicole, terão que buscar uma maneira de recuperarem a tão afamada curiosidade que os instigou a resolver os enigmas dos anos anteriores – curiosidade esta que temem ter se perdido para sempre no passado... E, assim, resolverem uma nova jornada o mais rápido possível. Porque, dessa vez, não é só Martin que está em perigo, nem só seus amigos, nem mesmo apenas Oxford... a ameaça de agora tem o poder para virar todo o mundo de cabeça para baixo.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento13 de jul. de 2019
Em Busca Da Curiosidade

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    Em Busca Da Curiosidade - J. J. Coelho

    Abaixo aos Curiosos

    C

    uriosidade.

    Nunca dantes no mundo houve um instinto tão revolucionário.

    Nunca dantes houve algo que movesse tanto o que está a nossa volta.

    Nenhum outro sentimento foi capaz de concretizar o que a curiosidade conquistou.

    A curiosidade edificou o ser humano e tudo que ele conhece como verdade hoje. A curiosidade glorificou as suas conquistas. A curiosidade fez o ser humano ser o que nenhum outro animal pôde ser. Por causa desse instinto, desse único e peculiar instinto, o homem partiu de mais um consumidor da cadeia alimentar para uma seção à parte. O homem passou a controlar os quatro elementos, a organizar o ambiente natural de acordo com as suas vontades, plantou, modificou, criou, construiu, descobriu, tomou posse. Até que, por fim, o conhecimento adquirido pelo homem através da sua curiosidade foi tão grande, que ele se tornou poderoso o suficiente para manejar as coisas ao seu redor com um simples toque de um dedo.

    Como se ele fizesse mágica.

    O ser humano viu que a ordem do mundo o impedia de voar, mas ele foi rebelde o suficiente para ser curioso e conseguiu achar meios de usar a própria natureza para voar e alcançar os céus – e além deles; o homem atravessou as nuvens e tocou as estrelas, deu piruetas nos orbes... rindo da cara da lógica natural do mundo que o abrigava. Nós passamos a controlar o próprio tempo. Fomos capazes de inibir doenças e outras pragas naturais que o mundo tentou usar para nos derrubar, sendo possível controlar até mesmo o nosso tempo de vida. Encaixotamos e empacotamos os ventos, a água, a terra e o fogo – tendo eles sempre à nossa disposição para uso na hora em que quiséssemos. A curiosidade ergueu fortalezas e fez o cosmos, literalmente, girar de acordo com as vontades humanas. Hoje, é possível dar a volta nos planetas, é possível prever – e até mesmo mudar (!) – o próprio clima. O ser humano encontrou meios suficientes para criar tempestades ou fazer chover, arquitetou casas e estruturas de um meio que as fizessem sobreviver a terremotos e tsunamis (fazendo das catástrofes naturais algo frívolo e indiferente aos homens), domou as feras mortíferas e gigantes das selvas, e também foi capaz de controlar até mesmo as feras mortíferas que haviam sido feitas para serem invisíveis aos seus olhos! E tornou-se praticamente imortal! O mundo, e tudo que o compõe, se curvou diante dos humanos e do poder da sua maldita curiosidade.

    A curiosidade nos fez Deus.

    Mas, como diz o mais antigo e irrevogável dos ditados:

    Ás vezes, a curiosidade mata o gato.

    Como tudo no mundo, o instinto curioso também tem seu lado ruim. Assim como tudo no mundo, a curiosidade está em equilíbrio na balança da ordem usual das coisas. Da grande quantidade de coisas boas que se pode adquirir da curiosidade, a mesma quantidade se obtém de coisas negativas. A maior benção e a maior maldição.

    Milhões morreram por causa da sua curiosidade. Civilizações foram dizimadas, guerras travadas, cientistas que foram mortos por portarem a verdade dentro de uma sociedade ignorante, pequenas palavras que se esticaram em parágrafos, conflitos que começaram como pequenas discussões e terminaram em tragédia, caos e sangue, sem esquecer de mencionar o fato de que a curiosidade nas mãos de alguns pode se tornar uma arma... Milhões de coisas tiveram de ser sacrificadas em prol da colheita e posse da verdade. A curiosidade, e o caminho que se trilha a partir do momento em que você se permite ser guiado por ela, é como o enredo de um livro de mistério: imprevisível e cheio de reviravoltas.

    Será que vale a pena?

    Onde termina o limite da busca pela verdade?

    Até onde vai a linha sã do que se deve ou não sacrificar?

    Será que tudo isso valeu a pena? Era o que Martin Roque pensava.

    A curiosidade também havia atingido ele, desde bem cedo. E, a partir daí, passou a segui-lo feito uma sombra. Uma sombra que não parava de crescer com vida própria, arrastando mais pessoas para aquela toca de coelho que levava a um destino desconhecido.

    Tudo havia começado com aqueles livros, As Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho, que levou o garoto à uma lenda.

    Uma lenda sedutora e misteriosa. O autor do tal livro que ele tanto admirava tinha escrito um terceiro livro e escondido de todo o público, deixando pistas para que os interessados pudessem ser, um dia, capazes de encontrar o misterioso artefato e os segredos que ele guardava. Essa mesma história atraiu Martin Roque e mais três amigos – Lucas, Sabrina e Nicole – para uma jornada na qual eles nunca seriam capazes de esquecer. Martin sentia que ele era capaz de encontrar as respostas para o tal mistério. Sentia que ele era mais apto para aquilo do que qualquer outra pessoa. Que algo em especial o chamava para aquela aventura. E ele não estava errado. Mas não só havia algo de especial naquela história como também algo de muito errado. O grupo de amigos, que – olha só! – ele decidiu nomear de Os Curiosos, passaram a se dedicar a buscar as chaves para destrancar as portas dos obstáculos que surgiam na sua caça. E sua persistência trouxe resultados. Eles desvendaram enigmas, segredos e códigos. Eles chegaram a algum lugar. Uma armadilha, a verdade. Haviam sido vítimas de sua própria curiosidade. Traições, mentiras e desordem. Aquela curiosidade foi o desencadear de mortes e tragédias. Uma farsa que mudou a vida de todos os envolvidos.

    Uma fala popular atual pergunta: "o quão fundo vai a toca do coelho?" Martin, com certeza, era uma das pessoas que arriscariam responder à essa questão. Ele se arriscou, teve um deslumbre rápido do que era o que se encontrava no final do poço, e ficou aterrorizado com o que viu.

    Digo um vislumbre rápido porque era isso que Martin havia tido.

    Só um vislumbre da verdade que o margeava.

    Por mais que ele achasse que estava tudo acabado desde aquele incêndio na biblioteca, mal sabia ele de que estava muito, muito enganado.

    Ele só tinha acabado de cair.

    Era apenas o começo da queda.

    E quanto maior a queda, mais feio é o tombo.

    Enquanto ele ajeitava os seus óculos sobre o nariz, a sua visão se ajustava para que ele pudesse encarar a multidão de alunos que estavam diante dele. A sala em que se encontrava era como todas as outras da universidade de Oxford, espaçosas e luxuosas com a sua arquitetura remotamente elegante. Em cima de um palanque, pequeno em comparação com a vasta extensão de assentos que tinha na sala de aula, Roque estava prestes a finalizar a sua apresentação de slides que o acompanhavam na palestra que ele já tinha apresentado diversas vezes. Os seus alunos o observavam com um misto de admiração e incredulidade. As expressões eram bipolarizadas: entretido, entediado, engajado e debochado. Ele já tinha se deparado com os mais diferentes tipos de pessoas durante a sua vida, tinha o dom para atrair o diferente, disso tinha certeza, e a sua recém escolha de se tornar um professor em Oxford só havia provado isso ainda mais.

    O fato de todos os seus alunos saberem sobre quem ele era, assim como toda a cidade, todo o estado, boa parte do país e, talvez, de algumas outras partes dispersas do mundo, só deixava a sua personalidade mais exposta. Provavelmente tinha sido uma má ideia ter decido pegar um cargo de professor no mesmo lugar onde ele era suspeito de ter incendiado, e pior, ter escrito um livro sobre tudo o que aconteceu. Alguns acharam estranho o fato de deixarem Martin trabalhar ali, mas, sem Gardnet no comando, a universidade havia virado uma anarquia. Mas talvez fosse isso que atraía tanta atenção dos alunos para as suas aulas: "Olha lá, é o professor esquisitão das conspirações que diz que colocou fogo em Oxford para salvar as pessoas de Alice Liddell e Lewis Carroll que, vejam só, ele diz terem sido a bibliotecária, Lacie, e o chanceler, Gardnet., Nossa! Não acredito, vamos ir na aula dele hoje para dar umas risadas?, Vamos!"

    Geralmente, os professores são as figuras de autoridade que tinham que estabelecer a ordem quando os alunos se juntavam para fazer bullying com um aluno indefeso. Mas o caso, como sempre, tinha de ser diferente para Martin. Mesmo sendo o professor, ele nunca havia se sentido tanto como um aluno indefeso. Já tinha perdido as contas de quantas vezes tinha sido abordado por sussurros nada discretos nos corredores. Coisas como louco, lunático, doente e até frases mais longas, o hospício ligou procurando por você já tinham se tornado rotineiras. Tanto que, se algum dia alguém o chamasse bem alto por louco, Martin temia se virar para atender o chamado educadamente: Sim? Como posso ajudar?

    O seu livro havia se viralizado em menos de três meses após a sua publicação. Todos queriam ler os relatos dos acontecimentos que explicavam a tragédia em Oxford e o Caso Alice. Os comentários eram sortidos. A maioria das pessoas que o encontravam ficavam assim: "Você é o escritor de ‘Em Busca do País das Maravilhas’?! Nossa, como você tem coragem de brincar com a morte das pessoas desse jeito? E ainda ganhando dinheiro em cima disso? Como você ainda não foi processado? Você está em prisão domiciliar? Essa história que você deu para a mídia e polícia de ter ‘sido guiado por Rainha de Copas até Oxford na noite de formatura, ter sido acertado pelas costas e só ter acordado horas depois do lado de fora do incêndio’ não é meio forçada? Acho que você e seus amigos estão mentindo quando dizem terem perdido a memória do que aconteceu naquela noite. Talvez vocês mesmos sejam Rainha de Copas. Uau! Imagina que incrível plot-twist isso daria para o seu próximo romance? Se eu fosse você, anotaria isso. Só avisando que quero créditos depois por isso, caso você use minha ideia. De qualquer maneira, foi bem criativa a historinha que você inventou para colocar no seu livrinho de ‘biografia’. Doentio, mas criativo. Aliás, eu tenho o número de uma igreja ótima aqui dentro da minha bolsa pra te apresentar, um minuto..."

    Martin não esperava que ninguém acreditasse na história dele de qualquer maneira. Não havia provas que sustentassem as suas narrações de qualquer jeito. Ele inclusive não se importava tanto com tudo aquilo. Não se importava tanto em ser chamado de louco, mentiroso, doente e, com algumas pessoas mais precipitadas, de assassino. Ele sabia, lá no fundo, o verdadeiro e real motivo de ter colocado no papel os acontecimentos que haviam ocorrido nos três anos antecedentes. O Caso Alice permaneceu não resolvido, e os investigadores não foram capazes de encontrarem um traço sequer da existência de Rainha de Copas, de Nicole, e do paradeiro de "Lacie DilliLamed" e "Edgar Gardnet Cuthwellis" ou Samantha Pleasance. As mortes também não voltaram a acontecer. Oxford nunca antes tinha sido um lugar tão pacífico igual nos últimos meses.

    Enfim, a aula estava para terminar, e os alunos permaneciam a encará-lo naqueles olhares intermediados em confusões.

    — Senhor Roque, você está querendo dizer então que as ações humanas sobre as suas concepções racionais podem se equiparar a de deuses? — um dos alunos perguntou ao palestrante, estancando-o de volta à realidade.

    — Sim, Chad. Dentro do contexto natural, sim — respondeu ele, esforçando-se para que a voz soasse confiante. — Se você for ver as concepções de povos antigos sobre o que seriam poderes divinos, vai perceber que uma pessoa do século XXI poderia ser considerada um deus na época das primeiras civilizações orientais, ou, no pior caso, uma bruxa demoníaca na Idade Medieval.

    Alguns alunos riram em apoio.

    — Para exemplificar, vamos supor que você use uma máquina do tempo e volte para a época da civilização egípcia. Chegando lá, você apresenta um isqueiro para a população e diz que você é capaz de invocar o fogo quando quiser, tendo-o compactado naquela caixinha, o que não é uma mentira. Imagine só, toda a população iria se curvar aos seus pés. Iriam tomar aquela invenção como um dom sobrenatural, escreveriam sobre você nos hieróglifos e pintariam sua imagem por todas as paredes... E pronto! De repente você é Khepri, o deus do fogo!

    — Poderia também ensinar matemática para eles, e eles acabariam construindo as pirâmides — alguém comentou.

    A sala deu um riso coletivo diante da referência do aluno. Martin decidiu prosseguir a partir daí.

    — Ah, a boa e velha teoria da panspermia cósmica, de que outras formas de vida deram origem às vidas passadas... Sabia que muitos estudiosos levam essa ideia a sério, principalmente cientistas do século XXI? Aliás, a ideia de ter um ser humano sendo capaz de manipular tudo ao redor dele, se tornando um deus do seu próprio destino remota exatamente da antiguidade. A pirâmide, por exemplo, é um símbolo de transformação, simboliza a ascensão do homem aos céus, a um plano maior de existência... isso tem até um nome: apoteose. Incrivelmente, muitos indivíduos das eras atuais permanecem a cultivar ideias religiosas e místicas existentes nos primórdios da terra.

    — Quem em sã consciência se daria ao trabalho de acreditar em coisas tão antigas assim hoje em dia? Isso não seria ultrapassado? É igual pegar um livro que foi escrito há dois mil anos e assumi-lo como verdade absoluta nos dias de hoje — uma aluna, que Roque reconhecia ser ateia, disse.

    — Incrivelmente, senhorita — continuou o professor —, as pessoas que cultuam adágios pagãos nos dias atuais estão bem mais presentes do que imaginamos, muitas delas até mesmo são e foram de muita influência no nosso meio. A ordem dos maçons é apenas um dos exemplos.

    — Quer dizer que as crenças dos ocultistas datam de mitos antigos, igual dos egípcios?

    — Sim, assim como no Renascimento, há uma retomada do clássico quando se fala de ideologias ocultas. Magia, como bem já ouvimos dizer que eles fazem, pode ser interpretado como sendo apenas uma ideia, uma representação, uma analogia. O que a magia realmente simboliza dentro do esoterismo é a plena ideia de que se pode alterar o mundo ao seu redor de acordo com as suas vontades. Obtenção. Manejar os meios para prever os fins. Ver o futuro, atrair coisas para si... ter o total controle de tudo que está ao seu redor... e eles, por incrível que pareça, conseguem. Vemos a maioria desses magistas sendo pessoas de grande relevância na nossa sociedade. Eles são deputados, políticos, presidentes, celebridades, grandes filósofos, escritores e cientistas nos quais suas ideias permanecem a reger a nossa sociedade e a nós mesmos todos os dias... eles controlam tudo. Quase como se fossem superiores a nós, de outro patamar, quase como se fossem... imortais. — A última palavra fez seu coração dar um puxão.

    — Assim como deuses. — Sorriu a aluna.

    — É. Assim como deuses. Issac Newton, Helena Blavatsky, Heráclito, Platão, Pitágoras, Walt Disney, Aleister Crowley...

    — ... Lewis Carroll.

    Martin perdeu as palavras assim que alguém na plateia disse aquele nome. O silêncio que se precingiu em seguida foi tão intenso que se um alfinete caísse no chão naquela hora, soaria como o disparo de um revólver. Subitamente, ele se sentiu pequeno naquele palco, quebradiço, como se, num movimento levemente mais brusco, ele pudesse se partir sob o peso de todos os olhares ácidos da multidão que o observava.

    Mas não foi o semblante de um aluno que o recepcionou assim que seu olhar o encontrou na leva de rostos: era um homem estranho, bem mais velho do que a maioria da faixa etária presente, quase escondido na última fileira da arquibancada dentro de um casaco preto formal; o seu rosto era quase imperceptível devido à grande sombra, provocada por um chapéu borsalino vintage no qual usava, que se apossava das suas feições, fazendo a tarefa de ver a sua aparência ser como a de tentar enxergar o brilho de um alfinete luzindo do fundo do oceano: impossível. Como ele não tinha percebido uma figura daquelas entrar na sala? E como ele também não tinha notado durante a aula? Sem reconhecer por quanto o tempo havia se arrastado no que ele ficou parado ali, tentando identificar o seu algoz, Martin se obrigou a engolir as inseguranças e continuou com o jogo que o Sr. Incógnito havia começado.

    — Sim — ele quase não podia esconder o estremecimento na sua voz —, Lewis Carroll também.

    *

    O sino de Tom Tower badalou. Martin não deixou de suspirar de alívio assim que os olhares que antes o navalhavam foram dispersados, e os alunos começaram a se ocupar em juntar o material para partirem para a próxima aula.

    — Não se esqueçam do trabalho que eu passei, ouviram? — falou bem alto. Alguns alunos ainda estavam distraídos, então ele resolveu persistir. — Preciso que vocês façam uma dissertação sobre a teoria do sonho de Rene Descartes, e que façam uma comparação dos argumentos da filosofia dele às mídias do mundo atual. Vocês podem citar filmes, livros e até experiências próprias que se encaixem no pensamento.

    Os alunos mais desavisados assentiram, o que deixou Martin satisfeito para começar a juntar o que sobrou do seu material para sair com eles.

    — Vejo vocês na próxima aula.

    Os sons dos passos apressados dos jovens estudantes se tornavam uma melodia na medida em que iam desaparecendo e reverberando distantemente na acústica ampla do corredor externo, feito uma repercussão. Até que, por fim, enquanto estava distraído guardando as inúmeras pilhas de anotações na sua satchel, a atenção de Martin foi fisgada para um único som de passos que, ao contrário de todos os outros, estavam próximos dele. Ainda tinha um único aluno na sala com ele. Pensando que talvez fosse um deles querendo tirar dúvidas sobre a dissertação, virou-se e, como o abrir ameaçador de asas de um corvo sobre a sua carniça, Martin topou com a silhueta negra do chapéu e casaco, parada à porta. Era o homem estranho que acompanhava a palestra desde cedo. Ele estava de costas, encarando o chão do corredor, parecendo ponderar sobre sair ou continuar na sala. Martin já estava prestes a questionar se ele tinha alguma dúvida quando ele se manifestou.

    — Uma excelente lecionação, Senhor Roque. Obrigado. Foi bastante esclarecedor.

    Antes que ele pudesse responder alguma coisa, a interrogação ambulante já havia ido embora da classe.

    Qual o problema com esse cara?, permitiu-se perguntar assim que se viu sozinho de novo. Está tentando competir com os estudantes em quem consegue constranger mais o professor em público?

    Ajeitou a sua bolsa no ombro, por cima do sobretudo cinza. Saiu da sala estrategicamente (era hora do almoço, então ele esperava todos irem embora enquanto demorava a arrumar os materiais de propósito para poder sair com todos os aposentos da faculdade praticamente vazios), tinha um caminho que ele já conhecia, um no qual evitaria com que ele esbarrasse com pessoas e empecilhos do dia a dia. Um lugar que ninguém mais visitava na universidade. Um lugar que todos evitavam passar perto.

    Menos ele.

    *

    O cheiro das cinzas ainda parecia recente.

    Ele foi tomado por enluto assim que pisou na biblioteca.

    O lugar, antes coberto por uma aura palpável de mistério e escuridão, havia sido destruído pela enorme luz que emanava do rombo deixado pelo incêndio. O que parecia antes ser um enorme labirinto de estantes, agora parecia ser um espaço minúsculo, não sendo nada mais do que um piso destelhado encarpetado por tralhas e destroços indistinguíveis.

    Era um cemitério de histórias.

    Martin tentou apaziguar os seus passos, ele não podia evitar se sentir desassossegado naquele lugar. Logo no final do terreno, onde o campo se abria e o jardim de Christ Church se elevava, ele avançava com os batimentos se alçando igual um compasso de música subindo ao contrário, e o tempo parecia correr mais devagar como se tentasse castigá-lo pelo desastre que ele havia cometido – inserindo-o naquela angústia que demorava a passar não importasse o quão rápido ele andasse.

    Deu voltas em torno do seu próprio eixo, tentando visualizar o piso abaixo dos seus pés. Era impossível, não se via nada não importasse o quanto ele empurrasse a sujeira com o pé. Talvez não tivesse nada mais para se ver ali. Não mais. Foi quando o pé dele escavou algo sólido logo no nível da superfície. Ele roçou o sapato mais um pouco por cima, numa tentativa de ver melhor o que era. Uma brisa soprou de forma muito conveniente, retirando boa parte dos restos de cinza do objeto e permitindo que o garoto pudesse ver do que se tratava. Era uma pequena reprodução de uma face humana feita de porcelana. Uma boneca antiga. Uma das que pertenceu à Alice. A face estava queimada e se retorcia, desfigurando o nariz e o olho direito. A criatividade ágil de Martin logo divagou, imaginando-a como se fosse um cadáver de um recém-nascido emergindo da terra em estado de decomposição.

    Um arrepio descarregou por suas costelas. Chutou o objeto para longe e ele voltou a mergulhar na copagem de dejetos. Apertou o passo e logo se viu admirando a grama incrivelmente verde do início da primavera. Ele não podia negar a ligação que ele ainda sentia com aquele lugar. Andou até chegar aos arbustos que dividiam o colégio do campo aberto, observou as roseiras e se decepcionou mais uma vez: todas as rosas estavam fechadas. Era um fato estranho levando em consideração que tinham acabado de entrar naquela estação e, mesmo assim, nenhum broto de rosa sequer havia desabrochado. Martin já estava se acostumando a encarar aqueles botões fechados todos os dias desde o fogo.

    Atravessou o campo, indo em direção à rodovia comercial do bairro. As ruas principais de Oxford eram sempre supermovimentadas, principalmente no horário do almoço, quando o alvoroço dobrava. Felizmente, as alamedas eram largas o suficiente para cobrir todas as pessoas. Martin caminhou até conseguir atingir seu objetivo: a rua St. Giles. A avenida que dividia duas ruas principais da cidade, Woodstock e Banbury, e carregava um ar que remetia a Martin os motivos nos quais ele foi levado a se apaixonar tanto pela cidade. Tudo parecia ter um charme tão sofisticado e único aos olhos... Ele tinha entrado na rua e já estava admirando o monumento de Martyrs, um grande obelisco cristão de arquitetura gótica erguido na praça durante o século XVI; St Giles’ Church, com o convento Pusey House, não muito distante... Mas não era nenhum desses locais icônicos que ele visitaria naquele dia.

    Persistiu mais um pouco com passadas longas até ver a construção de tijolos embutida em uma esquina. O cheiro de comida, bebida e descontração se sobrexcedeu.

    Era o bar The Eagle and Child.

    Ou, como era popularmente chamado, The Bird and Baby. O letreiro era estilizado numa fonte medieval, acompanhado de uma placa que fazia jus ao nome do estabelecimento ao mostrar, esculpido em dourado, a imagem de um bebê sendo carregado por uma águia.

    Já conhecendo o lugar de cor, entrou sem cerimônia. O nível de altura do restaurante era baixo e toda a sua decoração lembrava uma taverna antiga. Construído no século XVII, o bar tinha história em cada tijolo, cada viga e em cada teia de aranha que se parasitava nas esquadrias daquele espantoso esqueleto de três andares. Martin correu o olhar pelas repartições do lugar que abrigavam as mesas redondas de madeira e cadeiras de bazares: estavam todas completamente ocupadas, então apertou o passo, a visão se acostumando com a iluminação incandescente do lugar, que incidia uma vibração alaranjada e macróbia em todos os pequenos aposentos.

    Martin subiu as escadas, passando pelos caminhos estreitos nos quais eram impossíveis passar com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, e alcançou o terceiro andar, que, oportunamente, estava mais vazio, porém, ainda assim, ele tinha que tomar cuidado para não esbarrar com as pessoas que surgiam de lado a lado.

    Até que ele encontrou. O lugar perfeito. O lugar preferido dele. E tinha lugares vazios. Era um cômodo em particular que fazia o carisma de todo aquele pub. O tal cubículo tinha recebido até um nome: Rabbit Room. Sala Coelho, ou sala do coelho, como bem apontava a placa que havia sido pendurada na sua entrada, recebia aquele nome por diversos motivos. Primeiro, seu formato: a repartição daquela salinha era como da arquitetura de uma janela saliente – saltando para dentro da parede como um túnel, o que lembrava vagamente uma toca de coelho. Segundo, as pessoas que costumavam frequentar aquela área: os autores mais importantes da história da literatura que estudaram em Oxford faziam reuniões descontraídas naquela sala – JRR Tolkien, Christopher Tolkien, CS Lewis, Warren Lewis... –, onde discutiam sobre as suas criações e sobre a literatura fantástica. As lendas diziam que as melhores ideias para que os autores tivessem criado os seus melhores livros haviam surgido ali, o que dava à Rabbit Room esse aspecto místico de imersão numa concepção de fantasia e criatividade, quase como se estivesse entrando numa toca de coelho que dava para um mundo mágico.

    Martin se sentou no fundo, marcando os outros dois lugares vazios com sua bolsa e sobretudo. Por mais que a melodia do bulício de várias vozes falando ao mesmo tempo fosse o contrário de tranquilidade, o garoto conseguia se distrair ao focar a audição no tique-taque intermitente do relógio de pêndulo portátil centenário que estava pendurado na parede paralela a ele. Abriu o celular e mandou a mensagem, estou aqui, para os números salvos. Começou a aguardar, enquanto se permitia perder-se nos pensamentos ao observar as miudezas que estavam dispersas pela decoração da alcova: havia vários retratos preto-e-branco dos autores clássicos que fizeram parte da história daquele lugar, as faces deles estavam apagadas ao nível do mesmo tom branco-neve de suas longas barbas; alguns quadros portando cenários de Nárnia e mapas de Middle Earth do Hobbit; e incontáveis livros de lombadas gastas, intercalados em cada espaço disponível em estantes improvisadas nos cantos das paredes.

    Ele, inclusive, arriscou apanhar um dos exemplares rapidamente, só para dar uma folheada. Escolheu Viagem ao Centro da Terra de Júlio Verne (ele não podia evitar de ter um fascínio pelo modo único que aquele autor tinha de juntar teses científicas da vida real com requintes de fantasia), uma edição muito antiga – a capa estava praticamente descolada de todo o encarte das páginas, muitas destas estando soltas, dobradas e riscadas de cima a baixo. Pobre guerreiro, elogiou o livro de modo contraditório, divagando sobre o quanto de história deveria ter por trás dele, por quantas pessoas ele deveria ter passado, quantas vidas ele deveria ter afetado, até chegar ali, nas suas mãos, naquele bar, com todas as marcas da longa viagem na qual, aparentemente, não havia sido nada tranquila.

    — Toda terça-feira é a mesma coisa.

    A voz o surpreendeu, arrancando Martin do delírio e fazendo-o se virar para saudar o dono dela: Lucas vinha da entrada da camarinha, o seu uniforme de barista amarrotado numa tentativa dele de parecer mais social, o avental jogado sobre um dos seus braços dobrados, e as duas mãos carregando de modo protetivo dois canecos de cerveja enormes.

    — Ei, Lucas.

    — Você tem que agradecer por eu trabalhar aqui agora. É praticamente impossível reservar esse lugar numa terça-feira. Ainda mais no horário de almoço. — Passou a bolsa carteiro de volta para Martin, acomodando-se no lugar. Lucas arrastou o vidro de um dos canecos na direção do amigo. — Como foi o dia?

    — Olhares de soslaio, risinhos, aquela velha sensação de que tem uma classe inteira te julgando... o usual, sabe?

    — Que chato. — Deu um gole. Martin fez o mesmo.

    — E quanto ao seu?

    — Você não faria ideia de como é ter mais de um trampo ao mesmo tempo, nem se eu te contasse um milhão de vezes. Você nem precisa trabalhar, não é? Não sei por que se gasta tendo que dar essas aulas toda semana, o retorno financeiro de um best-seller não é o suficiente?

    — Você não faria ideia de como eu acho detestável o meu trabalho, nem se eu te contasse quanto eu ganho. Porém, eu preciso disso. Eu me prometi não desistir, não é? E eu soube das consequências desde o início.

    — Não reclama, pelo menos o seu salário é digno. Ou melhor, digno até demais.

    — Não reclama, pelo menos você ganha cerveja de graça.

    Lucas deu um meio sorriso debochado ao ouvir a resposta.

    Touché? — arriscou Martin.

    — Longe disso — retrucou Lucas. — Do que adianta poder receber todo álcool possível de graça se você me obriga a dividir ele com você quase em todos os almoços. Você continua em vantagem, seu babaca.

    — É... acho que eu não tenho o que reclamar mesmo — provocou-o com seu sarcasmo.

    — Eu quero todas as cervejas que eu te dei de volta. Agora.

    — Tarde demais.

    Martin estica a caneca mass na direção de Lucas, que teve que retribuir com a sua num brinde de má vontade.

    — Desculpe, estou atrasada. — Sabrina irrompeu no espaço de súbito, sua voz era cansada e seus braços estavam repletos de sacolas e bolsas de loja.

    — O que aconteceu? Você nunca se atrasa — perguntou enquanto tirava o casaco do lugar para ela se sentar.

    — Longa e esquisita história — ela falou assim que se acomodou e fez uma expressão estranha ao analisar a mesa. — Cadê a comida?

    Lucas revirou os olhos. — Já volto — disse e se retirou.

    Enquanto esperavam pelo amigo voltar, Sabrina e Martin ouviam em silêncio, de alguma caixa de som antiga, uma música tranquila que acabava de começar a tocar, reverberando através das paredes ocamente puídas da casa: Only in a dream, de Doug Tuttle.

    — Então, como está o movimento hoje na loja? — Martin prosseguiu.

    — Estranhamente calmo.

    — Você não parece calma.

    — É muito trabalho.

    — Imagino...

    — Como uma loja que costumava a ser tão desabitada de

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