Mitologia Tariana
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Mitologia Tariana - Ismael Tariano
Apresentação da 3.ª edição
Neiza Teixeira¹
Reeditar um livro da importância de Mitologia tariana, de Ismael Tariano, como disse o saudoso poeta Luiz Bacellar, na apresentação da 1.ª edição, tem a preciosidade de algo salvo do incêndio. Esta afirmação, hoje, no ano de 2020, tem as suas forças revigoradas, tendo em vista os acontecimentos singulares que marcam esse quartel do século XXI: pandemia Covid-19, desmatamento vertiginoso da Amazônia, aquecimento global, crises políticas, econômicas, genocídios que afetam principalmente os mais vulneráveis e, entre eles, os povos indígenas das amazônias.
Neste livro, temos a oportunidade de conhecer um dos povos indígenas que vivem no Estado do Amazonas, situado no extremo norte do Brasil. Trata-se dos Tariano, pertencentes à família linguística dos Aruak. Eles vivem em vários locais e sítios dispersos ao longo do médio e alto curso do rio Uaupés, afluente do rio Negro, e de outro afluente, o Papuri.
Ismael Tariano relata a história de resistência do seu povo: desde a mitologia aos comportamentos, as curas, as festas, os lugares, as habitações, e o que é muito importante – ele destaca a formação dos seus chefes espirituais. Esse povo não ficou imune aos ataques civilizatórios dos padres e dos missionários, o que lhes causou enormes prejuízos culturais, sociais e, sobretudo, a perda de si, ou seja, o desconhecimento ou a negação da sua identidade.
De todos os ataques, os mais veementes foram dirigidos aos xamãs ou pajés. Eles foram perseguidos, desacreditados e ridicularizados. O resultado, como é visível, foi a confusão e a perda de sustentação dos povos indígenas, pois, como sabemos, a religiosidade de um povo é a sua sustentação neste mundo, e ela envolve toda a sua vida: a arquitetura, as festas, os rituais e o reconhecimento de quem ele é diante dos outros seres. As pajelanças, as danças, os rituais, os sopros e os benzimentos foram proibidos e, com eles, as narrativas míticas, a relação com o divino e a passagem do conhecimento, que são a garantia da permanência deles.
Também a língua Tariano foi perdida, substituída pela dos Tukano. Um povo conhece, revela e reconhece o seu mundo por meio da sua língua. Quando ela se perde, o povo também perde-se do que foi originalmente, e não se pode reconhecer como é no seu presente. Eu creio que, quando se efetiva a perda de uma língua, perde-se um povo, e os que conseguem assimilar outra, já não mais pertencem ao que um dia foram os seus ancestrais.
Este é um livro essencial, porque trata da narrativa sobre homens e mulheres que possuem outra cosmovisão, ou seja, é peculiar a forma como veem e interpretam o mundo. Do mesmo modo, é peculiar a forma como expressam e interpretam os sentimentos, por exemplo, o de amar, o de viver em comunidade.
Neste momento singular, em que nos encontramos na mesma canoa, é fundamental o diálogo com povos que têm outra maneira de viver e de conceber as mesmas coisas que nós, as que são conhecidas, pois de muitas, tanto de um lado quanto de outro, não fazemos ideia. E não esqueçamos: O Tariano tem a sua origem no estrondo do trovão.
Apresentação da 2.ª edição
Ana Lucia Abrahim²
Apresentar um livro traz sempre uma dupla incumbência: a de dizer quem é o autor e a de dizer o que é a obra e a que vem. Mas, quando se trata de uma reedição, tanto autor como obra já são conhecidos do público. É o caso de Ismael Moreira e sua Mitologia Tariana, que vieram à luz pela primeira vez numa edição do Iphan, em 1994, numa ousada iniciativa do então coordenador regional em Manaus, Joaquim Marinho, ao dar espaço para que se ouvisse a própria voz do autor indígena.
Desde então, venho acompanhando a trajetória da obra e do autor e, sendo assim, posso avaliar como foi importante aquele passo pioneiro. Ismael, nascido em Iauaretê, no Alto Rio Negro, além de professor, é hoje um escritor que já lançou outros livros e chegou até a Bienal do Livro, realizada em 2001, no Rio de Janeiro. O livro Mitologia Tariana, uma edição esgotada há anos, ganhou espaço em bibliotecas mundo afora e adentrou as escolas e o universo acadêmico como fonte bibliográfica de pesquisas em várias áreas de estudo, da Graduação à Pós-Graduação.
A necessidade de uma reedição era clara, não só pela demanda que já existe, mas pela oportunidade de atender, simultaneamente, a um desejo manifestado, pelo autor, de revisar sua obra, e a um compromisso do Iphan com a qualidade de suas edições, corrigindo os erros gráficos da edição de 1994, que dificultavam sua leitura e sua melhor apreensão como fonte bibliográfica. Não foi um trabalho simples, e à primeira vista o leitor pode pensar que se trata de um outro livro. Mas seu conteúdo está intacto e mesmo revalorizado pela nova organização.
A presente iniciativa oportunizou-se ainda mais a partir da promulgação do decreto n.º 3.551, de 4 de agosto de 2000, que instituiu o Registro dos Bens Culturais de Natureza Imaterial. Esse instituto legal tem como objetivo a valorização dos bens a serem inscritos em quatro livros: Livro dos saberes, Livro das celebrações, Livro das formas de expressão e Livro dos lugares. Trata-se, portanto, de contribuir para a identificação, a promoção e a preservação dos bens culturais de natureza imaterial, reconhecendo-os como patrimônio em permanente processo de transformação.
Temos, agora, uma nova perspectiva de ampliar o patrimônio cultural brasileiro, que, desde 1937, era visibilizado como um conjunto de monumentos, obras de arte, sítios e demais bens de natureza material com valor histórico e artístico consagrado, e de atender à Constituição Federal que, desde 1988, adotando um conceito amplo de patrimônio cultural, considerava-o constituído de bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (CF, Art. 216).
Detentor de um patrimônio reconhecidamente rico e diversificado, no qual se envolvem contribuições de várias culturas originárias do próprio continente ou que para aqui se transplantaram, de diferentes partes do mundo, desde o século XVI, o Brasil investe pouco na construção de uma consciência de sua singularidade histórica a partir dessa diversidade étnica e cultural.
Na Amazônia, como no resto do mundo, estamos envolvidos num tempo em que o processo de globalização se dá em paralelo com uma crescente valorização cultural, na qual assistimos e, muitas vezes, como pesquisadores, acompanhamos a definição de novas fronteiras étnicas.
Escolhemos este momento para o relançamento de Mitologia Tariana, com a intenção de subsidiar as reflexões sobre o patrimônio cultural e a questão indígena, esperando que haja um maior diálogo entre os estudiosos das sociedades indígenas e os estudiosos do patrimônio cultural.
Convidar ao diálogo e à reflexão foi, também, a forma que escolhemos para comemorar os 15 anos da criação e implantação da 1.ª Superintendência Regional do Iphan na Amazônia Ocidental, como parte das comemorações dos 65 anos do Iphan.
Apresentação da 1.ª edição
Luiz Bacellar³
O depoimento que se vai ler neste texto tem a preciosidade de algo salvo de incêndio
.
Seja pelas informações de Ismael Tariano ou pela forma dada ao texto por Ângelo Moreira, o que fica ao leitor é a impressão de algo evanescente; algo que se dissolve no ar como a fumaça da fogueira de um acampamento provisório em meio a uma clareira perdida na floresta tenebrosa.
O que nos fica também é o papel do cristianismo, principalmente da Igreja Católica, por meio de seus padres missionários, na destruição de tantas culturas encontradas no continente americano.
Tem, até agora a Igreja, apagado, queimado em autos de fé, feito papel de arpia, conspurcando as culturas e tornando abomináveis aos povos cristianizados
as mais belas e interessantes tradições do seu passado, provocando o esquecimento de suas técnicas de sobrevivência, enfim, do conhecimento acumulado por centenas de gerações.
É de se louvar, pois, o esforço do IBPC, por meio do seu coordenador regional, Joaquim Marinho, em dar à luz o presente depoimento.
Curiosa e pitoresca é também a forma como foi feito este depoimento, evidenciando a influência do jargão usado pelos antropólogos na pesquisa de campo, usado pelo depoente.
Aberto o apetite do leitor com este bons d'euvre, vamos ao texto.
Ismael, índio tariano, autor do livro.Ismael, índio tariano, autor do livro.
Livro, Mitologia Tariana .Mitologia Tariana
Pesquisa:
Ismael Tariano (texto)
Ângelo Moreira (informante)
Dominique Buchillet (apoio)
História do Povo
Os Tariano pertencem à família linguística Aruak. É uma das 19 etnias oficialmente reconhecidas. Entretanto, existem quatro etnias que são grupos pequenos não reconhecidos oficialmente na região do Alto Rio Negro-AM-Brasil. Somando aproximadamente mais de 1.850 pessoas, os Tariano ocupam vários locais e sítios dispersos ao longo do médio e alto curso do rio Uaupés, afluente do rio Negro e de outro afluente, o Papuri. Os Tariano se misturam com outras comunidades de outras etnias, tais como: Tukano, Dessana, Baniwa, Baré, Wanano, Camã, Barasano, Macu, Miriti-Tapuia, Arapaso, Cubeu, Yanomami, Siusi-Iauaretê, Makuna, Tariana, Carapana, Kuripaco, Tuiuca, Pira-Tapuia, Tatujo, Siriano, Yarumaré, Siusi-Tapuia, Werekere. Com estas, mantêm relações socioeconômicas estreitas; principalmente com os Tukano. Identificam-se sobretudo no aspecto econômico, baseado na produção de mandioca amarga e a pesca; e no aspecto sociocultural quanto à simbologia com o rio, os rituais de iniciação masculina com uso de instrumentos musicais à visita das mulheres, o consumo de bebidas alucinógenas, os diferentes tipos de xamãs, de acordo com as técnicas de cura utilizadas. Os xamãs-sopradores (rezadores), xamãs-chupadores... etc., de acordo com o domínio de ação (mundo subaquático, terrestre... etc.).
Os Tariano, como os outros grupos indígenas da região do Alto Rio Negro, sofreram o impacto das atividades dos missionários católicos, os quais tentaram, de diferentes maneiras, acabar com vários traços da cultura desse povo, especificamente o xamanismo. Por perceberem na figura do xamã a fonte de resistência cultural indígena, desencadearam uma campanha de difamação e ridicularização contra as atividades destes, proibindo o consumo de bebidas alucinógenas durante os rituais ou nas curas xamânicas; saquearam as antigas malocas, roubando enfeites e instrumentos de músicas cerimoniais e artefatos dos xamãs utilizados nas curas. Em razão disso, muitos dos antigos xamãs acreditaram que não havia mais espaço para a cultura tradicional. Ao mesmo tempo, o sistema de internato