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A invenção da Amazônia
A invenção da Amazônia
A invenção da Amazônia
E-book451 páginas6 horas

A invenção da Amazônia

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Sobre este e-book

Fruto de exaustiva pesquisa na historiografia e literatura europeias, a partir de fragmentos do imaginário indiano deslocados para o continente americano, em particular para a Amazônia, o livro sustenta a tese de que a invenção da Amazônia ocorreu segundo o ponto de vista do colonizador, como um mundo a ser descoberto e decifrado.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de out. de 2023
ISBN9786555851144
A invenção da Amazônia

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    A invenção da Amazônia - Neide Gondim

    Livro, A invenção da Amazônia. 3.ª edição. Autores, Neide Gondim. Editora Valer.Livro, A invenção da Amazônia. 3.ª edição. Autores, Neide Gondim. Editora Valer.

    Sumário

    CAPA

    FOLHA DE ROSTO

    Apresentação

    Nota à segunda edição

    INTRODUÇÃO

    Capítulo I — COMO A CONSTATAÇÃO DA HABITALIDADE DO ANTIMUNDO MODIFICA A CIÊNCIA E O IMAGINÁRIO EUROPEUS

    De como a existência do antimundo é registrada no diário de Colón e nas cartas de Vespucci

    Em que sucintamente se mostra como o europeu culto recebeu as notícias sobre a natureza e o homem do antimundo

    Capítulo II — COMO O MAR DE ÁGUAS DOCES E SUAS DILATADAS PROVÍNCIAS SÃO PERCORRIDOS PELO IMAGINÁRIO DOS CRONISTAS VIAJANTES

    Relação do descobrimento do Rio das Amazonas, hoje São Francisco de Quito

    Novo descobrimento do grande Rio das Amazonas

    Relato resumido de uma viagem no interior da América Meridional desde a costa do Mar do Sul até a costa do Brasil e da Guiana descendo o Rio das Amazonas

    Capítulo III — DE COMO A AMAZÔNIA É REVISITADA PELOS FICCIONISTAS EUROPEUS

    OITOCENTAS LÉGUAS PELO RIO AMAZONAS

    Em que o trabalho enraíza o homem

    Da natureza errática

    Da punição para quem perde a identidade

    Da louvação à mata que permanece

    Da narrativa de viagem

    De como a tensão se estabelece entre a permanência e o avanço

    O MUNDO PERDIDO

    As maravilhas e monstruosidades índicas reencontradas no reino de Curupira

    A ÁVORE QUE CHORA

    De como o capital destrói as ilusões

    De como o capital altera o movimento da vida

    Onde os homens se deixam escravizar pela aparência quimérica do capital

    De como as ilusões se perdem

    De como as ilusões renascem

    Capítulo IV — EM QUE O TRABALHO CHEGA AO FIM

    DAS REFERÊNCIAS

    NOTA BIOGRÁFICA

    NOTAS

    CRÉDITOS

    Do oferecimento que se faz ao professor Octavio Ianni

    (in memoriam) e ao Renato Mezan.

    APRESENTAÇÃO

    Márcio Souza¹

    Alguém já disse que aqueles que escrevem sobre fatos não escrevem sobre o vazio. E aqui temos este ensaio de Neide Gondim como exemplo concreto. Trata-se de uma explanação efetiva do processo de construção ideológica de um território, parte do conjunto de mitos e fabulações pelas quais os pensadores europeus inventaram a América. A Invenção da Amazônia é um desses textos que transcendem as limitações comuns aos ensaios literários, e que podem ser lidos de diversos ângulos: como teoria literária, como crítica de ideologias e filosofia da literatura. Mas que tais possibilidades não tirem o ânimo dos leitores, pois ele foi escrito com tal dramaticidade, de forma tão calorosa e com um espírito de persuasão baseado na simplicidade da escrita, que A Invenção da Amazônia pode ser lido quase como um ensaio, na acepção clássica do gênero. Isto é, Neide Gondim, embora sem prescindir do rigor acadêmico, não se submete aos atuais modelos que parecem talhados para nivelar por baixo a escritura universitária, daí seu texto ser de uma leitura tão absorvente que mais parece uma fantasia. É uma rajada de ar fresco num espaço teórico que hoje prima pela secura, pela repetição e pelo temor de se comprometer. A autora passa longe do circunstancial, bebe nas boas fontes de Sérgio Buarque de Holanda, trabalha com a grande polêmica americana que a conquista do novo mundo gerou, avança sobre os componentes míticos do mundo medieval, mas sem escapar para as explicações fáceis sobre a psicologia do homem europeu. É claro que a invenção de todo um território, como foi o caso da Amazônia engendrada pelos europeus, era algo peculiar à cultura do velho mundo, mas no fundo, em sua raiz, era o fruto de um choque mais profundo, entre o pragmatismo dos conquistadores e as assustadoramente igualitárias sociedades americanas.

    Cada pedaço da América marcou fortes impressões nos europeus. As pradarias da Califórnia no imaginário dos jesuítas espanhóis; o rio da Prata e o sul dos Estados Unidos na ensandecida visão do conquistador Cabeza de Vaca; a extraordinária natureza da Amazônia no relato dos cronistas, viajantes e romancistas europeus. No fim, um continente fantástico, de riquezas infinitas e natureza indômita.

    No caso da Amazônia, ainda hoje vista como remota e recôndita, Neide Gondim prova magistralmente que aqueles são conceitos inaplicáveis para a imaginação humana, ainda mais quando impelida pelo combustível das ideologias. Nada é menos remoto que o rio em que navega a jangada de Júlio Verne, miniatura do mundo ocidental, civilizado, viajando pelas artérias do primitivo, da terra sem Deus e sem lei. Nada é menos recôndito que o seringal onde chora lágrimas brancas a árvore de Vicki Baum. Nada mais inquietantemente próximo que as selvas agressivas por onde palmilhou Sir Walter Raleigh. Cada um desses europeus exercitou no imaginário uma viagem de descoberta, formando um mosaico de preconceitos. E estes preconceitos engendraram a Amazônia.

    É claro que A Invenção da Amazônia não podia deixar de ser um ensaio sombrio, com um senso do patético pouco visto em trabalhos universitários. E não poderia deixar de assim ser, já que foi a violência o motor desses cronistas e gente de imaginação. Especialmente os cronistas dos primeiros tempos, que conceberam e escreveram seus livros sob pressão, ora sob o ataque de nativos enfurecidos, ora sob os gritos de dor dos nativos torturados e assassinados. Ainda assim, o senso crítico prevalece como um raio de sol, e A Invenção da Amazônia, além de nos convidar a repetir tantas viagens, não esquece de nos informar que estas foram feitas de ilusão e preconceito.

    NOTA À SEGUNDA EDIÇÃO

    Doze anos depois de estampada A invenção da Amazônia, esta segunda edição não sofreu alterações, exceto os erros de digitação, agora corrigidos.

    Um acréscimo é necessário; aliás, uma homenagem a um grande homem, culto e humilde, de uma simplicidade grandiosa, que lhe permite transitar de Amsterdã a Parintins com a mesma fidalguia dos transeuntes habituados a percorrer grandes e variados espaços, e que honrou a autora ao utilizar sua tese de doutorado como tema da Escola de Samba Viradouro na virada deste século, Joãosinho Trinta.

    A Autora

    pagina 11pagina 12

    INTRODUÇÃO

    ontrariamente ao que se possa supor, a Amazônia não foi descoberta, sequer foi construída. Na realidade, a invenção da Amazônia se dá a partir da construção da Índia, fabricada pela historiografia greco-romana, pelo relato dos peregrinos, missionários, viajantes e comerciantes.

    Nesse bojo inclui-se, ainda, a mitologia indiana que, a par de uma natureza variada, delicia e apavora os homens medievais. A tal conjunto de maravilhas anexam-se as monstruosidades animais e corporais, incluídas tão-somente enquanto oposição ao homem considerado como adamita normal e habitante de um mundo delimitado por fronteiras orientadas por tradições religiosas.

    A primeira viagem ao Novo Mundo fez-se acompanhar por esse imaginário e influenciou a visão do europeu sobre aquelas terras jamais vistas. A descoberta de terras que completavam as secularmente conhecidas originou tensões que acarretaram especulações, as quais, aos poucos, vão sendo aglutinadas em temas que se cristalizam em torno de uma expressão: a raça humana. Motivo de enormes controvérsias, essa expressão acompanha os séculos, oriundas dela constroem-se ciências, especula-se a natureza para atingi-la, aceitá-la ou refutá-la a partir do prisma da sociedade que conheciam, ou seja, a dos próprios questionadores, atitude que origina nova visão desfocada.

    Pressionados por adversidades comuns à época, os homens sonham encontrar o Paraíso e a fonte da eterna juventude. A tradição religiosa dizia que um grande rio nascia naquele local aprazível, cujas águas encobriam riquezas, e não muito longe, uma fonte convidava para a total supressão dos males sociais, onde a fome, as doenças e as pestes continuamente dizimavam respeitáveis contingentes humanos. Esse local foi encontrado pelos expedicionários de Orellana e se localizava na região amazônica. Sucessivamente visitada, principalmente depois de liberada a navegabilidade do Rio das Amazonas pelo governo português, para aquela região composta de enormes rios e florestas compactas, dirigem-se as atenções e erigem-se verdades; confrontam-se teorias e refutam-se ou confirmam-se hipóteses. Como justificar a presença de animais pequenos em meio a tão prodigiosa natureza, se na África esturricada animais gigantescos ali tinham seu habitat? Possivelmente havia gigantes entre o intrincado vegetal; não havia, outrossim, homens com rabo? E as mulheres brancas, altas e guerreiras, não guardavam a prodigiosa cidade de ouro, próxima a um lago dourado, onde se banhava um rei muito rico? Certamente, o clima deveria ser o responsável pelos atos bestiais, endurecimento do caráter e envelhecimento precoce do autóctone. Essas perguntas geralmente acompanhavam os viajantes, e as respostas ora encaixavam-se na vertente infernista, ora na edênica, ou ainda justificavam a catequese.

    Este trabalho quer demonstrar de que maneira e por quais artifícios a Amazônia é inventada pelos europeus. Nele destacam-se Montaigne e Buffon, Montesquieu e Hobbes e ainda Locke, por haverem incluído em suas reflexões o homem americano, a partir dos quais, outros pensadores dialogam.

    Entrelaçando-se ao primeiro capítulo, a visão inaugural da Amazônia oferecida pelos cronistas viajantes vai fundamentar, enquanto matéria-prima, as deduções teóricas e, inversamente, estas servem de estofo aos sucessores, cujo estoque de informações impedem e/ ou inibem a apreensão da variedade, da multiplicidade, da diferença, em suma, caem na cegueira da confirmação de verdades científicas.

    A temática racial, as maravilhas e monstruosidades índicas, a natureza e o progresso, a guerra, a inclusão da Amazônia enquanto fornecedora de produtos regionais – a borracha – no mercado de consumo europeu e norte-americano, são assuntos utilizados por prosadores na terceira e última parte desta pesquisa. Júlio Verne, Conan Doyle e Vicki Baum são autores europeus que veem a Amazônia com os olhos do artista, perspectiva que vai se contrapor às percepções sedimentadas pelo dualismo inferno/paraíso, frequentemente projetados nas obras teóricas e nas narrativas dos viajantes.

    pagina 15pagina 16Capítulo Ipagina 18

    COMO A CONSTATAÇÃO DA HABITALIDADE DO ANTIMUNDO MODIFICA A CIÊNCIA E O IMAGINÁRIO EUROPEUS

    s convulsões e transformações sociais que vinham se processando desde o final da Idade Média, na Europa que envelhecia, tornam-se nítidas no século XVIII, alcunhado de o Século das Luzes. Foi o século-limite para que a Europa repensasse a Ciência e destruísse velhos conceitos, ecos tardios de uma mentalidade pós-medieval. Afinal, as pestes ainda grassavam, os campos se esvaziavam, inchando as cidades com as ondas migratórias. Questionava-se a existência de Deus, a autoridade papal, a imortalidade da alma, o poder dos monarcas. O século XVIII foi um período marcado pela certeza e, paradoxalmente, pela dúvida. O saber assume outro estatuto: quem o detivesse, deteria o poder. As experimentações científicas, a proliferação das Academias de Ciências, a mania pelas coleções de insetos, as viagens científicas ou de aventura a países distantes – Oriente e Américas – dão o tom e sabor nesse século que contou com o brilhantismo e a erudição de Voltaire e Diderot. Voltaire conseguiu popularizar o debate filosófico e científico. Todos tomavam partido instigados pelos artigos escritos em um francês elegante e sem rebuscamentos estilísticos do popularizador do Iluminismo. O século XVIII foi o depurador das superstições religiosas e foi o século que viu ser extinta a Companhia de Jesus, fundada em 1542, na Espanha inquisitorial. No entanto, a raiz desses questionamentos, certezas e inseguranças teve como um dos detonadores os descobrimentos marítimos e, obviamente, a série de modificações econômicas, sociais e políticas carreadas em seu bojo. Acresça-se, ainda, que a iniciativa dessas viagens maravilhosas e funestas teve Portugal como o seu mais ilustre representante, vindo a tornar-se, no século XVIII, juntamente com seu vizinho, a Espanha, uma figura apagada, formada por um corpo político de homens com mentalidade retrógrada, que não acompanhava a pretensão europeia – capitaneada pela França – de uma revisão filosófica e científica do Ocidente civilizado.

    A busca de novas rotas para o comércio das especiarias e, sobretudo, o início das viagens ao desconhecido pode ter como marco o dia 20 de agosto de 1415, com a tomada de Ceuta pelos portugueses. A partir dessa experiência, o templário D. Henrique deixa-se cercar por eminentes cartógrafos, geógrafos, capitães, entre eles Luís Cadamosto, em um promontório na península de Sagres, onde funda uma escola naval, começo de toda a moderna navegação científica.² Quanto à Espanha, somente em 1562 organiza um programa de construção naval, durante o reinado de Felipe II e, ainda assim, depende da Itália para a fabricação dos barcos e importação de especialistas dos estaleiros de Gênova.³ Dom Henrique, o Navegador, não só dispunha de pessoal especializado como ele próprio financiava sua indústria naval, prática incomum entre outras nações europeias, onde semelhantes empreendimentos eram realizados por mercadores ricos, com frota particular, necessitando somente da permissão real para efetuar viagens diferentes das habituais rotas de comércio, ou através de financiamentos bancários, como os executados pela filial dos Médici, em Sevilha. Assim sucedeu a Cristóbal Colón, que viajou na caravela Santa Maria, propriedade de Juan de La Cosa, o mesmo ocorrendo com Américo Vespucci que, de funcionário da casa bancária dos Médici, decidiu-se a deixar as mercadorias e pôr o meu fim em coisas mais louváveis e firmes, que foi que me dispus a ir ver parte do mundo, e as suas maravilhas.⁴

    A obsessão portuguesa quanto ao acesso às terras asiáticas, aliada à expansão da religião católica, tinha aspectos políticos e econômicos visíveis, pois a ocupação das ilhas e as descobertas da costa africana proporcionariam o estabelecimento de senhorios, os transportes de colonos, lutas, guerras, trabalhos e saques.⁵ Loteadas – o Tratado de Tordesilhas exemplifica – antes de constatada a existência de terras situadas no 7.º clima (ou zona tórrida), como diria Vespucci, alcunhadas como Mundus Novus segundo Iocondo, intérprete e tradutor da discutível quarta carta do florentino, a descoberta do que é hoje a América se deixa envolver pela aura do lendário, pela incerteza da paternidade do empreendimento; foi e continua sendo um veio rico para especulações históricas, literárias, antropológicas, sociológicas, etc. Para a Europa mediterrânica que se equilibrava entre a incerteza do abastecimento de gêneros substanciais como o trigo, a incidência das pestes (inclusive a malária), a escassez de madeiras (já no século XV, resultado do desmatamento)⁶ e a descoberta de terras novas representou o acirramento entre Holanda, Inglaterra, França, Espanha e Portugal, todos querendo a hegemonia dos mares. Para os povos que viviam na outra metade do mundo, significou o contato com uma nova ética e costumes estranhos – do traje à alimentação, organização social e construção de cidades abstratas⁷ – traçado arquitetônico desvinculado de uma ancestralidade clânica e/ou divina.

    Também eram guerreiros como eles, aqueles homens que diziam ter vindo do céu. O espanto inicial foi mútuo, mas a primeira pegada fincada na areia marcou o encontro entre culturas e civilizações distintas e o extermínio quase total dos nativos pelas armas, doenças e escravidão. O filho de Manco II, Titu Cusi Yupanqui, que governou os incas em Vilcabamba de 1557 a 1570, descreve os conquistadores espanhóis como certas pessoas muito diferentes de nosso costume e vestuário, vistos como viracochas, o Criador de todas as coisas, gente de semblante diferente porque andava em uns animais muito grandes os quais tinham os pés de prata. Eram homens diferentes também porque os viram falar sozinhos em uns panos brancos como uma pessoa falava com outra, e isto era porque liam livros e cartas. Foram ainda chamados de Huiracochas porque tinham yllapas, nome que nós temos para os trovões, e isto diziam por causa dos arcabuzes, porque pensavam que eram trovões do céu...⁸ Esses homens chegaram em espécies de torres ou pequenos morros que vinham flutuando sobre o mar,⁹ fatos que iam concretizando a série de augúrios pressagiados anos antes no reino de Motecuhzoma. Essa visão mágica inicial dos habitantes da outra metade da terra é modificada posteriormente pelos cronistas incas, como Guamán Poma, ao relatar que os estrangeiros sonhavam acordados com o ouro e a prata do Peru e se matam os espanhóis e desterram os pobres dos índios, e por ouro e prata já ficam despovoados parte deste reino, as aldeias dos pobres índios, por ouro e prata...¹⁰

    Se a entrada maciça de ouro na Espanha beneficiou, em 1524, a França, que pagava aos seus soldados com o ouro que retirava de Espanha,¹¹ por outro lado foi um dos fatores que intensificou a inflação, já existente antes de Colombo, pois afinal é o desenvolvimento da Europa e as suas exigências que conduzem, teleguiam o trabalho dos pesquisadores de ouro e dos índios das minas de prata.¹² O movimento incessante do capital comercial concretizado na importação supervalorizada de produtos (miçangas, por exemplo) pela Espanha, e depois, exportados para a América, processo acompanhado pela entrada contínua de ouro, posteriormente de prata, fabricação de embarcações, soldo dos marujos, investimento nas viagens de descobrimento e colonização, foi efeito da circulação monetária estimulada pelo metal da América, que desempenhou o papel de um multiplicador.¹³ Marx enfatiza que o descobrimento da América e a circunavegação da África ofereceram à burguesia em ascensão um novo campo de atividade. Os mercados da Índia e da China, a colonização da América, o intercâmbio com as colônias, a multiplicação dos meios de troca e das mercadorias em geral imprimiram ao comércio, à navegação e à indústria um impulso até então desconhecido e aceleraram, com ele, o desenvolvimento do elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição.¹⁴

    A Idade Média viu desenvolver-se o gênio de Petrarca, Boccaccio e Dante, mas eles eram ilhas iluminadas no universo imóvel do medievo, dominado pela vingança, paixão e aventura, pelo orgulho, insegurança, sofrimento, miséria e pessimismo, ascetismo e apego à matéria, ódio e bondade.¹⁵ Era como se o céu e o inferno se tocassem e dos dois polos brotassem e para eles mesmos fluíssem e refluíssem a concepção de vida, o misticismo, o ideal cavalheiresco, formalmente acomodados em alicerces abstratos que apontavam para o abandono e melhoria do mundo. A fuga das pestes, da violência, da cobiça, dos demônios, das injustiças; o medo do inferno, do fim do mundo e das bruxas teria pelo sonho a via que possibilitaria uma vida mais bela. O conteúdo deste ideal [o sonho] é um desejo de regresso à perfeição de um passado imaginário (...) Mais forte e mais duradoura de todas é a ilusão de um regresso à natureza e aos seus inocentes prazeres pela imitação da vida pastoril. Desde Teócrito ela nunca deixou de dominar as sociedades civilizadas.¹⁶

    O idealismo medieval estava ligado a um princípio geral, que não necessitava encontrar as realidades individuais das coisas – não era importante a constatação das diferenças. O que prevalecia era a procura de um sentido universal que funcionava como norma e modelo de concepção: todas as coisas serão absurdas se o seu significado se limitar à sua função imediata e à sua fenomenalidade e se, pela sua essência, não alcançar um mundo para além deste.¹⁷ A procura de um significado comum que ultrapassasse a exterioridade do objeto, conectando sua essência a uma ideia que indicasse finalidade e não efeito, independente ou descolada do sofrimento ou da virtude individual, não só caracteriza o pensamento simbolista medieval como foi um salutar contrapeso ao forte individualismo religioso, inclinado à salvação pessoal.¹⁸ O realismo do medievo – assim alcunhado o idealismo pelos escolásticos – tendia a concretizar os conceitos, inclinava-se a transformar em imagem o pensamento e, por esse motivo, quando o homem da Idade Média quer conhecer a natureza ou a razão duma coisa, não a observa para lhe analisar a estrutura íntima, nem para inquirir sobre as suas origens; olha antes para o céu, onde ela brilha como ideia. Quer se trate duma questão política, moral ou social, o primeiro passo a dar é reduzi-la sempre ao seu princípio universal.¹⁹ Esse princípio fundamental emanava de Deus, que dá sentido àquilo que é vazio. Quando vemos todas as coisas em Deus e com Ele nos relacionamos, poderemos ler nas coisas vulgares uma significação de ordem superior.²⁰

    Relação profunda do espírito ou relação misteriosa entre duas ideias, o simbolismo medieval foi um obstáculo ao desenvolvimento do pensamento causal, visto que as relações causais e genéticas deviam parecer insignificantes ao pé das ligações simbólicas.²¹ Embora a concretização dos conceitos levasse o homem do medievo a buscar relações simbólicas com Deus – origem e fim de todas as coisas –, essa mentalidade ainda vai permanecer em obras como a preparada entre 1645 e 1650 pelo licenciado Antonio León Pinelo, que vê as insígnias da Paixão do Senhor, na flor do maracujá, símbolo do fruto proibido e tentação de Eva.²²

    Se a rígida estruturação social fortemente hierarquizada da Idade Média refletia-se nos conceitos e imagens relativos ao alto e ao baixo, na sua expressão espacial e na escala de valores,²³ o imaginário do homem medieval estava povoado, por outro lado, pelas lendas que descreviam o mundo fantástico oriental, retratado nas viagens de Marco Polo (1251-c. 1323), nas Maravilhas do mundo de Jehan de Mandeville (1300-1372), na Imago Mundi (1410) do cardeal francês Pierre d'Ailly (1350-1420), livro de cabeceira de Cristóbal Colón,²⁴ nas Etimologiae (séc.VII) de Santo Isidoro de Sevilha ou ainda na Navigatio Sancti Brendani (séc.X).

    Essas histórias maravilhosas falavam de povos estranhos, grotescos, monstruosos. A natureza não menos fantástica era povoada por animais não menos estranhos: unicórnios passeavam por entre vegetação encantada, composta por ervas capazes de curar qualquer doença, podendo ser encontradas próximas à fonte da eterna juventude. Eram histórias construídas, coletadas ou reproduzidas a partir de relatos de homens que viveram na Antiguidade, como Heródoto, almirantes que comandaram a expedição de reconhecimento do rio Indo a mando de Alexandre, o Grande, padres missionários que visitaram o reino do Grão Khan, peregrinos em busca dos lugares santos, comerciantes árabes e judeus. Muitos viajavam à procura do berço da humanidade descrito na Sagrada Escritura ou em busca da história de sua raça.

    De todos os lugares visitados pelos antigos e medievais, houve um que os impressionou mais vivamente: a Índia misteriosa, para onde confluíam a síntese dos climas, dos acidentes geográficos, da flora, da fauna e da religião. Lugares quentes e frios, vales e montanhas, rios e mares, aves e elefantes, verdor eterno das árvores, mitologia, metempsicose, vegetarianismo, sensualidade, ascetismo, luxo e despojamento. Talvez somente através de comparações ou a partir da verdade das Escrituras ou, ainda, com a ajuda do imaginário de cada um, fosse possível falar ou escrever sobre ela. Nem descoberta, nem inventada, mas construída, fabricada, obra constantemente refeita sobre o ofício de ingênuos ou engenhosos artífices e traficantes do imaginário, a Índia nos lembraria, se assim fosse necessário, que a observação é filha da memória e que o espantoso retira seu sabor da repetição insaciável do ouvir dizer.²⁵ A construção da Índia teria como arcabouço a soma das Realia e das Mirabilia Indiae, no horizonte das quais se inserem a mitologia indiana como a fornecedora dos arquétipos das mirabilia e a realidade observada sob o prisma do maravilhoso, sendo agrupada nos relatos dos argonautas da frota do conquistador macedônico, penetrada na Europa através da historiografia greco-romana. Fundindo-se nas duas, acrescente-se ainda as Maravilhas das Índias de Heródoto – que talvez tenha se inspirado em Hécato de Mileto (séc. VI a.C.) e este, provavelmente em Scylax (c. 515) –, popularizadas pelos repetidores e/ou coletadores de Ctésias de Cnido.²⁶

    Estava fortemente enraizada na Idade Média a doutrina da unidade fundamental do gênero humano.²⁷ Além das fronteiras geográficas conhecidas, nem os doutos da Antiguidade, nem os escolásticos admitiam a ideia da existência de antropoides adamitas normais. Temas como o da inabitabilidade da zona tórrida, do antimundo, do Paraíso terrestre, do inferno, dos antípodas, do mar tenebroso, do movimento das águas, da grandeza da Terra, da anunciação do Evangelho a todos os povos eram conhecidos, discutidos e aceitos como verdades inquestionáveis. A doutrina da unidade humana postulava a impossibilidade da existência de adamitas fora do circuito judeu-arábico-cristão e periferia.²⁸ Somente como hipótese ilustrativa desse universalismo cristão, Santo Agostinho em sua De Civitate Dei (413-426) admitia a existência de adamitas fora da oikoumené, mas antropoides não normais.²⁹

    Com o passar dos séculos e o respectivo fortalecimento do catolicismo, essas anomalias humanas foram se apresentando cada vez mais nas obras dos viajantes, nas prédicas religiosas ou nos textos puramente ficcionais, mas sempre distantes daquele círculo geográfico conhecido, cada vez mais localizando-se na Índia. A conformação da terra e seus acidentes geográficos adquiriram tal requinte no medievo que cartas náuticas localizavam com precisão ficcional os pontos onde o mar desaparecia, tragado por imenso buraco. As delicadas iluminuras que ornavam os textos manuscritos retratavam e contavam a história daqueles entes extraordinários extraídos dos relatos de viagens ou da geografia de Ptolomeu. Autores havia que falavam pela boca de eremitas ou que afirmavam terem pessoalmente estado nesses lugares extraordinários. Copiar textos dos outros não era uma atividade inédita. As narrativas mesclavam o fantástico pagão e cristão – o Jardim das Hespérides e o Gênese confirmam³⁰ – muito tempo antes que o homem ocidental se lançasse em viagens mais arrojadas pelo oceano desconhecido. Buscava-se o Paraíso, que representava o sonho sempre perseguido de viver eternamente, longe das pestes e da fome, sem necessidade de trabalhar, pois aquele lugar prodigioso, com uma só estação perdurando o ano inteiro, tinha árvores que produziam sem cessar e eram banhadas por rios perenes.

    Séculos depois de Santo Agostinho aceitar hipoteticamente adamitas na oikoumené, Santo Tomás de Aquino (1225-1274) já admite, na Suma Teológica, que o jardim do Gênese poderia eventualmente estar em alguma região tórrida. Com isso parecia de algum modo canonizar a opinião formulada por outros doutores, de que a misteriosa zona tórrida inhabitabilis et impermeabilis, banhada pelas águas de um mar que ninguém viu, devido ao seu escaldante calor – o Oceanus quem nemo vidit hominum propter zonam torridam de alguns mapas – correspondia, em significado encoberto, àquela mesma espécie de chama com que o Senhor esperava impedir qualquer acesso dos homens ao Paraíso Perdido.³¹ Aos poucos, a localização do Paraíso toma rumos novos, até mobilizar-se totalmente no relato de São Brandão, onde o situa em uma ilha que se locomove...³²

    Os relatos de viagens sempre exerceram seu fascínio e muitos não envelheceram. Ulisses, em sua epopeia marítima, viu sereias e ciclopes. Hannon, o cartiginês (c. 505 a.C.), colonizador das possessões da costa ocidental da África, descreve a abundância de árvores odoríferas e plantas balsâmicas³³ e confunde gorilas com selvagens peludos numa ilha próxima à embocadura do rio do Ouro. Com vinte anos de idade, Heródoto parte de Halicarnasso, em 464 a.C. Discutia-se a conformação da terra e os pitagóricos acreditavam que era redonda. Heródoto não participa das discussões dos sábios e inicia uma grande viagem de aventura pelas terras conhecidas. Pinta, como naturalista fiel, o crocodilo do Nilo, a sua estrutura e os seus costumes, a maneira como se apanha, depois o hipopótamo, o tupinambis, a fênix, o íbis, as serpentes consagradas a Júpiter.³⁴ Na Líbia descreve áspides, jumentos cornígeros (...), macacos cino-céfalos, animais sem cabeça, que têm olhos no peito.³⁵ O jovem Heródoto percorre a Arábia, a Assíria ou Babilônia, a Pérsia, a Índia que às extremidades da terra coube, até certo ponto, em sorte, o que ela tem de mais belo, como a Grécia tem a mais agradável temperatura das estações.³⁶ Ao norte do Ponto Euxino, no país dos Citas, mostra como se fez a aliança e em seguida a união dos Citas e das Amazonas, o que explica porque é que as raparigas daquele país não podem casar sem ter morto um inimigo.³⁷

    Século e meio depois, o médico Ctésias de Cnido,³⁸ companheiro de Xenofonte, um grego que viveu na Pérsia, reuniu em um texto que se perdeu, todas as histórias que falavam dos tesouros, da flora e da fauna maravilhosas da Índia, da conformação física extraordinária dos seus habitantes.³⁹ Bakhtin diz que Luciano (120-180) utilizou esse texto em sua A história verdadeira; procedimento semelhante fez Plínio (23-79) e Santo Isidoro de Servilha, entre outros.⁴⁰

    O marselhês Pythéas, geógrafo e astrônomo, viajou em 340 a.C. com um só navio, para além das colunas de Hércules, tomando a direção norte, diferentemente de seus antecessores, que navegaram para o sul.⁴¹ Chegando em Thulé (Verne diz que talvez fosse a Noruega ou a Jutlândia), não pôde ir mais adiante, pois já não havia mar, nem terra, nem ar.⁴² Esse viajante foi o primeiro a reconhecer a influência de luas nas marés e a observar que a Estrela Polar não ocupa exatamente o ponto por onde se supõe que passa o eixo do Globo.⁴³

    O texto perdido da viagem de reconhecimento do rio Indo do cretense Nearco foi resgatado por Arrian, na História Índica. Na Índia, a frota esfaimada do almirante de Alexandre, o Grande, atacou a miserável cidade dos ictiófagos, em 326 a.C., apossando-se dos poucos víveres de seus habitantes.⁴⁴ Sequenciando Ctésias, Calístenes (séc. III a.C.) recolhe essas lendas que irão aparecer nas versões latinas de Júlio Valério (300) e, no século X, na História das guerras de Alexandre o Grande. Calístenes exercerá sua influência ainda nas obras dos cartógrafos da Idade Média através de adaptações de Bruneto Latini e Gauthier de Metz.⁴⁵

    Traduzida por Abel de Remusat, a viagem ao ocidente da China, feita pelo monge chinês Fa-Hian, em fins do século IV d.C., descreve dragões venenosos em meio às neves eternas das montanhas do Afeganistão. Após mil contratempos, o monge atravessa o Indo, depois um deserto salgado e finalmente chega à Índia, o reino central, cujos habitantes, honrados e piedosos, sem magistrados, nem leis, nem suplícios, sem pedir o seu sustento de nenhum ente vivo, sem açougues nem tabernas vivem felizes no meio da abundância e da alegria, num clima em que o frio e o calor mutuamente se temperam.⁴⁶

    No século VI, Cosmas Indicopleustas, negociante egípcio,⁴⁷ assegura que a terra é quadrada e encontra-se, juntamente com os astros, fechada em um cofre oblongo. Nessa Topografia cristã do universo, Cosmas escreve a história natural dos animais da Índia e do Ceilão. Entre outros, cita o unicórnio e o carneiro almiscarado, caçado para a extração do sangue perfumado.⁴⁸

    Júlio Verne fala das viagens aos Lugares Santos, desde os primeiros tempos do cristianismo. Os peregrinos buscavam nesses lugares o túmulo de Nossa Senhora, de Adão, de Jesus Cristo, de Isaac, Raquel, etc. Assim ocorreu com o bispo francês Arculfo, no século VII, e com o inglês Willibaldo, morto em 746 e canonizado por Leão VII em 938.

    Um negociante de Bácora, Soleimão, descreve sua viagem feita em 851 até os confins da Ásia. Entre descrições de peixes inimagináveis, fala de duas ilhas entre as mil e novecentas situadas no mar de Herkend – governadas por uma mulher –, Ceilão e Sumatra, ricas em pérola e minas de ouro.⁴⁹

    Ali se ergue a torre que os dispersos construíram. É

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