Drogas e suas Imagens: Ensaios sobre a Experiência com Psicoativos
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Drogas e suas Imagens - Getulio Sérgio Souza Pinto
Editora Appris Ltda.
1ª Edição - Copyright© 2018 dos autores
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COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO MULTIDISCIPLINARIDADES EM SAÚDE E HUMANIDADES
Aos bandos que me acolheram nesta vida.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à professora Luciana Vieira Caliman por ter sido uma mestra na arte de consistir numa vida em movimento, por me ajudar a fazer minha jangada de linguagens em uma deriva experiencial.
Em contiguidade, agradeço imensamente à professora Ana Lúcia Coelho Heckert por me ajudar a encontrar caminhos para produzir fluxos de vida, fluxos potentes com as inquietações que me assolam, tudo isso com o carinho daqueles que abraçam as intensidades. Nessa mesma linha, agradeço à grande Maria Elizabeth Barros de Barros por me ajudar a gritar, mas ser ouvido; a dizer, mas ser escuta. Importante fazer um agradecimento especial ao colega Pablo Ornelas Rosa por ser uma parceria daquelas que inauguram um planeta, uma colmeia, um campo novo onde antes se via apenas suspiros de o que fazer
. Um parceiro que é um regalo del destino e que, desde o momento em que passou a contribuir com a escrita do texto deste livro, demonstrou a curiosidade genuína dos grandes mestres. Nessas frases iniciais, agradeço, de certa maneira, à pré-história, à história e às histórias do presente livro.
Agradeço a todas as pessoas em situação de rua em Vitória com as quais tive a oportunidade de conviver e às equipes de trabalho que atuei durante a experiência que é um dos chãos em movimento de onde surge esta escrita. Com essas pessoas pude ter potentes movimentos de transvaloração de verdades que eu carregava arraigadas e espero ter propiciado o mesmo. Agradeço por todas as experiências de contato/contágio limítrofes que tivemos, o que sempre me deu a certeza de estar imerso em relações genuinamente vivas e carregadas de afetos.
Agradeço de forma incomensurável a Silvana e a Getulio Pinto, minha mãe e meu pai, por coisas que um texto nem tangencia, tamanha a profusão de pulso. Agradeço a esses dois por me dar acesso ao amor; o amor que advém das entranhas dos átomos.
Por fim, agradeço a Maria Carolina, Davi, Isaac e Gabriel por me ajudarem diuturnamente a fazer florir esse amor imanente em direção a explosões diárias de supernovas de carinho, respeito e coragem no canteiro de nossas vivências mais sutis.
APRESENTAÇÃO
O presente livro desenvolve-se em torno da questão das experiências de uso de psicoativos ilegais. Essas substâncias, dotadas de potencial psicotrópico, habitam várias texturas de nossa sociabilidade contemporânea e são tema nos mais diversos campos de estudo. Invariavelmente, é comum que vejamos esses debates públicos mediados pelas balizas de uma certa forma de discurso científico, mas e se nos permitíssemos um acesso mais híbrido à questão, em que os saberes circulassem de forma mais livre em torno da temática? A partir desses outros modos de constituir uma linguagem, o presente livro pergunta: qual o efeito de nossa arregimentação societária sobre o corpo que utiliza uma droga psicoativa taxada de ilegal?
A propósito, a psicotropia é qualidade da substância capaz de atuar diretamente sobre o psiquismo, ou seja, é a característica de elementos que ao entrarem em contato com o corpo alteram nossa atividade mental (atenção, percepção, humor etc.). De onde advém, contudo, esse termo? De um lado temos Psique e do outro Tropos.
Psique, mortal que se tornou deusa, era a personificação grega da alma, e foi o grande amor de Eros, com quem teve a filha Hedonê, de onde tiramos o vocábulo hedonismo. Tropos, por sua vez, é o vocábulo grego que indica desvio, volta, mudança repentina de direção. No sentido que temos, parte considerável é originária do termo latino clássico – Tropus, que, por sua vez, indica, entre outras coisas, metáfora ou figura de linguagem. Por essa teia inicial, pergunta-se: o que se faz e fez da psicotropia em nossa sociedade? Qual o local das drogas psicoativas em nossa sociabilidade?
Há um certo local de condenação moderna do tropus da psique que não se restringe à droga e que tem raízes em múltiplas dimensões de nossas relações sociais. A condenação da psicotropia não mediada pelo saber médico é resultado direto da tentativa de sequestro do poder disruptivo da desrazão, do saber fora do previsto, do saber do desvio. A metáfora afasta-se do costumeiro, do racional, e é condenada sob a égide da patologia. Como observa Nietzsche, porém, o exercício metafórico é justamente o campo de possibilidade da linguagem, ao ponto que podemos falar, à Judith Butler, da constituição do sujeito como uma tropografia.
A alegoria que é condenada e, de certa forma, a psicotropia é a mente em alegoria. Nesse sentido, o presente livro traz a seguinte provocação: é possível falar de drogas de uma forma tropológica? Ou seja, sem almejar um sentido único final que se arvora ter dito tudo que podia ser dito?
O leitor encontrará nas páginas ulteriores um duplo movimento: de um lado encontrará contos literários que se apresentam como exercício de texturização tropográfica a partir da movimentação ficcional de histórias que nos chegam aos ouvidos diariamente. Ao mesmo tempo, produzindo textos originados de um ímpeto alegórico, constitui-se uma outra textura de real, capaz de trazer o leitor ao contato mais intensivo com os afetos em torno da famigerada questão da droga.
Por outro lado, há uma aposta de conversa com saberes do campo da filosofia e da ciência, visando à constituição de um quadro genealógico do surgimento da guerra às drogas, tomando como imagem desse processo as movimentações políticas em torno da proibição da maconha, porém não só.
Por esse motivo, digo que pode parecer um tanto peculiar, à primeira vista, a configuração do livro. Há saltos em que, da discussão das drogas, passo para o debate sobre aspectos da filosofia e da linguagem, e, em outros momentos, há uma conversa com estudos científicos do campo. Esse movimento é proposital. Visa a convocar o leitor a experimentar a singularidade radical do processo de escrita, pois o livro é um registro de uma experiência de escrever também. Há uma intempestividade no nascimento de um texto e é com esse caos que o presente livro compõe.
O tropus das funções mentais, seja por substância química ou não, acompanha-nos desde tempos imemoriais, porém vimos nos últimos séculos o uso de substâncias químicas psicoativas se tornar um problema de saúde (não só em termos de substâncias ilegais) e ao mesmo tempo observamos a constituição dessa caçada pública chamada guerra às drogas, que não demonstrou, nem demonstra, efetividade alguma em resolver a questão. Chegamos a um ponto em que se faz necessário a constituição de um novo ethos em torno da questão da droga, pois o que dispomos não é eficaz. O modus operandi hegemônico na lide com a questão da droga trabalha, sobremaneira, na perspectiva de que não há saber possível ao usuário, não há narratividade possível ao usuário de droga, restando a ele adequar seu tropus ao modo reinante, uma vez que sua experiência de si é equivocada.
Esse modo de agir trouxe-nos até o atual quadro societário em que a droga figura como uma questão a ser combatida. No contexto que temos, ao mesmo tempo em que se destina cada vez mais esforços e investimentos em instrumentalizar militarmente a sociedade contra a psicotropia ilegal, as ruas apresentam-se cada vez mais lotadas de usuários com vidas precarizadas e os índices de violência urbana tornam-se cada vez mais alarmantes. Esse quadro precisa mudar urgentemente, assim como o paradigma que o sustenta.
Habitando os interstícios entre a ciência, a filosofia e a literatura, os textos, construídos sobre uma perspectiva ensaísta, permitem ao leitor fazer saltos, composições, configurações, constituindo seu próprio mapa por dentro do livro. Não espere, porém, nem a ética nem a estética logocêntrica, pois, uma vez que há uma aposta de desconstrução de certa razão governamental sobre as drogas, há que se subverter também o meta hodos do texto. A droga é uma linha na produção de uma tessitura, mas não é um limite. O meio acadêmico é um contexto de emergência, mas não o limite. A linguagem (inclusive a razão) é um dos instrumentos da escrita, mas não um limite.
Os textos são cenas, mesmo os textos mais técnicos, que produzem um campo pelo qual o leitor poderá passear interagindo com topografias tropológicas sobre os inúmeros vetores que pairam sobre os fluxos e sujeitos na questão da droga, que, como dito anteriormente, não é a questão, simplesmente, do uso de psicoativos, mas sim de como lidamos com nossos tropus.
PREFÁCIO
O meu encontro com Getulio foi um importante acontecimento em minha vida, tendo em vista que me potencializou olhar de maneira mais sofisticada para questões epistemológicas que envolvem certos entendimentos acerca do tratamento dado àqueles que vivenciam distintas realidades com substâncias psicoativas. A sua pesquisa ainda possibilitou que eu realizasse problematizações mais precisas acerca daqueles elementos classificatórios estabelecidos tanto pelo Sistema de Justiça Criminal, por meio das políticas de controle sobre as drogas, quanto pela Organização Mundial da Saúde e Associação Americana de Psiquiatria, por meio das classificações internacionais de transtornos mentais produzidas por pesquisadores vinculados a essas instituições.
O livro, resultado da dissertação de mestrado em Psicologia Institucional realizado na Universidade Federal do Espirito Santo (Ufes), apresenta uma metodologia bastante inovadora para tratar de um assunto extremamente atual e polêmico: as políticas de controle sobre as drogas e seus agenciamentos. A metodologia apresentada pelo autor fundamenta-se naquilo que chamou de alegorismo ensaísta
, baseado em aproximações entre pensadores como Nietzsche, Foucault, Deleuze, Guattari e Benjamim, em que a noção benjaminiana de alegoria é tratada em termos de hibridizações de acontecimentos referentes a distintas experiências envolvendo a questão das drogas.
Para isso, o autor também utilizou a noção nietzschiana de genealogia e seus desdobramentos trazidos por Foucault, situando as bases políticas de composição de saberes e fazeres contemporâneos sobre as drogas, objetivando construir sua dissertação como uma peça linguística provocativa a partir de premissas benjaminianas em que as experiências que envolvem substâncias psicoativas são problematizadas na medida em que são tomadas pelas representações acerca dessas experiências, podendo ser questionados uma vez que a produção de verdades sobre a questão das drogas se dá a partir de quadros classificatórios estabelecidos para definir tanto a condição do uso abusivo e consumo recreativo – por meio da Classificação Internacional de Doenças (CID) e do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), produzidos respectivamente pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Associação Americana de Psiquiatria –, quanto por meio do estabelecimento do crime de tráfico de drogas ou do mero uso – por meio da popularmente conhecida Lei de Drogas (Lei 11.343/2006).
Além desses referenciais frankfurtianos e pós-estruturalistas, Getulio utilizou a perspectiva acerca do set e setting trazidos pelo psiquiatra Norman Zinberg, a partir de seu livro publicado pela Yale University Press em 1984, intitulado Drug, set and setting, em que o autor questiona os problemas no uso de drogas para além da substância e do sujeito, ponderando sobre a necessidade de se enfatizar o contexto social no uso de substâncias psicoativas, dentre elas as ilícitas.
Ao argumentar, a partir de Zinberg, que o setting emerge a partir de acordos, fluxos de corpos e territórios e só se performatiza em acontecimento, não sendo um dado a priori, o autor desta obra constatou que […] os discursos científicos e normativos produzem uma experiência degradada de uso de substâncias psicoativas e o campo de exercício de um poder é criado
¹. O resultado disso perpassa a ideia de que
[...] a experiência de uso de psicoativos ilegais na contemporaneidade é precária, ou melhor precarizada. É uma experiência pobre na já empobrecida experiência herdada na modernidade […] O poder narrativo da experiência advinda do uso de psicoativos foi sequestrado para que sua resistência pudesse ser aproveitada na produção de informação, de um saber².
Desse modo, o autor argumenta que os discursos sobre as drogas, dentre eles os científicos expressos em diferentes campos como a religião, saúde, segurança pública, educação etc., têm se amparado muito mais em representações sobre as experiências no uso de drogas do que sobre as próprias experiências empíricas de quem faz esse uso. Presumindo, a partir de Zinberg, de que cada momento de consumo envolve um número impreciso de variáveis, o que permite distintas experiências impossíveis de serem capturadas pelo discurso científico, o qual visa ao enquadre dessas experiências em sistemas normativos de classificação, o autor argumentará sobre a necessidade de uma produção textual que articule experiência e linguagem a partir de Benjamim, tendo em vista que A modernidade e sua enorme difusão da técnica conjurou esse exercício narrativo na informação e capturou a experiência no experimento
³.
Ao tratar do modelo proibicionista e seus efeitos, o autor verificou que
A experiência de uso de psicoativos no contemporâneo é precária por conta da criação da noção de ilegalidade para algumas substâncias. Nesse contexto, ela se tornou precária como experiência de si. Todo o exercício de tentativa de controle por positividade da experiência de usar drogas visou a mensurá-la, aprisioná-la, conjurá-la ao experimento, à produção de um saber e exercício de um poder.⁴
Diante de uma pesquisa tão potente e inovadora dos pontos de vista teórico-metodológico e principalmente epistemológico, tendo em vista que esse trabalho se soma àquelas abordagens empíricas vanguardistas sobre as drogas, a exemplo das investigações de Howard Becker, Timothy Leary, Norman Zinberg, Edward MacRae, Bia Labate, Ygor Alves, Maurício Fiore, Thiago Rodrigues, dentre tantxs outrxs que direcionam suas análises para a complexidade de variáveis que envolve não apenas o uso, mas também a produção e o comércio de substâncias psicoativas ilícitas, recomendo a leitura da dissertação que agora se apresenta em formato de livro, pois acredito que este trabalho poderá ser utilizado na elaboração de novos olhares, saberes, interpretações e quem sabe políticas públicas sobre essa questão tão polêmica na atualidade, que possibilita tantas violências, dentre elas aquelas produzidas pelos próprios Estados que aderem ao modelo proibicionista.
Vila Velha, 13 de março de 2018.
Pablo Ornelas Rosa
Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política
Universidade Vila Velha
Sumário
1
Atos dos Apócrifos
2
EXCERTOS DE UM FORATEXTO
2.1. Experiência, memória e narrativa: alguns contornos teóricos
2.2. A pobreza da experiência e o uso de psicoativos
3
CAMINHOS POR ONDE FLUTUAR: CONSIDERAÇÕES SOBRE METODOLOGIA
3.1. Um voo desviante sobre palavras e acontecimentos
3.2. Alegotropias ou das alegorias psicotrópicas
3.3. Da intempestividade da escrita e do texto como laboratório
3.4. Do projeto 79
4
QUANTO VALE UM VALE?
5
UMA BREVE ANÁLISE DE IMPLICAÇÃO SOBRE A ESCRITA DO CONTO QUANTO VALE UM VALE
6
DO PITO DE PANGO A UM RISCO DE A MARGEM TOMAR O CENTRO: UM OLHAR SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO DISPOSITIVO GUERRA ÀS DROGAS
E A PRODUÇÃO DE UM SETTING CLANDESTINO
6.1. Maconha e a constituição de um setting clandestino: uma importante ponta do processo de emergência do dispositivo guerra às drogas
6.2. O termo droga e uma arquitetura de poder
7
SOBRE AS SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS
8
CONTOS ATURDIDOS
8.1. O coringa
8.2. Minha casa na rua ou uma rua na minha casa
8.3. Um chá de setting
9
SOBRE LIMIARES E FLUXOS PIRATAS: ENCERRAMENTO, TRANSMISSÃO E AFETAÇÕES
referências
1
Atos dos Apócrifos
I
O problema da filosofia é adquirir uma consistência sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha (o caos, sob esse aspecto, tem uma existência tanto mental quanto física).⁵
O Sujeito é um Agenciamento coletivo de enunciações… O Sujeito é um Agenciamento de enunciações… O Sujeito é um Agenciamento de enunciações
, bradava Luís enquanto pulava como se estivesse possuído, tomado, encarnado por um pensamento que o tomara de súbito, deslocando-o. Naquele momento se sentia puro transbordo. Não bastasse a efusividade inicial dada pela deriva instantânea, dançava de forma completamente descompassada fazendo espirais com os dedos ao mesmo tempo em que olhava fixamente, com apenas um olho aberto e a cabeça pendida como quem mira, para um centro nunca visto desses virtuais desenhos formados por sua mão. Seu olhar fitava o infinito durável. Não por força da ideia, mas da ideia mergulhada na força; não pela palavra que designa, mas pelo nome que cria palavras e não palavras. De repente, e com um vigor assustador, voltou-se para Ângela e tomando seu rosto entre as mãos, disse-lhe freneticamente: – As palavras se constituem, imanentemente, sobre um plano de emergência em que a não palavra coexiste sempre em acontecimento… Quem é o Falante?! Quem é o ouvinte?! A palavra, o pensamento, essas coisas, criam um dentro e um fora, logo sujeito e objeto… sujeito e objeto… Sujeito é só um contorno contingencial sempre mutável, que se produz. O que sinto agora é que somos as configurações de inúmeros acontecimentos como atos, ditos, feitos. Somos acontecimentos de acontecimentos. O Eu é uma experiência sempre na iminência de ser reacontecido, mas que se desdobra em múltiplos que estão para além da repetição e mais próximo do retorno, pois experiência é o que nos acontece⁶. Pra se fazer eu, é necessário que haja uma passagem sobre um território de vida, o sujeito é um território de passagem de eus e algo mais. Você pode num tá entendendo nada, mas estou tentando falar com você sobre o processo pelo