Inventividade, Cozinha e Saúde: Um Ensaio Sobre Interferências Recíprocas Entre Cognição e Afetividade
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Psicologia para você
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Inventividade, Cozinha e Saúde - Irapoan Nogueira Filho
2017
Sumário
introdução
Ponto de partida
Acerca das investigações
Sobre o método
Sobre os capítulos
1. PRIMEIROS ENCAMINHAMENTOS DE UMA PSICOLOGIA DA INVENÇÃO
1.1 FOUCAULT: A ANALÍTICA DA VERDADE E A ONTOLOGIA
DO PRESENTE
1.2 LATOUR E O PROJETO DA MODERNIDADE
1.3 O GESTALTISMO E A EPISTEMOLOGIA GENÉTICA:
A BUSCA DE LEIS INVARIANTES
1.4 MATURANA & VARELA: A BIOLOGIA DA AUTOPOIESE
1.4.1 A rede autopoiética: organização e estrutura
1.4.2 Clausura operacional: os limites da autopoiese
1.4.3 Domínio cognitivo e inventividade: o conceito de enação
1.4.4 A aprendizagem como invenção de problemas
1.5 A QUESTÃO DA TÉCNICA
1.5.1 A teoria da projeção orgânica
1.5.2 A utilização do computador como sistema equivalente
1.5.3 A investigação de como a tecnologia participa da invenção da subjetividade
1.5.4 Bergson: instrumentos naturais e artificiais
1.5.5 O agenciamento maquínico e coletivo
1.6 INVENÇÃO E SAÚDE; DEFESA E NORMALIDADE
1.6.1 O outro enquanto parte do domínio cognitivo
1.6.2 A saúde e a questão da técnica
2. A COOPERATIVA ARTE PALADAR E A TRANSFORMAÇÃO DO PADEIRO
2.1 A VALORIZAÇÃO DO TRABALHO E A SOCIEDADE BURGUESA
2.2 TOSQUELLES E A ESCOLA DE LIBERDADE
2.3 BASAGLIA E A COOPERATIVA INTEGRADA
2.4 ESPAÇO ABERTO AO TEMPO
2.4.1 A Cozinha
2.4.2 A Cooperativa Arte Paladar
2.4.3 Um (não) lugar de discurso
2.5 A TRANSFORMAÇÃO DO PADEIRO
3. O RITORNELO E O PADEIRO
3.1 RIZOMA E AGENCIAMENTO
3.2 O CÓDIGO E O TERRITÓRIO
3.3 O RITORNELO
3.4 A TRANSFORMAÇÃO DO PADEIRO: O RITORNELO
4. A ATIVIDADE DIRIGIDA E O PADEIRO
4.1 A CLÍNICA DO TRABALHO ENQUANTO EMPREITADA A REALIZAR-SE
4.2 VYGOTSKY E A PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA
4.2.1 Instrumento, signo e mediação
4.2.2 As funções superiores e os sistemas psíquicos
4.2.3 Internalização ou apropriação?
4.3 BAKHTIN E A LINGUÍSTICA DIALÓGICA
4.4 AS DUAS ZONAS DE DESENVOLVIMENTO POTENCIAL
4.5 A ATIVIDADE DIRIGIDA
4.5.1 Os três polos da atividade dirigida: o si, o objeto e os outros
4.5.2 Atividade: o ponto de vista do desenvolvimento
4.5.3 Interiorização e exteriorização no curso do desenvolvimento
4.6 O EXERCÍCIO DA ATIVIDADE NO DIÁLOGO ENTRE ATIVIDADES
4.6.1 No ensaio, a fixação do ato
4.6.2 Ensaio, modo de consistência
4.6.3 O público
4.6.4 A gestão do ensaio
4.6.5 Postura de Ensaio
4.6.6 Ensaio e cozinha
4.7 INVENTIVIDADE E ATIVIDADE: UM ENCONTRO POSSÍVEL
4.8 INVENTIVIDADE: INERENTE AO TRABALHO
4.8.1 Repetição sem repetição
4.9 A TRANSFORMAÇÃO DO PADEIRO: A ATIVIDADE DIRIGIDA
4.10 A TRANSFORMAÇÃO DO PADEIRO: A ATIVIDADE DIRIGIDA
E O RITORNELO
5. O Amar, o brincar e o padeiro
5.1 LINGUAGEM
5.2 EMOÇÃO
5.3 CULTURA E CONVERSAÇÃO
5.4 A ORIGEM DA LINGUAGEM
5.5 O AMAR E O BRINCAR
5.6 A TRANSFORMAÇÃO DO PADEIRO: O AMAR E O BRINCAR
5.7 A TRANSFORMAÇÃO DO PADEIRO: UMA NOVA ANÁLISE
5.8 ACERCA DO ENSAIO: CONSIDERAÇÕES A PARTIR DAS ANÁLISES REALIZADAS
5.8.1 Acerca do aprendizado na Arte e no Trabalho em geral
5.8.2 Cuidar do/no cronotopo
TRAÇO-ENSAIO E POLÍTICAS DE COGNIÇÃO
REFERÊNCIAS
introdução
A presente obra reúne investigações conduzidas ao longo de 13 anos, na perspectiva de uma construção de uma Psicologia inventiva – ou seja, uma Psicologia que leve em consideração a Inventividade. Por inventividade, entendendo-se a potência da cognição de criar novas leis de seu próprio funcionamento. Segundo a autora:
[...] uma inventividade intrínseca à cognição e a todas as suas funções específicas. A invenção é, então, a potência que a cognição tem de diferir de si mesma, de transpor seus próprios limites. Conforme já foi adiantado, trata-se de imprimir tempo à cognição, na dupla forma de cognição inventiva e cognição inventada¹.
A escolha do título é um compromisso com as figuras anônimas que circulam na cozinha. Nas receitas comuns, o nome do prato é descritivo². Os títulos das receitas comuns indicam, geralmente, com o quê e como se fez o prato, embora não precise a maneira exata de realizá-lo. A culinária anônima é a culinária das pessoas comuns. Esta obra e seu autor pretendem, assim, se juntar não só aos membros da cooperativa de culinária que será o palco das investigações apresentadas, mas também a estas multidões de donas e donos-de-casa, cozinheiras e cozinheiros, merendeiras e merendeiros, pessoas que encontramos quotidianamente. Gente comum que torna a terra habitável, alimentando. E tentam, quotidianamente, tornar a vida saborosa.
Este trabalho é um ensaio, na dupla acepção da palavra: ensaio no plano científico, sem dúvida. Mas também ensaio artístico, onde o músico se prepara para expor uma obra completa – sendo, na verdade, o ensaio que cria o artista e a obra. No ensaio, ele subverte as normas (partituras) para constituir um algo próprio nas condições de palco que lhe são oferecidas. Ensaio, gesto de descodificar a partitura e fazer um território no palco. Para promover, assim, a codificação de um novo estilo de execução. Uma nova norma é inscrita, abrindo a anterior, em um jeito de mas se acontecer x, então faça y
. Codificação da partitura, desterritorialização do palco. Eis o processo de invenção, apresentado em linhas gerais, esparsas, poucas e rasas. É este o assunto deste ensaio.
Mas cabe delinear, de início, a maneira pela qual se exerço o interesse pela questão da inventividade. Aqui, ela será abordada a partir da experiência-trabalho – que entendo representar um desafio humano propício para investigar tal temática. E, nesse mesmo movimento, é possível também contribuir tanto para a renovação teórico-metodológico-técnica da própria Psicologia do Trabalho & Organizacional, quanto para a emergência de um modelo de produzir-trabalhar que colabore para compatibilizar ganhos de produtividade & qualidade com saúde & segurança.
Compete, entretanto, assinalar com Kastrup³ que se trata de uma pesquisa dos efeitos de inventividade
, pois não é possível estabelecer uma teoria da invenção. Caso fosse, tal teoria poderia ser aplicada sistematicamente, de modo que tudo pudesse ser criado, o que requereria a existência de formas a priori a serem criadas. O que, por sua vez, implicaria em recognição⁴: tal teoria provocaria a resolução de todos os problemas, não havendo mais nada a ser criado. Uma teoria da invenção obrigaria, então, a uma recognição. Mas deveria ser, obrigatoriamente, também a teoria para a invenção de um novo processo de invenção que fugisse à teoria – o que é logicamente inviável. Recusa-se, assim, a proposta de fixação de leis invariantes da cognição em prol da concepção de uma cognição que não seja uma forma de representar o meio, mas de lidar com o meio. O que implica em conceber um organismo que não se adapta ao meio, mas sim um organismo que se adapta com o meio. Pensando não os estratos sujeito e objeto, mas os processos que criam, ao mesmo tempo, um e outro. Conforme já apontava Canguilhem, o ser vivo e o meio, considerados separadamente, não são normais, porém é sua relação que os torna normais um para o outro
⁵.
Da mesma forma que a evolução biológica – e por evolução não se entende simplesmente progresso, mas um processo de transformações sucessivas – a evolução
psicológica não pode ser determinada, sendo mais bem estudada a posteriori. Pode-se formular hipóteses, tarefa a que a futurologia e as artes não cansam de se entregar, as últimas com mais sucessos que a primeira.
A escolha do tema surgiu durante um estágio de graduação em Psicologia, realizado em uma cooperativa de culinária (Arte Paladar
) situada em um Serviço de Saúde Mental (Espaço Aberto ao Tempo
⁶, que designarei EAT). A minha atuação junto a usuários deste Serviço, além de gerar trabalhos acadêmicos (relatório de estágio e monografias de conclusão de disciplinas e de curso) sobre a questão do tempo e do coletivo (ainda sem abordá-las em conjunto), afetaram-me de modo a perceber tais questões como atravessamentos a incidir sobre a cognição. Isso, somado ao fato de no EAT eu executar uma prática na modalidade cooperativa de produção de alimentos, levou-me ao estudo da invenção na linha encaminhada por Kastrup⁷. Venho também notando na comunidade científica esforços no sentido de promover uma prática teórica e clínica que consista em não tomar a subjetividade como algo já dado, mas sim como processos de subjetivação⁸.
Entendo que as investigações aqui apresentadas podem também contribuir para a compreensão das relações entre os processos de trabalho, subjetivação e saúde-doença. Ou seja, para as nocividades que possam estar presentes e as formas de detecção-interpretação-defesa que os trabalhadores estejam exercitando, e que apontam para outras condições e formas de organização do trabalho. A proposta apresentada a seguir é auxiliar nesta busca, no sentido de colaborar para o entendimento do trabalhar na contemporaneidade, marcado por busca incessante de inovações tecnológicas e organizacionais, no esforço (desesperado) de reprodução ampliada de capital. Inovações estas que implicam em novas formas de re-arranjo por parte dos protagonistas do trabalho, que se confrontam cotidianamente com os resíduos (não explicitados) do planejamento tecnológico. Esse cotidiano do trabalhador no contemporâneo (em sistemas sociotécnicos complexos, que convivem com panes) é, dessa forma, ainda mais marcado por demandas de micro-invenções (ou seja, invenção sim, mesmo que frágeis, muito parciais, no ínfimo, no infinitesimal
), produzidas por aqueles que são encarregados de tornar possível o projeto mecânico (e mecanicista) do que se tem chamado tecno-ciência
⁹.
Por outro lado, com o advento da Psiquiatria, criou-se um pensamento de que o louco
é incapaz de trabalhar, salvo enquanto subordinação ao poder disciplinar, moralizador e pretensamente terapêutico. Esse pensamento, tomado por verdade, precisa ser questionado para que essas pessoas possam melhor viver em sociedade¹⁰. Assim, minhas pesquisas anteriores propuseram pensar esta questão a partir de algo que, paradoxalmente, é tido por importante e impossível: a atividade de trabalho de pessoas portadoras de graves transtornos psíquicos
. Pensar de que maneira o trabalho de/com os loucos pode servir como reserva de alternativas¹¹ para meios, situações e formas de organização do trabalho que respeitem o ser humano.
Ponto de partida
Encontramos em Kastrup, entre outros autores, uma cognição que provoca adaptações globais frente a questões específicas. Utilizando-se de Foucault e Latour, Kastrup analisa a influência de um projeto de purificação crítica da modernidade, na concepção de cognição formulada pelo cognitivismo¹². Ela demonstra como a Epistemologia Genética, a Psicologia da Gestalt e o cognitivismo computacional reduziram a cognição inventiva à cognição inventada. Por fim, aponta como necessária a introdução dos fatores tempo e coletivo na introdução dos estudos no campo da inventividade. A autora aponta que os estudos em produção de subjetividade - explorados por meio do conceito de rizoma, desenvolvido em Mil platôs¹³, faz desmanchar a separação sujeito-objeto, que, segundo a autora, se constituiu na modernidade.
Acerca das investigações
Utilizando a Esquizoanálise como prática clínica na experiência que me fez pensar o tema da inventividade, propus-me, na monografia de graduação, efeitos de inventividade que ocorreram na experiência analisada. Utilizei sobretudo a categoria esquizoanalíticas de ritornelo¹⁴. Foi possível mapear estes efeitos de inventividade e localizar quais movimentos deveriam ser estudados, dentro do caso, para compreender as mudanças cognitivas. Percebeu-se que no encontro que foi realizado¹⁵, fui uma figura que pôde, então, aproximar-se dele neste seu território. Outsider, ser de borda, não significava risco de invasão, posto que entrava em outro modo de articulação com a oficina. Não estava ali para vender e ganhar. O padeiro encontrou-se na posição de passar um saber, sem que isso lhe causasse risco. Tal encontro serviu-lhe para colocar-se em uma posição fora da deslegitimação imposta comumentemente aos ditos loucos
: era o detentor de um saber, ensinando e avaliando as tentativas do outro. O terapeuta, por sua vez, atuou como conversor de agenciamento: atuou no sentido de abrir possibilidades para construção de novas normas cognitivas, mas permeáveis aos imprevistos que são inerentes ao trabalho.
Cabia, entretanto, acrescentar ferramentas de estudo de cognição para a realização desta tarefa.
Conforme já apontado, para estudar a inventividade, seria necessária uma Psicologia que não naturalizasse o enquadre sujeito-objeto e que levasse em conta as questões do tempo e do coletivo nos estudos da cognição¹⁶. Embora não seja a ferramenta destacada pela autora, percebi que a chamada Psicologia Sócio-histórica
, proposta por Vigotski¹⁷, considera as questões do tempo e do coletivo. Nesse caso, que pistas esta abordagem pode agregar – se é que pode – ao campo de estudos que trata da inventividade?
E justamente essa foi a investigação foi por mim realizada em dissertação de mestrado – utilizando não Vigotski, mas a Clínica da Atividade, que faz uso não apenas das produções da Psicologia Sócio-Histórica, mas também da Linguística dialógica de Bakhtin, e dos trabalhos sobre o conceito de saúde de Canguilhem¹⁸. Foi proposto então, averiguar se o conceito de atividade dirigida – pertinente à Clínica da Atividade e dos Meios de Trabalho – pode promover ressonâncias para as pesquisas acerca da cognição inventiva. E, também, as investigações anteriores foram revisadas.
Para essa abordagem teórico-metodológica, o conceito de atividade não trata somente daquilo que se faz, como num entendimento redutor, comportamentalista. Explorando a partir do círculo de Vigotski (Leontiev etc.), percebe-se uma grande amplitude nele, incorporando também: aquilo que não se faz, o que não se pode fazer, aquilo que se tenta fazer sem conseguir, do que se desejaria ou poderia fazer, daquilo não se faz mais, daquilo que se pensa ou sonha poder fazer em outro momento, e também daquilo que se faz para não fazer o que tem que ser feito, enfim, daquilo que se faz sem desejar fazer¹⁹.
Junto com Daniel Faïta²⁰, especialista na relação linguagem e trabalho, Clot vem colocando estes materiais teórico-metodológicos em sinergia com os materiais de outro pensador russo, contemporâneo de Vigotski (malgrado nunca tenham revelado mútuo conhecimento), Bakhtin, para compreender←→transformar o trabalho. Mobilizando a perspectiva dialógica assumida por Bakhtin, particularmente os conceitos de gênero e estilo, Faïta e Clot entendem que se pode tornar mais preciso o fato de que o que foi inicialmente colocado pela Ergonomia da Atividade como hiato prescrito-real
(em seguida, sendo mais rigorosos, tarefa-atividade
) não é, na verdade, uma defasagem entre a prescrição e a atividade de trabalho, e sim entre a organização do trabalho e o próprio trabalhador. O conceito de gênero por eles desenvolvido como gênero de atividade
permite compreender o trabalho de recriação da organização do trabalho, levada a cabo pelo coletivo para torná-lo possível, estilizando²¹. Dá-se maior visibilidade, dessa maneira, ao que podemos entender como processo de invenção de si (e do mundo) que é imanente à atividade de trabalho. Uma vez que esta definição apreende também os fracassos e impedimentos, se aproxima mais de um movimento no sentido de questionar as regularidades mesmas das formas cognitivas.
Escolhendo a atividade de trabalho como campo para uma Psicologia do Trabalho & Organizacional, tem-se que esta