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Lembranças! pra que te quero?
Lembranças! pra que te quero?
Lembranças! pra que te quero?
E-book256 páginas3 horas

Lembranças! pra que te quero?

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Sobre este e-book

Em tom coloquial, de forma poética, Conscy Mattos relata com saudades sua primeira infância no sertão do Piauí. Vinda de uma família numerosa, descreve a luta que foi crescer e viver em um lugar onde faltava tudo, menos o respeito e o afeto entre as pessoas.

Com poemas, frases e pensamentos de sua autoria, expõe suas dúvidas entre viver na Capital ou levar uma vida simples no seu mundo encantado longe da civilização. Narra sua chegada à Capital do Brasil e o encontro com novos amigos que a despertou para uma vida nova.

Deixa claro que, mesmo sem nenhuma experiência, uma pessoa pode se tornar um grande profissional se lhe for dada a devida oportunidade e confiança. Que pode, sim, existir um forte laço de amizade entre um homem e uma mulher, e não importa o berço onde você foi embalado, o importante é a visão que você teve do mundo quando o olhou pela primeira vez.

Em Brasília, Distrito Federal, com suas belezas e hematomas sociais, expondo a família aos riscos de uma cidade grande, mergulhou em um mundo diferente para um grande e perigoso resgate.

"Lembranças! Pra Que Te Quero?"é um livro verdadeiro, criativo, triste e venturoso que toca na emoção das pessoas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de out. de 2020
ISBN9786586118629
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    Lembranças! pra que te quero? - Conscy Mattos

    Fazenda Terras do Horizonte

    Já sinto o cheirinho de primavera no ar. É setembro! Impossível existir silêncio no final da tarde. Os pássaros agitados, céu como nuvens de algodão tingidas de azul, o trovão pipoca para o lado norte, o vento arrastando as folhas secas. Gotinhas de chuva começam a cair, trazendo-me um cheiro forte de terra molhada e lembranças de um passado distante e tão presente em minha memória. A infância, a adolescência, as mudanças…

    Olho da janela do meu quarto e vejo meus filhos correndo junto à garotada, no embalo do vento, na zoeira das folhas, rodopiam, gritam excitados, fazendo-se moleques traquinas, sem pensar em nada. Do meu primeiro andar, vejo um belo pedaço do céu de Brasília, onde o clarão relampejante insiste, até que eu feche as cortinas e ponha-me a pensar…

    Como se eu estivesse diante de um espelho gigante, revendo meu passado, e nele estivessem guardados todos os meus dias já vividos.

    O velho pé de mirindiba ao canto esquerdo do quintal do casarão, balançando seus galhos, jogando longe suas folhas em um balé repetitivo, as roupas surradas pelo tempo, penduradas na cerca de arame farpado, trovões, relâmpagos, ventania.

    Minhas irmãs Lu, Rosário, e eu correndo atrás das galinhas para protegê-las da chuva, que nunca vinha.

    Que saudades daquele lugar! Um cantinho do Nordeste desprovido de qualquer modernidade e vaidade humana, esquecido pelas chuvas, luz elétrica e dos homens do poder.

    Eu me lembro bem que nossos domingos eram de casa cheia. Toda a vizinhança ia ouvir papai tocar forró em sua sanfona vermelha, sempre muito bem afinada.

    Nosso pátio era palco de muitas alegrias. A lua, com seu clarão encantador, parecia festejar conosco.

    Anos de chuvas, boas colheitas, papai cantarolava pelos caminhos da roça e, às vezes, até filosofava. Anos de seca, nos sentávamos ao luar a olhar na mesma direção até sermos tocados por um vento frio e rápido que parecia molhar nossos rostos. Papai chamava de vento da pororoca.

    Dema perguntava:

    — Papai, o que é pororoca?

    Ele respondia:

    — É um acontecido que se dá no mundo todo através do vento, afetando rios e mares. No Amazonas, onde fica o maior rio do Brasil, os índios chamam ele de vento da pororoca, quando vem uma forte ventania levantando as águas do mar, que se joga no rio, o rio devolve pro mar. Isto se dá na lua cheia ou na lua nova, e tudo fica em polvorosa, até os peixes perdem o rumo, nadando contra as correntezas. Por assim dizer, quando ele chega por aqui, onde só tem rios pequenos, ele vem brando e suave, refrescando nossas noites quentes.

    Mamãe dava uma risadinha sarcástica e dizia:

    — Não sei onde o Jacó acha essas histórias.

    Papai respondia em tom enfezado:

    — Maria, são histórias dos meus antepassados!

    E assim a pororoca passava e íamos dormir livres e leves, sabendo tudo sobre Pororoca.

    Éramos treze filhos e mamãe se orgulhava de sua prole, pela ordem do mais velho ao mais novo: Domingos, Mundica, Chagas, Jacozinho, Dalila, Dedé, Dimar, Naza, Rosário, Luzia, eu (Conscy), Tonio e Dema. Papai Jacob José e mamãe Maria. Papai era bonito, branco, alto, de olhos claros, com descendência portuguesa; mamãe, uma morena linda, traços suaves no rosto, cabelos pretos e longos, com descendência indígena. Minha grande família que a seca separou.

    Domingos, já casado com Brígida, era delegado em Marcolândia-PI.

    Mundica, casada com Pedro Cardoso, já tinha sete filhos e morava em Bacabal-MA.

    Dalila morava com Mundica e já era noiva de Clóvis. Eu não conhecia nenhum destes irmãos. A família vivia à espera das cartas dos manos distantes. Papai escrevia cartas para os filhos distantes uma vez por mês.

    A chuva não vinha, o sol ardia na pele, retirantes passavam enfileirados pelos caminhos rumo ao sul. Papai assistia a tudo da janela com olhos marejados de lágrimas. A seca faz isso com o nordestino, colocando-os em terra estranha, tirando-lhes a alegria da convivência em família.

    Maldita seca!

    Por que maltratar tanto o meu povo? Sempre tínhamos que viver como galhos soltos ao vento de um velho tronco fincado, sedento e abandonado no ressequido furor da piçarra quente do Nordeste!

    A cada ano, eu via mamãe recostada ao tronco da mangueira, com olhar distante, rosto banhado em lágrimas, enquanto um filho sumia na poeira do caminho.

    Na minha imaginação, existia um muro alto por onde pulava cada um deles depois de sumir na curva do rio.

    Minha irmã Naza, aos 13 anos, começou a sofrer de uma doença que ninguém sabia o que era. Nem os milagrosos chás e banhos de ervas que mamãe fazia eram capazes de curá-la. Naza vivia pálida e magra, rolava no chão sobre uma esteira de palha com as mãos na barriga. Mamãe a levava ao hospital da cidade mais próxima e voltava sem nenhum diagnóstico. Dona Joaquina dizia que era feitiço:

    Cumade Maria! Nada me tira da cabeça que esta menina não esteja enfeitiçada! Uma menina branca, de cabelos longos e pretos, bonita desse jeito, é difícil de se ver por aqui! É inveja, abram o olho! É feitiço, sim!

    Outros diziam que era gravidez. Dona Luiza Chica dizia para mamãe:

    — Minha cumade! Sabe o que tão dizendo puraí? Que sua minina tá grarda! Marreu dixe a elas: "É não, mermã! É alguma côrra que ela come e farmalo…!

    Mamãe ficava furiosa e queria saber o nome de quem estava espalhando os boatos, e ela respondia:

    — Quem, cumade? Eu conto o pecado, mar num conto o pecador!

    Quando ela saía, mamãe ficava a chorar, e papai lhe dizia:

    — Maria, na cara que a dona do boato é ela mesma!

    Assim, entre fofocas e maldades, o tempo passava, mas nada de a Naza melhorar.

    Certo dia, papai soube de um senhor que fazia umas garrafadas mágicas em um lugar bem distante. Papai seguiu a cavalo com ela. Depois de um mês, voltaram com Naza boa e feliz, tomando muitas garrafadas de raízes.

    Começaram os falatórios de que papai a tinha levado para parir em outro lugar bem distante e doar a criança. Foi nesse tempo que a carabina ficou pendurada na parede da sala da frente esperando o dono dos boatos, o que incomodava muito a minha mãe.

    A vida continuou normal apesar da carabina. Naza começou a cultivar um lindo jardim florido em volta da casa. O sacrifício era fora do normal, a tarde inteira carregando água do rio para regar as plantas do jardim. Era lindo de se ver! Borboletas, beija-flores e catirinas (libélulas) dançantes vinham nos visitar todos os dias. Como tudo que é bom dura pouco, as dores de Naza voltaram com força dobrada.

    No mesmo ano, logo após a colheita do feijão, Dedé se despedia para servir ao exército. Mamãe chorou muito, era ele quem pescava quando ela sentia vontade de comer peixe. Os dois, além de serem parecidos, tinham uma sintonia muito boa. Dedé odiava o trabalho na roça, ia andando devagar, assoviando ou cantando. Dizia que queria ser cantor um dia. Papai reclamava de sua indisponibilidade para o trabalho na roça e deixava bem claro que Dedé era um preguiçoso. Mamãe o defendia da ira de papai. Por fim, Dedé resolveu servir a Pátria e tentar a vida longe da roça, para a tristeza da mulherada, e nossa, porque era bem divertido tê-lo por perto. Também era ele quem acompanhava minhas irmãs nas festas.

    Domingos apareceu de surpresa para uma rápida visita. Eu ainda não o conhecia. Ele havia ido embora antes de meu nascimento. Era muito bonito, alto, parecido com papai, pele bem tratada, trajes finos, usava óculos com aros cor de ouro. Eu o achei tão diferente de nós…

    Domingos aconselhou meus pais a levar Naza para o hospital da capital, onde morava tio Chico, irmão de papai, lá teria condições de receber um diagnóstico mais preciso. Mamãe já se sentia esgotada, mas aceitava todas as opiniões possíveis. Tio Chico, quando ficou sabendo, enviou um aviso pela rádio de que já havia marcado consulta e tudo para minha irmã e a aguardava com urgência.

    Meu tio Chico era como um segundo pai para nós. Sua chegada lá em casa era como a chegada da chuva. Sua alegria contagiava. Além do forte grau de parentesco com papai, ele era o melhor amigo de mamãe e sabia o quanto todos nós o amávamos. Tinha onze filhos, todos estudantes, apenas ele trabalhava. Estava sempre à nossa disposição para hospedar em sua casa os que precisavam ir a Teresina.

    Nosso único meio de comunicação com os amigos e parentes da cidade era através de cartas ou de rádio a pilha, artigo caro, que nem todo mundo podia ter, e o pior, as danadas das pilhas não duravam quase nada. Assim, os que tinham rádio avisavam os outros, que, por meio de cavalo, jumento ou bicicleta, levavam o aviso adiante, por léguas.

    Apesar de termos em casa paiol de farinha, arroz, feijão, milho, criação de gado, caprinos, suínos e um pátio florido de galinhas, a moeda mesmo era difícil de chegar em nossas mãos, só vendendo algum animal ou o que colhíamos das roças que mal dava para alcançar a próxima safra. Era perigoso vender a colheita, pois nunca se sabia como seria o ano seguinte em se tratando da chuva. Na seca, os legumes não nasciam, os rios secavam, animais morriam de fome e sede e o nordestino ficava à mercê do governo, que era totalmente alheio aos problemas do campo.

    Logo que recebemos o aviso de meu tio sobre a marcação da consulta de minha irmã, lá se foi mamãe caminho afora com Naza, abatida e cansada. Até onde se pegava o ônibus eram seis quilômetros a pé. Mais uma despedida, essa foi a pior de todas, porque papai ficou a chorar, dessa vez ele parecia querer ir junto, pois seguiu as duas até a porteira e lá ficou debruçado por horas… Dia ruim, Dimar chorava muito! Ela e Naza eram muito ligadas. A partir desse dia, Dimar assumiu o jardim de Naza e plantou muitos pés de maravilhas, bougarins e espirradeiras, flores de cores delicadas e perfumadas. Por trás da casa, bem perto das janelas dos quartos, ficava o jardim de plantas medicinais que mamãe conservava com muito carinho: alfavacas, alecrim, hortelãs, mastruz, malvas e muitas outras plantas! Nas manhãs, quando o vento batia nas janelas, sentíamos um aroma gostoso vindo do poderoso jardim medicinal de mamãe. Dimar, para passar o tempo, começou a costurar roupinhas para os filhos dos moradores da fazenda. Pegava os retalhos que mamãe ganhava das amigas da cidade e transformava em lindas roupinhas para as crianças. Ela tinha um talento natural para costura. Depois começou a fazer suas próprias roupas e em pouco tempo já costurava para toda a família. Todos os pais das fazendas vizinhas sonhavam em casá-la com um dos seus filhos, segundo eles era a mais bonita e a mais prendada dos arredores, mas ela, muito risonha e faceira, era feliz do jeito que estava, livre e encantadora, apesar de muito brava. Ela e Chagas costumavam parar as festas; quando os dois começavam a dançar, as pessoas recuavam para abrir espaço para eles no salão. Agora, Dimar só chorava e se abatia pela saída de sua companheira e amiga. A casa estava triste, todos estavam tristes com a partida de Naza e a incerteza com relação à sua saúde.

    Foram três meses bem difíceis sem mamãe. Papai não deixava ligar o rádio, apenas no horário do meio-dia, para escutar os avisos na esperança de boas notícias das duas. À noite, ele quase não falava conosco, apenas respondia ao nosso pedido de bênção. Falávamos em fila:

    — A bênção, papai!

    Ele respondia com altivez:

    — Deus te abençoe, meu(a) filho(a).

    Dormíamos cedo com o silêncio das galinhas. Cheguei a pensar que as duas não voltariam mais. As horas pareciam longas e não tínhamos relógios em casa, apenas um calendário na parede principal da casa para contar os dias. Meus pais nos ensinaram a ver a hora pela posição do sol, e eu só sabia quando era meio-dia porque papai dizia que meio-dia era quando o sol passava bem em cima da cumeeira da casa. No início do dia, o galo cantava, no fim do dia o capelão chorava, à meia-noite os vaga-lumes bailavam na escuridão silenciosa do jardim.

    Finalmente, em uma tarde de um lindo pôr do sol, mamãe apontou por trás do capão de mato, e estava sozinha!

    Naza havia ficado internada aguardando cirurgia. Ficou sob os cuidados do meu tio Chico.

    Nossa vida continuou, apesar da tristeza. Muitas visitas das comadres da mamãe que chegavam debaixo de um sol escaldante, só para saber notícias de minha irmã. Os compadres de papai estavam sempre presentes nas manhãs de domingo, às seis horas da manhã já se ouvia o trote dos cavalos chegando na porteira de entrada, porque o dia por lá começava muito cedo.

    Nossa privacidade era guardada por lindas cortinas de chitão, confeccionadas por mamãe. Ninguém ousava entrar no quarto sem antes pedir permissão. Apenas o sol e o vento entravam sem bater. Quando as manhãs invadiam nosso quarto com o sol entrando pelas janelas, guiado pelos ventos que levantavam as cortinas de chitão florido, já era hora de começar a lida...

    Nossos dias eram de saudades e lutas à procura por água. Nossas noites eram diferentes. Não nos sentávamos mais ao luar, papai fazia chapéus de palha à luz da lamparina, mamãe fazia preces por Naza e pelos filhos viajantes e nós ouvíamos novela no rádio a pilha. Nossa lua ficava sozinha, a pororoca passava e só encontrava um pátio vazio, escuro e silencioso.

    Papai há dois anos ia uma vez por mês à capital, pedir ao DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) que fosse construída uma barragem subindo o rio, acima do poço do banho, onde começava a plantação de canaranas, para que o rio não secasse mais.

    Um ano se passou e conseguimos atravessar o longo e truculento caos que nossa família estava vivendo, chuva, legumes crescendo, Naza seguindo internada, mas melhorando a cada dia. Papai voltou a contar histórias sobre seus antepassados, quando sentávamos no pátio. Dizia-nos que seu avô contava que seu bisavô dizia que, nos tempos vindouros, chegaria um momento em que a roda grande giraria dentro da pequena. Que chegaria um novo tempo onde os jovens desejariam ser velhos e os velhos desejariam ser jovens, que a mulher escolheria o dia em que seu filho nascesse. Que as notícias chegariam antes que o próprio vento. Lu e eu ficávamos impacientes esperando logo essa bendita roda girar dentro da outra. Como assim? Roda grande dentro da pequena? Algo mais veloz do que o vento??? Papai falava de tantas previsões futuras, que não demos muita importância. Hoje se cumpre tudo. Agora que vemos a roda grande girar dentro da pequena é quando os mais jovens ensinam aos mais velhos a usar a internet, os filhos desrespeitando os pais, netos cobiçando a aposentadoria dos avós, as mulheres marcando o dia de fazer seu parto cesárea, e tem algo mais veloz do que a internet?

    Morar em Terras do Horizonte foi ter o meu próprio reino

    Nós, as crianças, tínhamos a escolinha da professora Toinha, em um lugar chamado Santa Severa, bem distante de nossa casa, mas era muito divertido, porque pelos caminhos íamos nos juntando a outros estudantes, o que enganava o cansaço e a fadiga com as brincadeiras. Do outro lado do rio, tinha a casa da tia Beata, onde nos esperavam os primos Rosa, Maria e Chagas. Mais adiante, a fazendinha Quarenta e Sete, com poucos habitantes, os Eugênios e os Jovitas. Depois a Fazenda Poção, de onde saía gente de tudo que era vereda! A cada moita de bugio, se via uma casinha de palha por trás com uma numerosa família dentro, todos da

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