Flora: Amor, Coragem E Caridade
De Nina Sena
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Flora - Nina Sena
Índice
Iniciar
Capa
Dedicatória
Dançando
Infância
Juventude
Recomeço
Flora e Garcia
Choque familiar
O trabalho voluntário
O amor
A doença
Aprendendo a viver sem a mamae
Fotografias
Com seus netos
Com irmaos e amigos
Agradecimentos
Depoentes
Curiosidades
Nina Sena
Flora: amor, coragem e caridade 2023
Edição do Autor
Copyright © Nina Sena 2023
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito (Lei n. 9.610/1998).
Capa: Nina Sena
Fotos: Arquivo pessoal Ilustrações: Canva ISBN: 978-65-00-85530-2
Aos meus irmãos
Nirley, Nildene, Webster e Núbia
Aos meus filhos
Laura, João, Pedro e Ana Flora
Aos meus sobrinhos
Talita, Ana Paula, Beatriz, Victor, Caio, William, Manuella e Violetta
Dançando
Estou na Itália, numa pequena cidade no alto das montanhas na região da Ligúria. É verão e o vilarejo está repleto de flores. Há buganvílias por toda a parte. Casas feitas de pedra, antigos casarões com mais de quinhentos anos ladeados por montanhas e árvores frondosas, serpenteiam caminhos e trilhas floridos e com cheiro de mirto. O céu está azul e o calor começa a dar uma amenizada quando o pôr do sol vai se aproximando. Este clima agradável nos convida a irmos comer num restaurante a céu aberto na praça. Todo o vilarejo tem pouco menos de quatrocentos moradores e hoje há uma festa na cidade.
Nos sentamos numa mesa de onde podemos ver a movimentação animada daquela comunidade. Um palco está montado a uns duzentos metros de onde estamos e há um grande espaço aberto na frente dele.
Uma cerquinha baixa separa o grande espaço das muitas cadeiras e mesas organizadas em semicírculo. Famílias inteiras e uma porção de amigos estão sentados saboreando seu jantar e mais gente vai se juntando a eles. Os italianos conversam alegremente, são barulhentos e festivos como os brasileiros. Crianças brincam de bola, outras passam correndo em suas bicicletas, os pequeninos caem ao correr, ralam os joelhos e choram, outros pequeninos riem, os pais saem correndo para ajudar. Isso é a Itália. Pais, filhos, netos, avós...
De repente, sobem dois artistas no palco iluminado e começam a cantar músicas populares do país e arriscam algumas em inglês. São canções românticas, outras mais animadinhas e famosas. E eu, que estou de férias com minha família, passados quase trinta dias após a morte da minha mãe, preciso fazer grande esforço para não chorar: é que vários casais de idosos já estão no meio da praça, em frente ao palco, dançando juntinhos, assim como minha mãe tantas vezes fazia com seu grande companheiro de vida, seu marido Garcia, meu padrasto.
Muito rapidamente o espaço antes vazio, está repleto de casais.
Homens e mulheres jovens, casais de cabecinha branca, amigas com amigas, pais com seus pequenos filhos, crianças com crianças. Os primeiros porém, a irem dançar, foram os mais velhinhos. Aquela imagem representa muito a minha mãe. E a emoção vai subindo pelo meu rosto, esquentando minha pele e algumas lágrimas escorrem pelo rosto. Levanto-me para não ficar de baixo astral e vou mais para perto dos italianos, levando pela mão minha filhinha que ama dançar, para ela movimentar o corpo e eu, a alma.
Como sinto saudade da mamãe! É neste exato momento que decido: preciso começar o livro por aqui, por esta noite! A Itália é a cara dela! E essa sensação que tive ali, naquela bela cena, precisava ser descrita.
Observando os casais idosos, lembro-me como eu sempre desejei que mamãe tivesse conhecido a Itália. Mas ela não gostava de viajar de avião, imagina num voo de tantas horas! Uma pena, porque tenho certeza de que ela gostaria da Itália! O país tem belas paisagens, praias e montanhas, é também um lugar agradável e muito acessível para nós. Além disso, para um brasileiro saudoso da sua terra natal, a Itália depois de Portugal, é o melhor local para quem deseja se sentir como se estivesse no Brasil.
E especialmente para mim: lembrar da minha mãe!
Recordo-me de um outro fim de tarde, alguns anos atrás, quando eu estava em uma outra cidadezinha italiana e no restaurante próximo de uma outra praça – parecida com a que estávamos no último verão – tocava uma música do Benito de Paula, cantor que mamãe também gostava de ouvir. Aquela canção fez minha memória flutuar até minha mãe e nossa doce infância.
Infância
Minha mãe teve cinco filhos e se existe algo que nos faz pensar automaticamente nela, é a música. Ela era um ser musical. Toda a nossa infância foi embalada por músicas que mamãe e papai ouviam, ou mais tarde, ela e nosso padrasto. Vê-la dançando e cantando na cozinha é a imagem mais forte e nítida que tenho dela. Mamãe aumentava o som da vitrola e com seu vozeirão alegre, fazia soar aquele timbre incrível por todos os cômodos enquanto acompanhava o cantor. Era como se mamãe se espalhasse pelo interior da casa, como a sua voz fazia. Ela e a música eram como se fosse uma coisa só. Ambas sempre foram nossa alegria. Uma não existia sem a outra. Acordávamos com mamãe já cantando e nos fins de semana, quando as tias e a vovó iam para nossa casa fazer juntas nossos almoços especiais em família, mamãe fazia tudo ficar mais vibrante, porque ela era pura animação. Nossos encontros eram sempre regados com muita música e risos.
No meio da semana não era diferente. Os fins de tarde eram sempre acompanhados de canções que tocavam direto da sua vitrola para nossos corações de meninas. Ouvíamos juntos com ela, Roberto Carlos, Julio Iglesias, Celly Campelo, Nelson Rodrigues e muitos outros artistas, enquanto brincávamos no quintal. Todas essas músicas e momentos estão gravados em nossas memórias de forma indelével e não há um filho sequer da dona Flora que não conheça todas aquelas letras de cor.
Naquele tempo, mamãe vivia com nosso pai, Enoch Sena. Eles se conheceram no bairro da Glória em Manaus, perto da casa onde vovó morava. Seu ponto de encontro era sempre o abrigo, onde havia uma parada de ônibus. Minha madrinha Darcy, irmã do papai, possuía uma banquinha nas proximidades desse abrigo, e é bem provável que eles tenham se conhecido por ali, numa das muitas idas da minha – ainda muito mocinha e – católica mãe, a sua igreja. Sempre acompanhada de sua mãe: as filhas não saiam de casa sem ela!
Vovó Laura era uma mulher que tinha muito zelo pela família. Ela e seus filhos tinham vindo do interior do Amazonas para morar na capital alguns anos antes. Outrora, vovó viveu com seu primeiro marido com quem teve seis filhos, mas um dia, ela ficou viúva.
É tia Luiza, irmã da minha mãe, quem relata o que se recorda: Depois da morte do papai, mamãe conheceu teu avô, o Simão. Eu lembro de ir para cima do barranco com o Conço, chorar. Nós não queríamos que ela arrumasse um namorado, nós tínhamos medo do que as pessoas iriam pensar
.
Mas vovó nem ligava: Ela se arrumava, ficava toda bonita e saía dizendo que ia ver o namorado, o Poromba.
Nesse tempo, titia explica, eles passavam uma temporada em cada lugar, dependendo das cheias e vazantes do rio.
Onde ficávamos, fazíamos um sítio. Quando Flora tinha dois anos, moramos no Jutaí, na casa da tia Estelita, prima do papai, numa casa enorme. Tinha uns dez quartos, cinco banheiros. Fomos para lá após a morte do seu marido. Mas nós vivíamos na Foz do Jutaí. Mamãe conheceu o teu avô lá. Depois ela o levou para o Breu, onde nós tínhamos um sítio. Ele viveu com a gente por uns dez anos, só mais tarde que as filhas dele com mamãe nasceram. Na ilha, nós tínhamos uma casa. Quando era tempo de cheia, ficávamos na casa da tia Estelita, e na seca, voltávamos para a ilha. Foi ali que Flora nasceu, em casa mesmo. A parteira era dona Francisca Hilário, a dona Chiquinha
.
Titia explica que era dona Chiquinha quem fazia o que ela acredita, os mantinha com saúde e força – até hoje, inclusive – o famoso caldo da caridade! Que é um alimento que segundo os mais antigos, levanta qualquer defunto no Amazonas. Um caldo feito de farinha de mandioca bem fininha, com pimenta do reino e alho.
Era nessa ilha que na seca, naquele barro escuro, vovó plantava milho, feijão, melancia, tabaco, mandioca, macaxeira. E fazia a própria farinha, para o tal caldinho da caridade. Tia Luiza recorda-se: E tinha muito peixe! Bastava jogar a tarrafa que eles vinham aos montes. Nessa ilha, quando o rio chegava até nossa casa, nós até podíamos pescar de dentro da casa mesmo, porque o rio passava por debaixo dela
.
Com meu avô Simão, vovó teve ainda três filhas: minha mãe Flora, tia Emília e Raimundinha. Esta última ela precisou dar a uma família que morava perto de sua casa, pois vovó não estava em condições de criá-la. Tia Luiza diz que vovó, de tristeza por ter dado sua filha, chorava todo dia e pedia a Deus em oração que levasse a menina.
Se suas orações foram de fato atendidas não se sabe, mas o fato é que Raimundinha ficou doente pouco tempo depois e acabou falecendo. Além desse triste ocorrido, vovó ainda sofreu dois abortos espontâneos.
Tia Emília ainda era um bebê quando vovó separou-se do meu avô.
Segundo consta na família, ele era meio folgado e pouco trabalhador. Vovó não teve paciência para aturar homem preguiçoso, uma vez que ela própria e seus filhos ainda pequenos, saiam para trabalhar seja na roça, no igapó ou na praia e vovô ficava em casa. Os filhos mais velhos da minha avó já não estavam aguentando aquela situação, mas vovó parecia ainda muito ligada a ele. Até que foi pegando raiva do vô Simão, o famoso Poromba. Os filhos lembram que as crianças e a vovó iam trabalhar na praia, debaixo de