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Orellana, Ursua e Lope de Aguirre: Suas ficções aventureiras ao longo do rio amazonas (Século XVI)
Orellana, Ursua e Lope de Aguirre: Suas ficções aventureiras ao longo do rio amazonas (Século XVI)
Orellana, Ursua e Lope de Aguirre: Suas ficções aventureiras ao longo do rio amazonas (Século XVI)
E-book372 páginas4 horas

Orellana, Ursua e Lope de Aguirre: Suas ficções aventureiras ao longo do rio amazonas (Século XVI)

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Sobre este e-book

A obra demonstra que os colonizadores espanhóis que desceram por duas vezes o curso completo do rio Amazonas, no século XVI, época do pleno Renascimento europeu, apresentavam uma mentalidade medieval. Para chegar a essa constatação, foram analisados os elementos literários deixados pelos cronistas em ambos os relatos, o entorno europeu da época e o entorno local.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de nov. de 2023
ISBN9786555852332
Orellana, Ursua e Lope de Aguirre: Suas ficções aventureiras ao longo do rio amazonas (Século XVI)

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    Orellana, Ursua e Lope de Aguirre - Elsa Barría

    Páginas de MIOLO_Orellana, Úrsua e Lope de Aguirre3

    Capítulo 1

    O medievalismo literário

    e sua indeterminação

    A segregação que se produziu na Europa devido à queda do Império Romano nas mãos dos bárbaros foi determinante para a decadência da cultura latina, especialmente para a língua. Alguns grupos, entre os quais alguns eruditos e letrados que desdenhavam do falar vulgar, tentaram em vão devolver ao latim sua primazia e, durante grande parte da Idade Média, continuou-se produzindo uma literatura própria, que cada vez mais foi ficando limitada à arte mais refinada. Desta maneira, durante a Idade Média, a velha língua se fragmentou em línguas vulgares: o toscano, o castelhano, o francês, o galaico-português, entre outras, que terminaram se impondo como línguas vernáculas nas jovens nações europeias.

    Segundo estudiosos, o castelhano foi uma das línguas europeias que se formou com maior precocidade, e, no século XVI, já estava muito próxima do castelhano atual.

    Durante a Idade Média e início do Século de Ouro espanhol, a cultura de massa da população se baseava na tradição oral, já que a expressão escrita era um fato minoritário. A literatura escrita da Idade Média – lírica, narrativa ou dramática – era também transmitida oralmente, por meio da leitura ou da canção em público; isso devido à escassez de exemplares e à abundância de analfabetos. Tal prática se tornou constante, a ponto de ser mencionada em Las Siete Partidas (II, Título XX, Lei XX): Por isso os cavaleiros, ao comerem, estavam acostumados a escutarem as estórias dos grandes feitos das armas.¹⁰ A literatura medieval espanhola, considerada como tal a partir do desenvolvimento da literatura em língua vulgar, o castelhano, tem seu início coincidindo aproximadamente com a composição do Poema de Mío Cid. Para alguns estudiosos, termina no final do século XV, com a publicação da primeira gramática castelhana, escrita por Nebrija, em 1492, época que deu início ao Renascimento espanhol. Na literatura desenvolvida durante esse período de quase quatro séculos, a língua vulgar, vernácula, foi ampliando o domínio da expressividade literária com um ritmo expansivo, que lhe brindou com algumas características que se perpetuaram por séculos e outorgaram peculiaridade à produção literária espanhola. Trata-se de uma literatura que apresenta especialmente temas de caráter épico e religioso, com um destacado tom didático e moralizador. Essas características continuaram se manifestando mesmo durante o Renascimento espanhol, que conservou a tradição medieval, imprimindo-lhe algumas formas próprias do espírito moderno. Dámaso Alonso explica:

    A Espanha não dá as costas a sua tradição medieval, e isso é o que a distingue de outros povos europeus, o francês por exemplo, e, ao contrário, salva toda sua tradição da Idade Média, e neste tronco enxerta o espírito e a forma do Renascimento. Este caráter de superação, de confluência de elementos contrapostos, de sínteses, produz esse resultado maravilhoso que é o Século de Ouro [...] ¹¹

    Juan Luis Alborg acrescenta:

    O Renascimento espanhol não teve apenas suas mais brilhantes manifestações valorizadas em outros países, foi além, sobrepujando-os em muitos aspectos. Mais ainda: conseguiu resultados de reconhecida originalidade, precisamente pela fusão da tradição medieval com as novas contribuições europeias. Em várias ocasiões destacamos essa característica de nossa literatura, que se faz patente não só quanto aos aspectos mais especificamente literários, mas também no que concerne a seu conteúdo e significação ideológica. Já sabemos que enquanto o resto das nações europeias rompe com seu passado, a Espanha o toma e renova, conseguindo uma síntese muito peculiar, ao fundir o melhor e mais duradouro de ambas as vertentes.¹²

    O teatro, a mística, o romanceiro, as novelas de cavalaria e um grande número de outras produções tiveram sua origem em uma raiz medieval. De acordo com Ramón Menéndez Pidal, essa invasão de elementos e obras medievais na literatura do Renascimento espanhol foi produto do que ele denomina de frutos tardíos;¹³ porque a Espanha apresentou uma propensão a se destacar nas empresas de ação, de aventura; mostra disso são seus êxitos históricos e descobrimentos geográficos, logrando nesta área frutos tempranos. No entanto, ocorreu o inverso na esfera cultural, especificamente na literária, em que os frutos vieram quando em outros países do Ocidente passou a estação propícia para eles.¹⁴ Pidal, sustenta que, na maioria das literaturas europeias, ao terminar a Idade Média, muitos gêneros se esgotaram com ela; não foi o caso da Espanha, onde não se produziu uma ruptura abrupta entre a Idade Média e o Renascimento, como o manifestado anteriormente.

    Tal ruptura na Espanha – afirma Menéndez Pidal – nunca foi tão completa como em outros países, e determinados velhos gêneros literários puderam aflorar novamente mais tarde, dando frutos que, precisamente devido a sua maturação tardia, tiveram melhor sabor e foram apreciados como oriundos de uma época mais adiantada que aquela em que outros países os haviam produzido.¹⁵

    O tardio dessas manifestações não significa necessariamente que seja um aspecto negativo, mas que essas obras, quando surgiram, já vieram maduras e adquiriram valor e novidade inesperados.

    Existe quase unanimidade entre os estudiosos espanhóis e estrangeiros sobre o fato de a literatura espanhola apresentar uma destacada falta de sincronia com relação ao ritmo evolutivo apresentado por outras literaturas europeias. Isso não significa que as demais literaturas conseguiram manter uma curva idêntica nos diferentes países, mas que esse aspecto é mais notório na literatura espanhola da Idade Média e, sobretudo, a partir do século XVIII, à exceção dos séculos XVI e XVII, correspondentes ao Século de Ouro, em que se desenvolveram notadamente alguns gêneros literários modernos, entre os quais a novela e o teatro.¹⁶

    É possível que esta falta de sincronia tenha determinado algumas características da literatura espanhola, como a de misturar [...] temas e atitudes estéticas que em outras literaturas se apresentam como antitéticos ou como produtos bem diferenciados de distintas épocas.¹⁷ Esse fenômeno foi produzido em quase todas as épocas, dando origem ao dualismo próprio da literatura espanhola:

    [...] realismo e idealismo; exaltação sentimental. Amorosa ou espiritual (Dom Quixote) e desejo imediato do gozo ou da conquista (Don Juan); ideais cavalheirescos e vida rufianesca; confusão do divino com o humano, ou do profano com o religioso; excelsa contemplação do mais puro misticismo e do sentido prático; alta moralidade e sátira obscena, honra e picarismo.¹⁸

    Nas características já mencionadas da literatura medieval, acrescenta-se que, com frequência, temas históricos e literários apareciam combinados e, inclusive fundidos, com forte caráter maravilhoso, apesar de a literatura espanhola não se distinguir pelo uso frequente do fantasioso, comparada a outras literaturas. Há uma ausência, certa [...] aversão a tudo o que significa maravilhoso, seja qual for sua índole.¹⁹ Mesmo assim, quando esse elemento surgiu nas obras medievais espanholas, foi amalgamado de tal maneira aos elementos não ficcionais, que o leitor ou ouvinte não colocava em dúvida a veracidade dos episódios relatados.

    Durante o Medievo, o maravilhoso se manteve por meio da épica, que teve como elemento comum a mitologia, permitindo a irrupção do sobrenatural. Na Espanha, as novelas de cavalaria criaram espaços próprios, nos quais o maravilhoso surgia espontaneamente, enchendo de inquietude, temor e atração os leitores e/ou ouvintes das histórias narradas.

    Pelo exposto, a seguir, será mostrada, somente a título de ilustração, essa peculiaridade da literatura medieval espanhola, com exemplos extraídos de algumas obras que foram escritas durante a Idade Média e o Renascimento, e serão destacados episódios maravilhosos nelas presentes.

    O Poema de Mío Cid, de autor anônimo, é o primeiro documento conservado da literatura épica espanhola da Idade Média. Tornou-se publicamente conhecido em cópia única, feita por Per Abbat, em época não determinada: aproximadamente em 1207 ou 1307, de acordo com códigos pouco claros que aparecem nas linhas finais da obra. Nela, o narrador registra parte da vida de Rodrigo Díaz de Vivar, o El Cid Campeador, cuja existência transcorreu entre os reinados de Fernando I e Alfonso VI; mas foi no reinado deste, de 1072 a 1100, que transcorreram os fatos contados na obra, dividida em três partes ou cantares, a saber: o do desterro do El Cid, o das bodas das filhas do El Cid e o da afronta de Corpes. A veracidade geográfica e histórica de parte da obra é indiscutível, porque toma um momento da biografia de Rodrigo Díaz de Vivar. Resultado de muitos anos de estudos, grande número de autores chegaram à conclusão de que o Cantar incorpora muita ficção, enchendo suas páginas de elementos literários, entre os quais se destaca, a seguir, aquele que abre o Cantar III. Os fatos que são narrados ocorreram em Valência, enquanto o El Cid, junto com seus homens e genros, os covardes Infantes de Carrión, descansavam e dormitavam, quando, surpreendentemente,

    [...] salióse de la red y desatóse el león.

    En gran miedo se vieron en medio de la corte;

    Embrazan los mantos los del Campeador,

    Y cercan el escaño y se ponen sobre su señor.

    Fernan González no vio alli donde se escondiese,

    Ni cámara abierta ni torre;

    Metiose bajo el escaño; ¡tuvo tanto pavor!

    Diego Gonzalez por la puerta salió,

    Diciendo por la boca: ¡No veré a Carrión!

    Tras una viga lagar, metióse con gran pavor; [...]

    (versos 2282 a 2290)²⁰

    Nesse momento, o Campeador se despertou e foi informado por seus vassalos sobre o ocorrido, e

    [...] Mío Cid apoyó el codo, en pie se levantó,

    El manto trae al cuello e adeliño para el león.

    El león, cuando lo vio, mucho se amedrentó;

    Ante Mío Cid, la cabeza humilló y la boca bajó;

    Mío Cid don Rodrigo del cuello lo tomó

    e llévalo de diestro y en la red le metió.

    A maravilla lo tienen cuantos allí son;

    Y tornáronse al palacio para la corte.

    Mío Cid por sus yernos demandó y no los halló;

    Aunque los están llamando, ninguno respondió.

    Cuando los hallaron, vinieron tan sin color;

    ¡No visteis tal burla como iba por la corte!

    Mandólo vedar mío Cid el Campeador [...]

    (versos 2296 a 2308 – grifo nosso)²¹

    O leão, feroz animal, recurso utilizado amplamente nas literaturas europeias, no Mío Cid, ao se soltar, infunde pânico em todos os presentes; no entanto, demonstra humildade e acatamento diante do carisma do Campeador, deixando em evidência alguns aspectos importantes do cantar: a participação do herói, que, por sua simples presença se impõe perante a fera; a lealdade dos vassalos, que se apressaram em proteger seu senhor que dormia; e, finalmente, a ruindade e covardia dos Infantes de Carrión, que, como será visto mais adiante na obra, foram a causa do ultraje a suas esposas, como uma forma de vingança pela desonra sofrida no episódio do leão.

    No relato breve El ladrón devoto, parte da obra Milagros de Nuestra Señora,²² do clérigo Gonzalo de Berceo, o elemento ficcional maravilhoso também se faz presente. O autor, um sacerdote de Rioja, nascido aproximadamente em 1198, foi o primeiro poeta de nome conhecido que se dedicou a desenvolver temas da cultura religiosa de seu tempo, tais como biografias de santos, obras marianas e paráfrases de hinos. Tudo isso como forma de pregar as grandezas dos santos e, especialmente, da Virgem. Nos Milagros de Nuestra Señora, relata vinte e cinco milagres, em sua maioria pertencentes ao acervo de tradições marianas, muitos deles recriados com grande originalidade imaginativa pelo clérigo. O milagre VI conta que um ladrão facínora mantinha especial devoção à Virgem Maria:

    Entre todo lo malo tenía una bondad

    Que al final le valió y le dio salvedad:

    Creía en la Gloriosa de toda voluntad,

    Y siempre saludaba hacia su majestad.

    Decía Ave María y más de la escritura,

    y se inclinaba siempre delante su figura;

    decía Ave María y más de la escritura,

    tenía su voluntad con esto más segura.

    (144 – 145)

    Mas a justiça não tardou e o ladrão foi preso e condenado à forca. Foi executado e dado como morto. Para grande surpresa dos parentes, amigos e vizinhos, ao terceiro dia, encontraram-no vivo, alegre e sem danos. Isso porque depois de pendurado pela corda:

    La Madre gloriosa, tan ducha en acorrer,

    la que suele a sus siervos ennas cuitas valer,

    a esti condenado quísolo proteger,

    recordóse el servicio que ie solié fazer.

    Puso bajo sus pies, do estava colgado,

    Las sus manos preciosas; túvolo levantado:

    non se sintió por cosa ninguna embarazado,

    ni estuvo más vicioso nunca, ni más pagado.

    (149–150 (grifo nosso))

    Os responsáveis pela malsucedida execução atribuíram a salvação do ladrão a algum defeito na forca, por ter ficado frouxo o laço. Decidiram, então, degolá-lo:

    Fueron por degollarlo los mozos más livianos

    con buenos serraniles, grandes y bien adianos:

    metió Sancta María entre medio las manos

    y quedaron los cueros de su garganta sanos.

    (155 (grifo nosso))

    Reconhecido o prodígio de que, em ambas as situações, a Virgem Maria havia intercedido a favor da vida do ladrão, sustentando-o pelos pés para que não morresse enforcado ou colocando suas mãos entre a lâmina e o pescoço do delinquente, para que não fosse decapitado, os juízes:

    Dexáronlo en paz que siguiese su vía,

    porque non querían ir ellos contra Sancta María;

    su vida mejoró, se apartó de folía,

    cuando cumplió su curso murióse de su día.

    157

    É o tipo de milagre que Juan Manuel Rozas²³ chama de milagres do perdão, nos quais Maria consegue salvar da condenação seus devotos.

    Em pleno Renascimento, surge o Amadís de Gaula (1508),²⁴ novela de cavalaria que inicia uma série dentro do gênero e que se constitui em um dos livros mais lidos no século XVI, como será detalhado mais adiante. Na primeira parte da obra, dá-se a conhecer a origem do herói Amadís, fruto do primeiro encontro entre o rei Perión de Gaula e a princesa Elisena, filha do rei Garínter, da pequena Bretanha. As circunstâncias de sua concepção são insólitas, misturando sonho profético e amor fulminante entre ambos. Recém-nascido, Amadís foi envolto em ricos panos e, para grande tristeza de sua mãe, foi colocado

    [...] el niño dentro en el arca le pusieron la espada del rey Perión [...] la puso en el río y dexóla ir; y como el agua era grande y rezia, presto la passó a la mar, que más de media legua de allí no estava²⁵ (grifo nosso).

    A donzela de Elisena havia escrito uma carta que acompanhou o menino e na qual dizia: Este é Amadís sem Tempo, filho de rei; ela foi pendurada no pescoço, junto ao anel que o rei Perión havia dado à Elisena; objetos que podiam ajudar em sua identificação. Já no mar, durante a manhã, o cavaleiro Gandales e sua família, que viajavam na barca em direção à Escócia,

    [...] vieron el arca que por el agua nadando iva, y llamando cuatro marineros les mandó que presto echassen un batel y aquello le traxessen, lo cual prestamente se fizo, comoquiera que ya el arca muy lexos de la barca passado havía²⁶ (grifo nosso).

    O cavaleiro e sua esposa se sensibilizaram diante da presença do menino dentro da arca, alegrando-se muito quando mamou com muita vontade e, ao chegarem em seu castelo, conta:

    ... fizo criar el donzel como si su hijo propio fuesse, y así lo creían todos que lo fuesse, que de los marineros no se pudo saber su fazienda, porque en la barca, que era suya, a otras partes navegaron²⁷ (grifo nosso).

    A origem de Amadís e a sua sobrevivência em tão perigosas circunstâncias são os primeiros de muitos e incríveis acontecimentos presentes ao longo da obra, que se caracteriza justamente pelo uso frequente de elementos maravilhosos.

    Nos exemplos citados, os trechos em negrito, destacados em todos os textos, mostram os elementos maravilhosos, o assombroso e o extraordinário, que, hoje em dia, são difíceis de aceitar, mas que na época provocavam uma atração imensa e cativavam a imaginação dos leitores e ouvintes, os quais acreditavam em tudo o que liam, porque não se percebia com muita nitidez a fronteira entre a realidade e o imaginário, o que também caracterizou a literatura da Idade Média.

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    Capítulo 2

    As raízes peninsulares, o entorno americano e a Literatura Colonial

    2.1 – A Espanha no século XVI

    O século se inicia, praticamente, com a morte da rainha Isabel, a Católica, ocorrida em 1504. Ela, herdeira da Coroa de Castela, e seu esposo, Fernando, o Católico, herdeiro da Coroa de Aragão, permanecem juntos até o falecimento da rainha. É uma Espanha que não tem unidade política nem administrativa, mas que constitui uma série de territórios que foram se unindo sucessivamente, à medida que um soberano herda de seus pais e transmite, por sua parte, a seus filhos. Durante a Idade Média e parte do século XVI, com o nome de Espanha era designado o conjunto de Reinos de Espanha, que correspondia aos Reinos Cristãos. Somente no reinado de Felipe II será novamente impulsionado o conceito de nação e o termo de Espanha para designá-la, apesar de que a integração dos reinos nunca existiu. Nesse conjunto, destaca-se o reino de Castela, seja por sua posição geográfica, seja por sua extensão territorial, constituindo-se como reino mais rico e dinâmico da Península durante todo o século, expandindo sua preponderância também no âmbito linguístico, pela importância e pelo predomínio que adquire o castelhano. A morte de Isabel, a Católica, provoca uma crise política, porque a Coroa de Castela recai sobre a filha dos Reis Católicos, dona Joana, cuja saúde mental não lhe permite exercer com plenitude seus poderes. Exercem o governo, primeiramente, seu esposo, Felipe, o Formoso, falecendo em 1506, posteriormente, seu pai, Fernando, o Católico, e, finalmente, o filho de dona Joana, Carlos I, permanecendo no cargo de 1516 a 1556, data na qual abdica em favor de seu filho, Felipe II, quem governa até sua morte, em 1598. Pode-se afirmar que o século XVI espanhol está marcado por monarquias católicas, representadas por Isabel, a Católica, seu neto Carlos I, e seu bisneto, Felipe II.

    Em 1519, Carlos I, de Espanha, foi eleito Imperador do Sacro Império Romano Germânico, como Carlos V, da Alemanha, dignidade que lhe confere poderes sobre os demais soberanos da Europa cristã. O monarca se viu envolvido por um espaço político muito amplo, que demandava toda sua atenção. Teve que enfrentar sérios problemas dentro da Península, como as revoltas dos anos 1520-1521, denominado Movimiento Comunero, surgido nas cidades do reino de Castela, o qual pretendia limitar o poder arbitrário da Coroa, reivindicando uma participação mais direta nos assuntos políticos. Este movimento rapidamente recebeu apoio dos camponeses, porque temiam que o soberano descuidasse de seu reino ao se dedicar às responsabilidades imperiais. A causa que originou esse levante foi a grave crise econômica que enfrentava a Península, afetando praticamente todos os setores, teve início em 1504 devido às más colheitas, à fome e aos altos índices de mortalidade. O descontentamento provoca um movimento de desobediência generalizada, que se manifesta não só em Castela, mas também em outros reinos. O poder real consegue, finalmente, sufocar a insurreição.

    Fora da Península, o Imperador Carlos V luta contra alguns países da Europa para proteger as possessões espanholas e, por fim, enfrenta a rebelião de Martinho Lutero contra o papado, em 1517. Houve vários confrontos e tentativas de conciliação entre protestantes e católicos. O Imperador tenta, de todas as maneiras, conservar a unidade religiosa da Europa, mas fracassa. Decepcionado, abdica no ano seguinte (1556) em favor de seu filho Felipe.

    Não é só a hegemonia europeia que representa o século XVI espanhol, mas também o momento de sua grande expansão na América e nas Ilhas Filipinas. Foram-lhe somados dois grandes impérios: o asteca e o inca. O ouro e a prata que chegavam das Índias serviram para consolidar, entre outras coisas, a moeda castelhana. Nas palavras de Rufino Blanco-Fombona,

    o mar está coberto por seus barcos. As minas do México e do Peru engrossam o erário da Espanha. Um único vice-rei espanhol das Índias é mais poderoso, em termos de territórios, dinheiro e súditos, que muitos monarcas da Europa.²⁸

    Os setores bancário e de comércio internacional apresentaram um desenvolvimento extraordinário, fato que assegurou à Espanha uma economia forte e uma moeda saneada, além das reservas de ouro e prata que não pararam de chegar da América. No entanto, os desacertos na administração tanto de Carlos V como de Felipe II levaram à ruína uma das monarquias mais poderosas do século XVI. O ouro e a prata provenientes das Índias foram utilizados para manter as guerras europeias. O número de desempregados era alto, porque não houve uma política para transformar a Espanha em uma nação industrial; ao contrário, sua economia se baseou na exportação de matérias-primas (ferro, lã) e na importação de produtos manufaturados. A indústria nacional era primitiva e escassa, e a quase única ocupação do povo era a agricultura pastoril rudimentar – a Mesta – formada no século XVI pelos donos de gado de Castela, Leão e Extremadura. Diferentemente de outras nações europeias, a Espanha não formou uma importante classe burguesa industrial. Suas guerras constantes deram origem a uma pequena aristocracia militar. Apesar de todo o poderio alcançado pela Espanha, a falta de emprego foi alta durante todo o século.

    O reinado de Felipe II também foi marcado por sérios enfrentamentos fora da Península, mas foi especialmente dentro dela onde os conflitos foram os que mais preocuparam, porque as lutas contra os judeus e mouros se acentuaram, produzindo sangrentas rebeliões, especialmente por parte dos muçulmanos, motivadas pelos novos impostos que pesavam sobre eles e pelo processo de evangelização e assimilação da cultura ocidental, do qual eram objeto. As proibições que se iniciam com o Cardeal Cisneros e que produzem os levantes da região mourisca de Las Alpujarras continuam na época de Felipe II, quando os proíbe de ler e rezar em árabe. Deviam queimar todos seus livros. Nem no interior de suas casas deviam falar sua língua. Tratou de apagar as marcas da civilização muçulmana.²⁹ Esses e outros conflitos provocaram a expulsão de ambos os povos: os judeus, que se dedicavam à banca, e os mouros, à agricultura e às artes, que davam firme sustentação à economia da Península; começando, assim, uma queda perigosa das divisas espanholas. Felipe era um soberano de personalidade firme, que impunha sua vontade e que teve participação ativa em todos os níveis de sua administração, um autocrata que não conseguiu deter o empobrecimento de seus reinos.

    A sociedade espanhola do século XVI era formada por estamentos, imagem permanente da sociedade cristã, fundada sobre o privilégio da nobreza, um primeiro escalão social, cuja potência econômica e social era imensa; possuía grandes propriedades, honras e títulos de nobreza. Essa hermética sociedade dificultava muito a incorporação de novos elementos aos diferentes estratos. Eram vestígios da fechada sociedade medieval, que garantia a permanência hereditária da distribuição social. Desde os Reis Católicos, o Estado conta com duas categorias principais de funcionários: os letrados, que eram graduados nas universidades, e os cavalheiros, homens das camadas inferiores da nobreza. Com relação a esses, serão dadas maiores informações no Capítulo 3.

    Tal modelo de sociedade não permitia aos homens que não faziam parte da nobreza usufruir dos benefícios e ter oportunidades de ascensão social. Como bem se sabe, é nela que, a partir da primeira metade desse século, surge a figura do conquistador.³⁰ Por isso, os primeiros a emigrarem ao Novo Mundo não foram os nobres, mas pessoas de origem humilde, muitas delas do campo, motivadas pela miséria rural, e que viam nas novas terras uma chance de fugirem dos senhores feudais, dos pesados impostos e da luta pela sobrevivência.

    Na América, os pioneiros não eram nobres pois estes não participaram das primeiras colonizações, nem da conquista, mas espanhóis pobres de todas as condições, muitos dos quais eram soldados e marinheiros desempregados, após o final das guerras de Granada e da Itália; outros eram jovens fortes de posses escassas, entre os quais muitos fidalgos (como Cortês) e boias-frias analfabetos (como Pizarro), que esperavam fazer fortuna na América.³¹

    O Humanismo começa a se manifestar no final do século XV, na Espanha, e se instaura, como no resto da Europa, sobre uma concepção nova do homem, tomando como referência as doutrinas clássicas. Esse novo homem, que por sua inteligência se basta, tem como desafio a investigação da natureza e vive em um mundo belo que lhe dá prazer, entre outras propostas. Mesmo que esse humanismo renascentista tenha conseguido unificar duas ocupações antagônicas para o homem medieval, como eram as letras e as armas, permaneceu por muito tempo vivo o modo de ser medieval, a exemplo do ocorrido na literatura, conforme registrado no Capítulo 1.

    Enquanto quase toda a Europa era mais ou menos racionalista e se uniformizava em torno de alguns protótipos, continuavam existindo aqui os quixotes e os sanchos, os iluminados e os hereges, os cavaleiros, os aventureiros, os pícaros, os arrivistas, os toureiros, os rapazes ociosos, os ciganos [...] Em outras palavras, toda uma variada galeria de estilos pessoais e contraditórios; uma 'humanidade' arraigada à terra, afetiva e transcendente, no mais puro estilo medieval. Também fica claro que havia alguns industriais, economistas e políticos no estilo europeu, mas eram uma minoria sem excessivas pretensões.³²

    No que diz respeito às manifestações artísticas, impõe-se como

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