Narrativas memorialísticas: metodologia de pesquisa psicanalítica de fenômenos sociais complexos
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Narrativas memorialísticas - Andréa Maris Campos Guerra
SEÇÃO 1
FUNDAMENTOS TEÓRICOS
(1) Narrativas memorialísticas: por uma justificação filosófica
Carlos Roberto Drawin
(2) Narrativas Memorialísticas e arte na cena da pesquisa psicanalítica de fenômenos sociais
Ana Carolina Dias Silva
Andréa Máris Campos Guerra
Jacqueline de Oliveira Moreira
(3) Análise Psicanalítica de Narrativas: Perspectivas de Freud a Lacan
Fábio Santos Bispo
Andréa Máris Campos Guerra
Jaqueline Oliveira Bagalho
Afonso Celso Pereira Júnior
(4) O nome e a herança nas Narrativas Memorialísticas: o fazer-se obra em ato
Antoine Masson
NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS: POR UMA JUSTIFICAÇÃO FILOSÓFICA
10.15448/1694.2
Carlos Roberto Drawin
1 AS RAZÕES DA JUSTIFICAÇÃO FILOSÓFICA
A expressão narrativas memorialísticas
é de fácil compreensão, e, por conseguinte, pode parecer inusitada a pretensão de oferecer justificação filosófica a um significado aparentemente bem simples. Afinal, narrar
é contar uma história e criar um enredo mais ou menos linear e banal, e, ao predicar a narração como memorialística
, parece ser óbvio se tratar de algo relativo à recordação, e todos nós fazemos isso ao contarmos, todos os dias, uns aos outros, o que se sucedeu conosco em nossos afazeres e circunstâncias. Quando, no entanto, atribuímos às narrativas memorialísticas
o estatuto de um método, a simplicidade do significado inicial pode ser justamente o elemento perturbador. A etimologia do termo método
é bem conhecida, pois provém da palavra caminho
(hodós), e um caminho ou itinerário é uma estrada (iter) que nos leva de um lugar a outro; por isso, segui-lo supõe possuir certo objetivo ou finalidade. Se já estamos onde queremos estar ou se nada sabemos sobre onde queremos ir, então não saímos do lugar ou, simplesmente, andamos em volta, mais ou menos perdidos. Mas, mesmo nesse caso, o objetivo está posto, embora permaneçamos parados ou andando sem rumo. Há sempre um objetivo explícito ou pressuposto, e a possível dificuldade se encontra em determinar qual trajeto devemos tomar para atingi-lo.
Há, portanto, um objetivo e um mapeamento ou um levantamento do terreno, e isso supõe algum conhecimento prévio, senão jamais poderíamos tomar alguma iniciativa e fazer uma escolha adequada de itinerário. Por isso, a consulta de um dicionário da língua portuguesa nos esclarece se tratar de procedimento, técnica ou meio de se fazer alguma coisa, especialmente de acordo com um plano
e, logo acrescenta, processo organizado, lógico e sistemático de pesquisa
(Houaiss, 2001, p. 1.910). Se prosseguirmos consultando dicionários filosóficos, encontramos esclarecimentos adicionais, como pesquisa dirigida pela razão, caminho da verdade
(Burkhardt, 2003, p. 175) ou quando se dispõe de, ou se segue, certo caminho para alcançar um determinado fim, proposto de antemão
(Ferrater-Mora, 1981, p. 2.217), para, logo em seguida, especificar que este fim pode ser o conhecimento ou pode ser também um ‘fim humano’ ou ‘vital’; por exemplo, a ‘felicidade’
(Ferrater-Mora, 1981, p. 2.217).
Por conseguinte, a finalidade estabelecida de antemão deve ser obtida por meio de um plano
caracterizado como sendo organizado
, lógico
, sistemático
e racional
. Na segunda definição, todavia, a finalidade já se revela múltipla, podendo ser cognitiva, moral ou, ainda, existencial. Se continuarmos lendo os verbetes, após essas explicações preliminares, começamos a perceber como a diversidade dos objetivos vai se desdobrando histórica e conceptualmente, em um largo espectro de abordagens heterogêneas e, até mesmo, antagônicas, podendo-se falar em método analítico, intuitivo, dialético, axiomático, fenomenológico etc., de modo a ampliar, quase indefinidamente, as denominações e estratégias a elas concernidas. Se aprofundarmos os estudos de cada uma dessas abordagens, iremos nos embrenhando em complicações e dificuldades crescentes.
Deixando de lado, porém, todo esse emaranhado teórico, dois problemas derivados dessas definições mais simples logo nos chamam a atenção. O primeiro deles decorre de uma espécie de círculo que, pode-se suspeitar, seria vicioso: o método, definido como racional, seria determinado pelo objetivo a ser alcançado, mas o objetivo posto de antemão não seria anterior à racionalidade? E, se assim for, a racionalidade seria determinada por uma escolha arbitrária e irracional? Ou exigiria seguirmos um método antes do método? Esse problema tão difícil atormentou, desde Platão, muitas mentes geniais, e aqui o ilustramos, rapidamente, com a elaboradíssima controvérsia filosófica entre Kant e Hegel.
Para o primeiro, teríamos de proceder a uma crítica do conhecimento, antes de trilharmos o caminho seguro da ciência, e foi esse o ingente esforço de sua crítica da razão pura
(Kant, 1781/1985), ao convocar a razão ao tribunal de si mesma, de modo a assentar a investigação científica em bases sólidas. A tarefa da metodologia, como contraparte e complemento da lógica transcendental, consistiria em encadear os diversos elementos do conhecimento em uma ciência... indicar os meios que favoreçam tudo aquilo que faça a perfeição do conhecimento: a clareza e a distinção, a solidez das bases, a sistematicidade da ordenação
(Kant, 1976 apud Eisler, 1994, p. 698). Para o segundo, contudo, não haveria como proceder a uma crítica prévia, anterior ao trabalho metódico e rigoroso da ciência, pois, nesse caso, ou estaríamos plantando a árvore do conhecimento em um solo irracional – o que seria, evidentemente, contrário à intenção crítica kantiana – ou incorreríamos em uma petição de princípio
, ao apelarmos para uma racionalidade anterior a si mesma e sempre recuando ad infinitum. Para Hegel (1807/2014), essa circularidade errônea adviria do
temor de errar [que] introduz uma desconfiança na ciência, que, sem tais escrúpulos, se entrega espontaneamente à sua tarefa, e conhece efetivamente. Entretanto, deveria ser levada em conta a posição inversa: por que não cuidar de introduzir uma desconfiança nessa desconfiança e não temer que o temor de errar já seja o próprio erro? (Hegel, 1807/2014, p. 70)
Como, então, esse obstáculo poderia ser ultrapassado? Se concebermos a razão não como uma faculdade ou um predicado do sujeito cognoscente, mas como enraizada nas coisas mesmas, ela já se manifesta no dinamismo e nas contradições de nossa experiência do mundo e está arraigada na inteligibilidade das coisas. Não pretendo, ao trazer à tona questões tão intrincadas, aventurar-me nas escarpas desafiantes da especulação filosófica. Gostaria tão somente – a partir do confronto desses dois gigantes da metafísica, Kant e Hegel – extrair dessa controvérsia duas alternativas acerca do método científico.
A primeira, enfatizando a descontinuidade entre ciência e experiência, propõe a sua superação, por meio de um método mais ou menos formalizado, capaz de contornar os escolhos do antropomorfismo e as confusões de nossas vivências subjetivas. O sucesso dessa empreitada, registrado nos manuais de metodologia científica, é inegável e é facilmente confirmado pelos avanços das ciências duras. Por outro lado, ao se tornar dogmático, esse direcionamento pode levar a um rígido monismo epistemológico, excluindo do campo científico todos os fenômenos considerados não encaixáveis no modelo idealizado do método. Assim, amplos segmentos de nossa experiência psíquica e social cairiam sob essa interdição. Os fenômenos psíquicos, por não serem objetiváveis nem observáveis, segundo o cânone da espacialidade, relegariam as nossas vivências subjetivas à certa marginalidade epistêmica. Os fenômenos sociais, estando sempre entrelaçados a ações orientadas por valores, intenções e crenças dos agentes, poderiam ser observados, desde que encarados como uma factualidade coisificada. Rios de tinta já foram vertidos na discussão dessas dificuldades (Chalmers, 1993; Papineau, 2002; French, 2009). Os impasses epistemológicos levaram Feyerabend (1974), um conhecido filósofo da ciência, a propor uma teoria anarquista do conhecimento, conforme o subtítulo de sua obra Contra o Método, uma vez que a ideia de um método fixo, de uma teoria da racionalidade fixa, surge de uma visão de homem e de seu contorno social demasiado ingênua
(Feyerabend, 1974, p. 21). Assim, prossegue o autor, quando se considera qualquer regra, por fundamental ou ‘necessária para a ciência’ que seja, podem-se imaginar circunstâncias nas quais é aconselhável não só ignorar a regra, mas adotar uma oposta
(Feyerabend, 1974, p. 23).
A segunda alternativa, pressupondo a inter-relação dialética entre ciência e experiência, aposta na pluralidade dos métodos e procedimentos, e a sua adoção não pode ser feita, aprioristicamente, a partir de um modelo ideal, mas depende do objeto
que se pretende abordar. Aliás, a consciência da complexidade do mundo exigiria não apenas a aceitação da pluralidade dos métodos, mas a abertura e o empenho, na interlocução de diversas disciplinas científicas, o reconhecimento de saberes tradicionalmente vistos como não científicos – por exemplo, diversas manifestações da chamada cultura popular
– e o acolhimento dos testemunhos e das narrativas dos sujeitos concretos que vivenciaram ou vivenciam os fenômenos que se quer compreender.
No entanto, essas atitudes de aceitação e abertura, reconhecimento e acolhimento não derivam de certa condescendência epistemológica dos pesquisadores, em seu estatuto de sujeitos do conhecimento, mas possuem valor cognitivo intrínseco, porque são impostas pelo dinamismo da coisa mesma. O que essa expressão dinamismo da coisa mesma
quer dizer? Ela contém três dimensões presentes em todo projeto humano de conhecimento. A primeira diz respeito à linguagem; todas as atividades humanas, inclusive a ciência, são linguisticamente mediadas e, portanto, todas as sentenças, mesmo as mais empíricas ou evidentes – como está chovendo
ou dois mais dois igual a quatro
– são recursivas, isto é, podem ser, indefinidamente, retomadas e desdobradas e possuem uma extensão infinita. A segunda se refere ao caráter social e intersubjetivo da linguagem; e a terceira dimensão, que eu gostaria de sublinhar, é a da historicidade de todo conhecimento, enquanto mediado pela linguagem e pela cultura. Mesmo a mais dura
das ciências da natureza não pode escamotear essas dimensões condicionantes do modo de ser do humano (Davies, 2002).
Se assim é, então não se pode interditar previamente um método ou algum tipo de aproximação da realidade, senão em nome de uma opção ontológica postulada dogmaticamente como a única aceitável. Quando se trata de investigar a ordem do humano
, em sua irredutibilidade, esse tipo de opção dogmática e interdição epistemológica não se justifica filosoficamente e tende a ser implodido pela própria lógica da investigação (Oliveira, 2014; Andler et al., 2005).
Esses argumentos, aqui resumidamente elencados, tornam-se ainda mais relevantes quando o objeto
a ser investigado envolve indivíduos, grupos, classes sociais e, até mesmo, culturas e subculturas não integrados ou excluídos do sistema hegemônico de poder. Nesse caso, as atitudes de aceitação da pluralidade metodológica e de abertura para a diversidade das disciplinas, convergindo com o reconhecimento de saberes, à margem do establishment acadêmico, e com o acolhimento das narrativas dos sujeitos concretos, apontam para a perspectiva transdisciplinar.
2 RAZÕES DA PERSPECTIVA TRANSDISCIPLINAR[ 1 ]
A ideia de transdisciplinaridade, associada, em sua origem, ao nome do físico teórico romeno Basarab Nicolescu, ganhou cada vez mais espaço na discussão epistemológica e contemporânea, tornando-se um movimento internacional, com a fundação do Center for transdisciplinar research and studies (CIRET) e do Study Group on transdisciplinarity (UNESCO), ambos liderados por Nicolescu, e com a realização, em 1994, no Convento de Arrábida (Portugal), do Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade (Drawin, 2019). De tais iniciativas, nasceram o Manifesto da Transdisciplinaridade e a Carta da Transdisciplinaridade. Conforme adverte Nicolescu (2007), o programa transdisciplinar foi desencadeado por uma situação insustentável. Isso porque, segundo ele,
o seu ponto de partida é a incrível multiplicação no transcurso do tempo do número de disciplinas especializadas. Quando as primeiras universidades foram fundadas por volta do século XIII nós tínhamos sete disciplinas, que eram chamadas trivium e quadrivium, correspondendo mais ou menos o que nós hoje chamamos Ciências Exatas e Ciências Humanas. Em 1950 nós tínhamos 54 disciplinas, que começaram a se multiplicar muito rapidamente. No ano 2000 nós tínhamos mais do que 8.000 disciplinas (...) o que significa 8.000 maneiras de olhar para a realidade. (Nicolescu, 2007, p. 77)
Porém, os números podem ser ainda mais espantosos; seja como for, a multiplicação fragmentária dos conhecimentos levou a diversas instituições, a partir dos anos 1970, e a iniciativas, como a realização, pela OCDE, do Colóquio Internacional sobre a Interdisciplinaridade (1970) e, pela UNESCO, do Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade (1994), assim como os colóquios sobre a transdisciplinaridade da Abadia de Royaumont (1998). Mais importante, porém, foram os programas efetivos de colaboração entre diversas disciplinas tanto no campo das ciências duras, como é o caso das pesquisas em biologia molecular, quanto no campo das ciências humanas e sociais, como é o caso da epistemologia genética e do estruturalismo (Drawin, 1919; Domingues, 2012). O Centro Internacional de Epistemologia Genética, fundado por Jean Piaget, em 1955, visava reconstruir a gênese do pensamento, a partir da associação de investigações empíricas em Psicologia, com reflexões lógicas e axiomáticas realizadas por filósofos, matemáticos e estudiosos de linguística (Piaget, 1970, 1979).
O estruturalismo, além de ser uma posição filosófica e uma onda intelectual de meados do século XX, foi um programa de investigação interdisciplinar, cuja originalidade residiu na junção do ideal de objetividade, próprio das ciências da natureza, com o reconhecimento do caráter específico da sociedade e da cultura. O estruturalismo procurou, assim, ampliar o campo da cientificidade, como tradicionalmente definido, a partir da ciência galileana, sem recuar para algum tipo de reducionismo naturalista (Milner, 2003).
A perspectiva transdisciplinar não se confunde com a adição ou justaposição de disciplinas que não se integram entre si, mantendo cada uma sua autonomia teórica e metodológica – como ocorre com a pluridisciplinaridade –, nem se reduzem ao estabelecimento de objetivos comuns, em pesquisas específicas, implicando maior partilha de conceitos e procedimentos, como é o caso da interdisciplinaridade. No entanto, além de seu maior alcance cognitivo, possui um traço transgressivo, ao romper com as regras da etiqueta disciplinar
(Klein, 1990; Domingues, 2012; Drawin, 2019).
Esse caráter transgressivo da transdisciplinaridade se caracteriza por três aspectos que já foram acima mencionados, mas devem ser reiterados. Em primeiro lugar a abertura para saberes não pertencentes à esfera da cientificidade hegemônica. Em segundo lugar, o acolhimento da fala dos sujeitos envolvidos na pesquisa por seu valor epistêmico e não apenas como uma condição ética extrínseca aos objetivos da pesquisa, como acontece na praxe do consentimento livre e esclarecido. Em terceiro lugar, no caso das situações nas quais se manifestam diversos tipos de violência, o horizonte teórico da investigação inclui opções axiológicas por parte daqueles que nela estão envolvidos. Os dois últimos aspectos levantam problemas complexos e controversos, porque parecem entrar em choque com os ideais hegemônicos de objetividade correlatos à exclusão da subjetividade e neutralidade axiológica, com base na cisão entre a ciência e o mundo da vida (Drawin et al., 2021; Moreira et al.,