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A realeza no Nordeste brasileiro: releituras do conto de fadas no romance de cordel
A realeza no Nordeste brasileiro: releituras do conto de fadas no romance de cordel
A realeza no Nordeste brasileiro: releituras do conto de fadas no romance de cordel
E-book339 páginas4 horas

A realeza no Nordeste brasileiro: releituras do conto de fadas no romance de cordel

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Sobre este e-book

O que teria motivado poetas populares a revisitar os contos de fadas europeus? Essa indagação foi o ponto de partida desta pesquisa, que procurou, nas matrizes orais e impressas de romances de cordel no Nordeste brasileiro, compreender a revitalização de arquétipos em figuras da realeza. Mas o que os teria motivado a revitalizar tais arquétipos? Que vozes reverberariam nesse processo? No intuito de elucidar tais questões, um sinuoso trajeto foi percorrido por meio da investigação da mouvence do arquétipo da donzela casta, obediente, à espera de um herói que a salve de um fim incerto, ou mesmo da astúcia deste na conquista pelo seu happy end. Partindo de um levantamento de romances de cordel divididos em três grupos: "Príncipe e Princesa", "Princesas" e "Príncipe", foram arroladas discussões acerca da literatura popular, da oralidade, do conto maravilhoso, da performance e dos (para)entretextos, na esteira de Paul Zumthor (1993), Francisco Claudio Alves Marques (2018), Jerusa Pires Ferreira (2016), Edilene Matos (2007) e uma gama de estudiosos. A escuta às vozes que emanam desses textos apontou para os ecos de uma realeza na poesia popular híbrida, que congrega o cavalheiresco e o popular e revela um herói às avessas em busca da donzela casadoira, a fim de conquistar a empatia dos leitores/ouvintes no contexto do Nordeste brasileiro.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de jan. de 2024
ISBN9786527000402
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    A realeza no Nordeste brasileiro - Carla Kühlewein

    capaExpedienteRostoCréditos

    Em memória de Arievaldo Viana

    SUMÁRIO

    Capa

    Folha de Rosto

    Créditos

    LEITURAS À SOMBRA DO OUTÃO

    O ENTRELUGAR DO CORDEL

    As vozes no cordel

    Em meio à (des)ordem

    A escuta das vozes

    O conto de fadas, afinal

    A REALEZA NO NORDESTE BRASILEIRO

    O modus faciendi

    No reino da cavalaria

    No Reino do Vai-Não-Torna

    Do herói medieval ao nordestino

    A beleza astuta da princesa

    SER TÃO, SER TÃO NORDESTINO...

    Branca como a neve

    Do Contexto ao Texto

    O Happy End

    A realeza atravessa os mares

    A princesa e o guerreiro

    ENTRE FADAS E FEITIÇOS

    A Cocanha brasileira

    Dornröschen

    As preciosas fadas

    A Princesa no Bosque

    A Bela Adormecida de Ataíde

    O reino encantado de Minelvino

    A BORRALHEIRA DO SERTÃO

    Entre o fogão e a lareira

    O desabrochar de Cinderela

    No reino da Pedra Fina

    Um certo José...

    HERÓIS ÀS AVESSAS

    A jornada do herói

    A imagem heroica

    O início da trajetória

    Desafios no percurso

    O encerramento da jornada

    Uma dose de astúcia

    O herói cavaleiresco

    As heroínas

    O herói popular

    O mundo às avessas

    REFERÊNCIAS

    APÊNDICES

    Landmarks

    Capa

    Folha de Rosto

    Página de Créditos

    Sumário

    Bibliografia

    LEITURAS À SOMBRA DO OUTÃO

    No Nordeste brasileiro, pelo menos até a década de 1970, a leitura/audição de folhetos de cordel podia ocorrer em qualquer espaço público: estações ferroviárias, feiras de domingo, praça principal da cidade ou ainda em tradicionais mercados municipais. Na verdade, todos esses espaços serviam de cenário para a dramatização de narrativas que falavam diretamente a seus ouvintes, versavam sobre hábitos, costumes, crenças, valores e sonhos.

    No âmbito familiar, os folhetos costumavam ser lidos pelo menos em duas ocasiões: ou nos finais de semana, quando alguém que sabia ler reunia a família e os vizinhos para a leitura/audição das narrativas, ou no final da tarde, quando jovens afeitos às façanhas de heróis astutos e trapaceiros (da estirpe de João Grilo e Cancão de Fogo), se reuniam à sombra do outão da casa ou sob o alpendre, para degustar histórias de paladinos da justiça e heroínas locais ou oriundos(as) de tempos e geografias distantes: de príncipes (do Barro Branco, do Limo Verde), princesas (Bela Adormecida, Cinderela, da Pedra Fina), valentes (Antônio Silvino, Lampião, Vilela) e cavaleiros medievais (Carlos Magno, Oliveiros, Ricarte e Roldão).

    Mas o livro que ora apresento ao leitor, resultado de uma longa e intensa pesquisa de doutorado, realizado por Carla Kühlewein, trata especificamente de heróis e heroínas que povoaram o imaginário europeu, protagonistas de narrativas mágico-maravilhosas que, se de início não tinham as crianças como público-alvo, passaram a tê-las com os irmãos Grimm, Charles Perrault e Figueiredo Pimentel. Na virada do século XX, essas figuras da realeza europeia alcançariam a mente criadora dos cantadores e poetas de cordel no Nordeste brasileiro, responsáveis por dar continuidade a arquétipos seculares que, aqui, se juntaria à sonoridade griot e à mitologia autóctone.

    Uma questão guiou a pesquisadora ao longo do trajeto: O que teria levado os poetas de cordel nordestinos do início do século XX a buscarem inspiração nos contos maravilhosos europeus? Segundo Carla Kühlewein, a rearticulação do passado europeu com o presente dos poetas do sertão nordestino envolve o campo da ressignificação, promovida por meio de uma seleção consciente de elementos aos quais se pretende dar (ou não) continuidade, o que nos leva a pensar que os poetas populares ecoam a voz de príncipes e princesas em suas narrativas, atendendo ao horizonte de expectativas de seus leitores/ouvintes.

    Partindo dessa premissa, e seguindo parte das orientações teóricas de Paul Zumthor, sobre a poesia medieval escrita e oral, a autora revisita uma tradição que tem início no Nordeste brasileiro, com os primeiros folhetos impressos no final do século XIX, para explicar como o horizonte de expectativas do leitor/ouvinte foi sendo plasmado sob os auspícios de um contexto histórico e social totalmente favorável ao florescimento desse tipo de narrativa; assim segue em busca das possíveis fontes escritas que serviram de inspiração às dezenas de retextualizações que deram origem à história da Princesa da Pedra Fina, da Bela Adormecida no Bosque, do Príncipe do Barro Branco, deparando-se com matrizes europeias impressas aportadas no sertão e logo ajustadas às sextilhas nordestinas, como as versões traduzidas para o português de Perrault e dos irmãos Grimm. Além desses, a autora encontra à disposição dos poetas os Contos e Histórias de Proveito e Exemplo (1575), de Gonçalo Trancoso, transmitidos oralmente desde a colonização pelos narradores tradicionais, tão valorizados por Walter Benjamin (1994); os Contos da Carochinha (1894), primeiro livro infantil publicado no Brasil, de Figueiredo Pimentel, divulgador das traduções dos contos de Perrault e dos Irmãos alemães, em obras como Histórias da Avózinha (1896), Histórias da Baratinha (1896) e Contos de Fada (1896).

    Essas narrativas vinham sendo lidas e difundidas oralmente antes mesmo da sistematização da literatura de cordel, e assim, como numa espécie de síntese, faço saber aos leitores de A realeza no Nordeste brasileiro: releituras do conto de fadas em romances de cordel, que esta obra não se limita apenas a mais uma leitura acadêmica, haja vista que, desde a primeira página, são convidados a viajar por terras distantes, povoadas de príncipes e fadas, para, ao final, depararem-se com Cinderelas e Borralheiras que continuaram sonhando com o cavaleiro que as salvaria da prisão a que foram historicamente submetidas, no alto da torre do patriarcado, como ocorre à princesa Creuza, em Romance do Pavão Misterioso, de João Melquíades Ferreira da Silva (s.d., p. 1):

    Eu vou contar uma história

    De um pavão misterioso

    Que levantou voo na Grécia

    Com um rapaz corajoso

    Raptando uma condessa

    Filha de um conde orgulhoso.

    Um tema atravessa quase toda a escrita da pesquisadora: a tópica do Reino do Vai-Não-Torna, terra distante e misteriosa, plena de perigos, tão recorrente na poesia narrativa de encantamento, como bem observou a saudosa professora Jerusa Pires Ferreira (2003, p. 136-137), para a qual, O nosso ‘romanceiro’ nordestino de encantamento se aproxima do romance cortês pelo repertório, pela atitude e relação do herói com o grupo social, pela mesma obstinada espera de redenção e de harmonia, pela constante busca do outro mundo.

    O reino do Vai-Não-Torna, como descrito em um dos folhetos analisados pela autora deste livro, figura como um lugar distante, ameno, mas pleno de perigos, e de onde poucos conseguem retornar, como nestas duas estrofes de O Príncipe do Barro Branco e a Princesa do Vai Não Torna, de Severino Milanês da Silva (1960, p. 1 e 3):

    O Reino do Barro Branco

    É defronte uma colina

    Cortada por quatro rios

    De água potável e fina

    Fica nos confins da Ásia

    Bem perto da Palestina.

    (…)

    Chamava-se Vai-Não-Toma

    O reinado da princesa

    Chamava-se assim por que

    Quem ia naquela empresa

    Se acabava por lá,

    Morria sem ter defesa.

    Mas o Vai Não Torna se refere também a veredas nem sempre tão amenas quanto as descritas pelos poetas de cordel, porque esse reino distante e desconhecido se refere – embora alegoricamente e conforme o imaginário coletivo sertanejo – às veredas hostis do sertão, as quais, desde a Colônia, apresentam-se como um desafio àqueles que se aventuram a domá-las. No Nordeste do Brasil antigo, muitos não conseguiam retornar dos fundos desse sertão quente e inóspito, habitado por feras e cobras peçonhentas, descrito como uma espécie de locus horrendus. Retornavam aqueles que, com a destreza dos príncipes dos cordéis encantados, enfrentavam monstros e dragões, sarças e seixos, alegorias das dificuldades enfrentadas cotidianamente por quem precisava (e ainda precisa) cultivar a vida em meio às pedras. É desse universo que trata também este livro, e àqueles que se aventurarem a folheá-lo, boa viagem ao Reino do Vai-Não-Torna e bom retorno com a ajuda das fadas!

    Francisco Cláudio Alves Marques (Unesp)

    Assis, agosto de 2022.

    O ENTRELUGAR DO CORDEL

    Folhetos de cordel. Zentangle, caneta sobre papel A4.

    KÜHLEWEIN (2022).

    No dia 20 de fevereiro de 2018, o Diário do Nordeste publicou uma matéria sobre o I Festcordel (Festival Internacional do Verso Popular), realizado em Portugal¹. A iniciativa partiu do pesquisador lusitano António Sousa de Abreu Freire², com a intenção de restaurar uma das tradições mais antigas e genuínas de Portugal, a arte dos trovadores, uma das ancestrais do repente. A matéria começa destacando o encantamento que a literatura de cordel e o repente despertam nos europeus, que reconhecem nessas manifestações a herança viva da arte dos menestréis, trovadores e jograis da Idade Média. (DIÁRIO DO NORDESTE, 2018, p. 1).

    Para esse evento itinerante, foram convidados artistas de várias partes do mundo, dentre eles o ilustrador, quadrinista e editor de cordéis Klévisson Viana, que fez uma declaração curiosa na matéria em questão: O cordel e o repente são muito fracos em Portugal, enquanto no Brasil têm uma força gigantesca. (DIÁRIO DO NORDESTE, 2018, p. 1). Em outro momento da matéria, Viana destaca que a literatura de cordel é universal, pois começa com os trovadores e chega ao Brasil, contudo, enquanto a daqueles está em declínio, a dos cordelistas goza de plena vitalidade.

    Tal aspecto nos leva a refletir sobre o esforço lusitano em realizar um evento internacional e as declarações enfáticas do poeta cearense, as quais sugerem a tendência, não apenas da literatura de cordel, mas também dos estudos para sua compreensão. Ou seja, ao lado de uma literatura fundada em pressupostos teóricos consagrados pela Academia, esta outra caminhou ininterruptamente, registrada em papel ordinário a partir de enredos seculares, dando continuidade às vozes que tiveram origem na Europa, conforme atesta o próprio Viana, em sua declaração ao Diário.

    Embora nas nações europeias essa tenha sido a postura adotada acerca da poesia popular, no Brasil, nem sempre foi assim. Aliás, ainda hoje a literatura dita popular, em especial a de tradição oral, luta para encontrar seu espaço em meio a um rol de obras clássicas que cedem à hegemonia da escrita, em detrimento de uma oralidade latente cada vez mais difícil de se ignorar. Motivo que leva a pensar sobre a delicada tarefa de avançar nos estudos acerca da poesia popular. Primeiro porque nela ecoam as vozes da cultura europeia, sobretudo a ibérica, nem sempre dissonante, mas muitas vezes silenciada. Segundo, porque, na esfera do popular, a literatura de cordel tem mantido o protagonismo, e, apesar do aparente descaso, vem se tornando cada vez mais objeto de estudo, principalmente no exterior. Um dos motivos para tamanha relevância da literatura de cordel está em sua origem e consequente preservação de um fazer artístico próprio e procedência medieval, conforme destaca o pesquisador Ivan Cavalcanti Proença (1977, p. 23): originária dos romances tradicionais que aqui chegaram também nos séculos XVI e XVII através dos nossos colonizadores. Inicialmente foram ‘folhas soltas ou volantes’, como a história do Imperador Carlos Magno.

    O impasse da relevância do cordel enquanto literatura não é novidade. Obras canônicas apontam para seu papel secundário, quase invisível, ao longo dos tempos. Até Ivan C. Proença (1977, p. 27) menciona a desdita: alguns dicionários registram para o cordel ‘pouco ou nenhum valor literário’. Essa indiferença pelo cordel vem de muito tempo atrás, por parte da cultura oficial das classes dominantes, ideia que contrasta com a relevância do gênero atestada pela matéria do Diário do Nordeste.

    A literatura de cordel provém das bases populares e compõe uma das facetas da cultura diversa e expressiva do povo, especialmente o nordestino, do qual emerge e para o qual se volta, embora não se restrinja a ele. Em outras palavras, não é porque essa literatura surge do povo e a ele se dirige que não possa fazer incursões pelo erudito ou mesmo atingir notoriedade entre o público desse segmento. Afinal, é preciso atentar para a dinâmica que o medievalista Jaques Le Goff (1976) definiria como circularidade entre duas categorias: a popular e a erudita.

    Ainda a respeito da matéria divulgada no Diário do Nordeste, outro aspecto chama atenção: a matriz ibérica do cordel e o conjunto de versões que dela emanam ou com ela se interseccionam, os quais atestam sua ancestralidade e o longínquo percurso que narrativas medievas percorrem Europa afora, atravessando os mares, até chegarem aos ditos e escritos de poetas populares no Nordeste brasileiro. Essa questão pode ser exemplificada no Romance da Donzela Guerreira, do poeta Bráulio Tavares, cujo enredo gira em torno de uma mulher que se traveste de homem para poder guerrear, e assim desperta a paixão de um companheiro de batalha, sem que este desconfie de sua real identidade. O trecho seguinte apresenta o modo como se revela ao leitor essa situação:

    Vestida de duas armas

    montando seu alazão,

    foi a donzela pra guerra,

    como se fosse um varão.

    Ao cabo de sete anos,

    acabou-se a guerra então.

    Chegou à corte de França

    Dom Martinho o capitão.

    O filho do rei o viu,

    ficou louco de paixão,

    foi contar a sua mãe

    penas do seu coração.

    (TAVARES, 2005, p. 113)

    A trama se desenrola de acordo com os desafios da donzela, impedida de revelar sua real identidade, tendo recebido, no texto de Bráulio, o nome de Dom Martinho, o mesmo de outras tantas versões identificadas pelo próprio poeta:

    Versões da história da Donzela que se travestiu de homem para guerrear com localidades em que se originaram.

    Adaptado de TAVARES, 2005, p. 111.

    Os registros pontuados por Tavares (2005) indicam as adaptações pelas quais o arquétipo da donzela em perigo passa. Teodora, a donzela de Tavares, dialoga com Diadorim³, de Guimarães Rosa, pois ambas se vestem de homem para sobreviver aos percalços da vida, inserindo-se em um ambiente predominantemente masculino. Outro exemplo está em Estória de João-Joana⁴, de Carlos Drummond de Andrade, poema de cordel que encontra inspiração na matéria de Aderaldo Luciano, História do vaqueiro que virou mulher⁵, formando uma cadeia ininterrupta de (entre)textos que reverberam, à medida que o leitor os (re)descobre.

    Nas versões indicadas por Tavares (2005), com exceção da versão de Goa (Índia), as demais provêm de Portugal e arredores, como a Ilha da Madeira, fato que atesta a procedência ibérica da literatura de cordel. Para além de uma feliz coincidência, a relação entre essas histórias não se limita apenas ao enredo, mas também a uma série de elementos registrados no próprio texto, como indica Tavares (2005): na voz narrativa; nos versos de sete sílabas; na história dentro da história; nas elipses; nas frases feitas e na alternância do verso branco e do rimado. Também é preciso anotar o tom jocoso que algumas histórias adquirem ao serem adaptadas ao universo popular. É o caso da versão do próprio Bráulio Tavares, na qual é narrada a destreza de Dom Martinho ao se furtar dos testes (solicitados pela mãe) para tirar a prova real de sua sexualidade:

    — Ai, minha mãe de minha’alma,

    morro do meu coração...

    Os olhos do Dom Martinho

    são de mulher, de homem não.

    — Se tu o queres saber,

    convida-o a jantar,

    porque em cadeiras baixas

    mulher gosta de se sentar.

    Dom Martinho estava atento,

    não se deixou suspeitar;

    passou as cadeiras baixas,

    nas altas foi se sentar.

    (TAVARES, 2005, p. 114)

    A alternância de interlocutores indica que a cultura popular tem raízes mais extensas do que se possa supor e tenha se firmado nos últimos séculos, motivo pelo qual poetas populares contemporâneos, como Bráulio Bessa⁶, encontram espaço no campo das artes e ganham notoriedade em espaços culturais mais amplos e diversificados, o que leva a pensar também se a circularidade de ambos os polos, erudito e popular, tem sido o mecanismo propulsor da arte desde os tempos mais remotos.

    Os irmãos Grimm trouxeram inovações significativas no campo dos estudos da cultura popular, dentre elas, a noção de autoria coletiva. Conforme ressalta Plínio Freire Gomes (1992, p. 67), ao comentarem o problema da composição das lendas e contos infantis transmitidos em comunidades aldeãs, os Grimm introduziram a ideia extremamente inovadora de autoria coletiva: ‘o povo cria’, afirmavam eles. Vale lembrar, contudo, que os irmãos alemães tiveram um precursor: Perrault, com a publicação de Contos da mãe Gansa, em 1697, recolhidos da vivência popular.

    Um avanço maior no campo dos estudos voltados à literatura popular seria alcançado pelo filósofo e pensador russo Mikhail Bakhtin, ao identificar na obra de François Rabelais a presença de rituais carnavalescos da sociedade francesa e o dialogismo no romance polifônico de Dostoiévski. Ademais, como destaca Gomes (1992), esses e outros teóricos empenham-se em identificar o que diferencia o erudito do popular, quando a modernidade exige uma perspectiva que contemple a observação do quanto esses modos estão interligados, fato para o qual Peter Burke alerta: "[...] a fronteira entre as várias culturas do povo e as culturas das elites (e estas eram tão variadas quanto aquelas) é vaga e por isso a atenção dos estudiosos do assunto deveria concentrar-se na interação e não na divisão entre elas". (1989, p. 181 – grifo nosso).

    Tendo como ponto de partida a interação, Le Goff (1976, p. 77) também enfatiza a existência dos intermediadores, cuja função é exatamente a de cristalizar as mentalidades que se pretendem difundir em determinada época, as quais não se explicam nem pelas trevas da noite dos tempos, nem pelos mistérios do psiquismo coletivo. Encontram-se sua gênese e sua difusão a partir de centros de elaboração de meios criadores e vulgarizadores, de grupos e de profissões intermediárias (Idem).

    Burke (1989) observa que a literatura de folhetim divulgada em espaços públicos, da qual proveio o cordel, deu conta de divulgar (e talvez continue a fazê-lo) ideais aristocráticos durante o período moderno, como os de eficácia, coragem e lealdade, os quais foram plenamente acolhidos pelo povo. Assim, sob as vestes do cavaleiro, o nobre converteu-se num grande herói popular. (BURKE, 1989, p. 181-183). Está-se diante, portanto, da ideia de circularidade entre o erudito e o popular, como descreveu Bakhtin, de tal modo imbricados que fica difícil distingui-los, mesmo porque, sob a perspectiva da interação, nem seria necessário fazê-lo.

    Ainda a despeito dos intermediários, podem-se tomar gestos e demais habilidades dos cordelistas como legítimos representantes de um passado medievo recuperado em um contexto moderno, formando assim um híbrido. O efeito poderia ser associado à música polifônica, cuja composição se dá pela sobreposição de várias melodias ou vozes, simultaneamente, seguindo as regras do contraponto, este associado ao ritmo cadenciado dos versos da poesia popular nordestina. A essas vozes, Paul Zumthor (1993, p. 35 - grifo no original) denomina de índices de oralidade, que dizem respeito a "tudo o que, no interior de um texto, informa-nos sobre a intervenção da voz humana em sua publicação.. Ao destacar o termo publicação", o teórico refere-se não somente à impressão do texto, mas também ao ato de divulgá-lo ao público in praesentia. A título de exemplificação, menciona a recorrência dos verbos dizer e ouvir, na forma imperativa (eu quero dizer, eu digo, eu direi, e tantas outras) presentes em grande parte das canções de gesta, das Minnesang⁷ e dos Fabliaux⁸. Essa característica se mantém no folheto nordestino, como se pode observar na última estrofe do Romance do príncipe que veio ao mundo sem ter nascido, de João Martins de Ataíde:

    A glória é para o herói

    Tenho dito a muita gente

    Ai daquele que roubá-la

    Infeliz, louco, indecente

    De toda forma ele perde

    E é do herói somente⁹.

    (ATAÍDE, 1960, p. 33 – grifos nossos)

    A expressão tenho dito corresponde a um dos índices de oralidade. Além disso nota-se também que o conjunto das letras iniciais de cada verso forma o nome de Ataíde em acróstico, recurso utilizado pelos cordelistas

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