Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Pessoas com deficiência mental ou intelectual autoras de ilícito penal e medida de segurança: uma perspectiva a partir do processo estrutural
Pessoas com deficiência mental ou intelectual autoras de ilícito penal e medida de segurança: uma perspectiva a partir do processo estrutural
Pessoas com deficiência mental ou intelectual autoras de ilícito penal e medida de segurança: uma perspectiva a partir do processo estrutural
E-book363 páginas4 horas

Pessoas com deficiência mental ou intelectual autoras de ilícito penal e medida de segurança: uma perspectiva a partir do processo estrutural

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Ao se pautar pelo fundamento da periculosidade para justificar a imposição de medida de segurança às pessoas com deficiência mental ou intelectual autoras de ilícito penal, o Sistema de Justiça Criminal acaba por permitir o aprisionamento delas nos manicômios judiciários. Essa forma de responsabilização penal encontra-se divorciada da perspectiva da reforma psiquiátrica, deixando ainda de reconhecer esses sujeitos como pessoas com deficiência, o que acarreta violações massivas e sistemáticas a direitos fundamentais deles.

A partir da análise empírica do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Barbacena I – Jorge Vaz, constata-se tratar de um problema estrutural, que exige a utilização de ferramentas adequadas que permitam atingir resultados significativos capazes de promover uma transformação social dessa realidade.

Sob a ótica do processo estrutural, propõe uma reforma com medidas pautadas pelo diálogo interinstitucional, como mecanismo capaz de romper com esse estado de coisas e de construir um novo aparato normativo-institucional e dogmático quanto à sistemática estabelecida para responsabilizar penalmente as pessoas com deficiência mental ou intelectual. Nele devem ser assegurados iguais direitos a essas pessoas para o acesso à saúde, reconhecendo-as como sujeitos de direitos, possibilitando assim a construção de uma sociedade isonômica que permita a elas a experiência de uma vida plena.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de nov. de 2023
ISBN9786527004530
Pessoas com deficiência mental ou intelectual autoras de ilícito penal e medida de segurança: uma perspectiva a partir do processo estrutural

Relacionado a Pessoas com deficiência mental ou intelectual autoras de ilícito penal e medida de segurança

Ebooks relacionados

Direito para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Pessoas com deficiência mental ou intelectual autoras de ilícito penal e medida de segurança

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Pessoas com deficiência mental ou intelectual autoras de ilícito penal e medida de segurança - Josilene Nascimento Oliveira

    1

    INTRODUÇÃO

    Em momento ditatorial no Brasil, entre as décadas de 1960 e 1980, pessoas tidas como indesejáveis sociais foram categorizadas como loucas e colocadas em trens com destino ao Hospital Colônia em Barbacena/MG, com a escusa de serem submetidas a um tratamento. Além de terem sido excluídas da sociedade, essas pessoas foram transformadas em objetos no âmbito daquela instituição, cujas práticas acarretaram graves violações de direitos, tendo culminado em um verdadeiro genocídio, com cerca de 60.000 mortos (ARBEX, 2013).

    Trata-se de um caso paradigmático, que refletiu as violências que ocorriam mundialmente no âmbito dos manicômios, legitimadas pela atuação da psiquiatria no âmbito da saúde mental. Isto porque ela construiu conceitos com base no modelo das ciências naturais, em um momento em que este era considerado um saber positivo, neutro e autônomo e, por isso, configurava a expressão da verdade.

    Com base no discurso científico da racionalidade, a psiquiatria caracterizava a loucura como um distúrbio que retira da pessoa a razão, fundado num padrão de normalidade e propunha um sistema terapêutico baseado na hospitalização, cujo tratamento era centralizado na patologia desconsiderando a pessoa em sua singularidade.

    Como resposta a esse cenário e a essa forma desumana de tratamento da saúde mental imposta a essas pessoas, na década de 1960, começou na Inglaterra o movimento da antipsiquiatria. Ele compreendeu que a patologia não ocorre no indivíduo enquanto corpo ou mente doentes, mas sim nas relações estabelecidas com o ambiente social, devendo o tratamento consistir no auxílio à pessoa para vivenciar e superar essa experiência.

    Inspirado na antipsiquiatria, no final da década de 1970, teve início o movimento social da reforma psiquiátrica, que buscou o direito à saúde mental como decorrente da cidadania, da justiça social e dos direitos humanos, impondo a desconstrução de mecanismos pautados pela ideia de separação da pessoa com deficiência mental ou intelectual de sua existência no meio social. Ele tem por objetivo o reconhecimento dessa pessoa como sujeito de direitos e não como paciente-objeto de intervenções médicas psiquiátricas que levam à privação da liberdade, afastando a lógica segregadora e manicomial.

    Visando implementar a reforma psiquiátrica no Brasil, foi publicada a Lei nº 10.216/2001. Ela preconiza que o tratamento da saúde mental deve ser realizado predominantemente em meios abertos, com participação da comunidade e da família e com o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar, a quem cabe, inclusive, a construção de um projeto terapêutico singular para cada usuário do sistema de saúde. A internação passa ser uma medida excepcional e, quando necessária, é realizada em leitos de hospitais gerais.

    No entanto, no âmbito do Sistema de Justiça Criminal ainda não houve a incidência da reforma psiquiátrica. As pessoas com deficiência mental ou intelectual¹ autoras de ilícito penal continuam sofrendo internações de longa permanência em manicômios judiciários² ou em alas de tratamento psiquiátrico, localizadas em penitenciárias³. Essas internações decorrem da forma de responsabilizá-las, no âmbito do sistema de justiça criminal brasileiro, pela prática de um fato definido como crime.

    Tendo como fundamento para a responsabilização penal a periculosidade, baseada na probabilidade de que voltarão a delinquir, essas pessoas, após serem diagnosticadas com transtorno mental e com a capacidade de compreensão da ilicitude do fato por ela praticado ou de se autogovernar de acordo com esse entendimento suprimida ou reduzida, o que é realizado pelo perito psiquiatra, têm imposta uma medida de segurança pelo Poder Judiciário, com a justificativa de oferta de tratamento à saúde mental.

    Essa medida de segurança consiste, regra geral, em internação em manicômios judiciários, instituições vinculadas, no âmbito do Poder Executivo, às Secretarias incumbidas da administração do sistema prisional e não às Secretarias de Saúde, onde são mantidas por prazo indeterminado até que cesse essa periculosidade, o que deverá ser atestado por um perito psiquiatra. Conforme relatório do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN)⁴, de junho de 2022, atualmente existem 27 (vinte e sete) manicômios judiciários em funcionamento no Brasil (BRASIL, 2022b).

    Ocorre que o microssistema jurídico de proteção e promoção da pessoa com deficiência, a partir da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência - Carta de Nova York, cujas diretrizes foram concretizadas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência - Lei nº 13.146/2015, passou a conferir nova abordagem para a deficiência.

    Visando assegurar o exercício de todos os direitos fundamentais desses sujeitos, a deficiência começa a ser entendida como um fenômeno complexo, que não pode ficar adstrita a uma visão médica e individual da pessoa, devendo ser compreendida também como a restrição à participação plena em sociedade acarretada pelas barreiras sociais. Desta forma, é preciso uma intervenção da comunidade, com supressão dessas barreiras, para que todas as pessoas exerçam sua cidadania, participando da vida em sociedade.

    Assim, além da internação nos manicômios judiciários revelar uma violação de direitos fundamentais, que decorre da falta de acesso à saúde integral, as pessoas ali custodiadas não estão sendo consideradas pessoas com deficiência, sendo necessária a análise dessa situação visando resgatar suas existências na sociedade. Há que se considerar também que essa forma de responsabilização estabelecida pelo Direito Penal cronifica a doença, já que uma vez institucionalizadas, são criados obstáculos entre essas pessoas e o mundo externo. Como consequência, quando já não mais tidas como perigosas pelo exame psiquiátrico, surgem graves dificuldades para se operacionalizar as suas desinternações, porque esgaçados quaisquer vínculos familiares ou sociais.

    Essa situação é ainda mais agravada pelo problema do encarceramento em massa existente no sistema prisional que, estatisticamente, torna insignificante o número de pessoas que se encontram em cumprimento de medida de segurança, em comparação com aquelas que estão cumprindo pena, o que contribui para a invisibilidade daquelas. Conforme dados do INFOPEN, de junho de 2022, havia um total de 613.254 (seiscentos e treze mil duzentos e cinquenta e quatro) pessoas em cumprimento de pena privativa de liberdade, enquanto aquelas em cumprimento de medida de segurança totalizavam 2.431 (duas mil, quatrocentos e trinta e uma), sendo 2.008 (duas mil e oito) internadas e 423 (quatrocentos e vinte e três) em tratamento ambulatorial (BRASIL, 2022a). Dessa forma, o número daquelas que estavam em cumprimento de medida de segurança de internação representa apenas 0,39% do total de pessoas em cumprimento de sanção penal no Brasil.

    Esses dados transmitem a falsa e superficial percepção de que não há nenhum problema quanto à medida de segurança e às internações nos manicômios judiciários quando comparados com as penitenciárias, fazendo com que o entrelaçamento entre o Direito e a Psiquiatria subsista no Sistema de Justiça Criminal, silenciando cada vez mais as pessoas com deficiência mental ou intelectual autoras de ilícito penal, que não são consideradas como sujeitos de direitos.

    Embora o Conselho Nacional de Justiça - CNJ, por meio da Resolução nº 487, de 15/02/2023, tenha instituído a política antimanicomial do Poder Judiciário e estabelecido procedimentos e diretrizes para a implementação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – Carta de Nova York e da Lei nº 10.216/2001, no âmbito do processo penal e da execução das medidas de segurança, ainda não é possível dimensionar os impactos e a efetividade das providências nela estabelecidas.

    Revela-se, desse modo, um problema estrutural, que reclama uma reforma capaz de desocultar as pessoas com deficiência mental ou intelectual no sistema de justiça criminal brasileiro e de fazer cessar essas violações sistemáticas a seus direitos, podendo o processo estrutural ser um mecanismo importante para o tratamento adequado dessa questão.

    O processo estrutural é uma nova metodologia de atuação que consiste em promover a solução do problema com foco na reestruturação de uma situação que se encontra em desconformidade para se atingir um estado ideal. Trata-se de um processo que se desdobra em duas fases: na primeira, haverá a constatação do problema, com a fixação de um novo estado de coisas a ser atingido e, na segunda, serão adotadas medidas como mecanismo de transição para que o resultado seja obtido⁵.

    Nesse contexto, o problema a ser respondido pela pesquisa é: a medida de segurança aplicada às pessoas com deficiência mental e intelectual no Sistema de Justiça Criminal no Brasil pode ser transformada por meio do processo estrutural como mecanismo de efetivação de direitos fundamentais?

    O objetivo geral do presente estudo é investigar o problema estrutural consubstanciado na aplicação e na execução da medida de segurança e o processo estrutural como meio de atendimento ao direito fundamental à saúde das pessoas com deficiência mental ou intelectual custodiadas em manicômios judiciários a partir do estudo empírico do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Barbacena I – Jorge Vaz, que ocorreu com a análise documental do relatório Em nome da loucura, elaborado pelo Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário – PAI-PJ.

    Para atender o objetivo geral, por meio do método dedutivo, a pesquisa demonstra, em primeiro lugar, a forma como ocorre a aplicação e a execução da medida de segurança no Sistema de Justiça Criminal Brasileiro. É realizada uma análise sobre o discurso jurídico das medidas de segurança e o reconhecimento das pessoas com deficiência mental ou intelectual sob a perspectiva dos direitos fundamentais.

    Em seguida, utilizando o método estudo de caso, por meio da análise documental do relatório Em nome da loucura, com abordagem quanti-qualitativa, busca constatar a existência de um problema estrutural nessa sistemática, a partir do estudo empírico do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Barbacena I – Jorge Vaz. Por fim, verifica se o processo estrutural é uma via adequada para promover a transformação social e possibilitar o acesso à saúde que se demandam no contexto de aplicação das medidas de segurança no Sistema de Justiça Criminal Brasileiro.

    Partindo da compreensão de que o direito é um sistema aberto a novas formas de justiça, a partir da visão de que a sociedade é plural, onde a diversidade é forma de realização do direito com superação do antagonismo entre igualdade e diferença, é preciso repensar um novo aparato normativo-institucional e dogmático quanto à sistemática estabelecida para responsabilizar penalmente a pessoa com deficiência mental ou intelectual. Somente assegurados iguais direitos a esses invisibilizados, possibilitando seu desocultamento e o seu reconhecimento como sujeitos de direitos, é que será possível construir uma sociedade isonômica que permita a eles a experiência de uma vida plena.


    1 Utiliza-se a nomenclatura pessoa com deficiência mental ou intelectual por ela se enquadrar no paradigma promocional da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Carta Nova York) - CDPD, de 13/12/2006, ratificada no Brasil pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 186, de 09/07/2008 e promulgada pelo Decreto nº 6949, de 25/08/2009, quando iniciou sua vigência no plano jurídico interno, bem como em conformidade com a Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência - EPD). Acredita-se que as palavras carregam significado e provocam reações sociais, de forma que, ao escrever ou falar sobre uma pessoa, deve haver preocupação e cuidado com a escolha da terminologia adotada, a fim de não reforçar estigmas. Historicamente, vários termos foram adotados para se referir à pessoa com deficiência mental ou intelectual como pessoa portadora de transtorno mental pessoa portadora de necessidades especiais e pessoa portadora de deficiência, a exemplo da Lei nº 10.216/2001, da Resolução nº 5, de 04/05/2004 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, dos Decretos Federais nºs 5.296, de 02/12/2004 e 3.298, de 20/12/1999. Entende-se, todavia, que esses termos são estigmatizantes e excludentes, porque a deficiência passa a ser uma característica principal em detrimento da condição da pessoa, que é deslocada para o âmbito de tutela, o que não é compatível com um modelo inclusivo, que visa a promoção de igualdade.

    2 Será adotada a terminologia manicômio judiciário para se referir à instituição onde são cumpridas as medidas de segurança, haja vista que, embora a reforma realizada no Código Penal pela Lei nº 7.209/1984 tenha modificado essa nomenclatura, como forma simbólica de humanizar a linguagem, passando a denominá-lo de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, não houve nenhum efeito prático nessa modificação, sendo mantido seu caráter violento, asilar, segregador e estigmatizante. Nesse sentido, ver a obra A (Des)Legitimação das Medidas de Segurança no Brasil. (CASTELO BRANCO, 2019, p. 139).

    3 Será usada apenas a nomenclatura manicômios judiciários, já que as Alas de Tratamento Psiquiátrico são baseadas na mesma lógica e sistemática deles.

    4 O Infopen é um sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro organizado pelo Ministério da Justiça. O sistema, atualizado pelos gestores dos estabelecimentos desde 2004, sintetiza informações sobre os estabelecimentos penais e a população prisional. Para mais informações ver o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (BRASIL, 2014b).

    5 Nesse estudo, por quaisquer das perspectivas do processo estrutural adotadas por diversos autores que serão exemplificados e esclarecidos no decorrer do trabalho, é possível analisá-lo enquanto mecanismo para transformação da medida de segurança no sistema de justiça criminal brasileiro. Contudo, como a abordagem parte do problema estrutural, cuja ideia se originou dos autores Fredie Didier Júnior, Hermes Zaneti Júnior e Rafael Alexandria de Oliveira (2020), a pesquisa será guiada pelo conceito de processo estrutural por eles estabelecido.

    2 A MEDIDA DE SEGURANÇA NO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRO

    O sistema de justiça criminal brasileiro reconhece a medida de segurança como uma resposta estatal⁶ aplicada pelo juiz e dirigida à pessoa que praticou um ilícito penal, mas que, em razão de transtorno mental⁷, possui a capacidade de compreensão da ilicitude do fato ou de se autogovernar de acordo com esse entendimento suprimida ou reduzida⁸.

    Em razão disso, ela é isenta de pena, mas terá imposta uma medida de segurança que, regra geral, consiste em internação em manicômios judiciários.

    Assim, pretende-se neste capítulo analisar de forma crítica a regulamentação da medida de segurança, buscando compreender esse sistema de responsabilidade penal e seu fundamento, o devido processo que julga a pessoa com deficiência mental ou intelectual autora de ilícito penal, a sistemática de aplicação e execução dessa espécie de sanção penal, bem como o infrator inimputável ou semi-imputável no sistema de justiça criminal como uma pessoa com deficiência. Essa análise se revela necessária para compreender os mecanismos que sustentam essa legalidade e os motivos pelos quais o saber psiquiátrico configura dispositivo fundamental, que acaba por aprisionar a pessoa com deficiência mental ou intelectual nos manicômios judiciários.

    2.1 O SISTEMA DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA MENTAL OU INTELECTUAL NO BRASIL E A PERICULOSIDADE COMO FUNDAMENTO DA MEDIDA DE SEGURANÇA

    A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) estabelece diferentes formas de responsabilização em decorrência do cometimento de condutas criminosas, que são norteadas por dois princípios centrais, que visam assegurar os direitos fundamentais: o da legalidade e o da pessoalidade (WEIGERT, 2017, p. 70).

    Prevista no art. 5º, inciso XXXIX, CRFB/88, a legalidade estabelece que a lei deve definir o que é crime e estabelecer a pena de forma prévia ao fato cuja punição é pretendida. A pessoalidade (artigo 5º, inciso XLV, CRFB/88) limita a responsabilidade penal à pessoa do condenado, ou seja, àquele que tiver contribuído para realização de uma conduta omissiva ou comissiva, prevista na lei como infração penal, dolosa ou culposa (artigo 18 do Código Penal), que tenha acarretado um resultado ilícito (artigo 13 do Código Penal).

    Como consequência do cometimento de um crime que foi previamente definido em lei, a pena deve ser compreendida como a perda ou a restrição ao exercício de direitos, a qual será imposta pelo juiz a um sujeito que tenha imputabilidade. Segundo Santos (2014, p. 686), essa imputabilidade é um atributo jurídico que indica se o agente é capaz de compreender a natureza ilícita de certas condutas e controlar o seu comportamento conforme essa compreensão.

    Para a definição dessa imputabilidade no Direito Penal, o ordenamento jurídico brasileiro estabeleceu dois critérios como parâmetros normativos: a) o etário - consistente na idade de 18 (dezoito) anos, já que antes disso o agente é considerado inimputável (artigos 228 CRFB/88 e 27 do Código Penal – CP)⁹ e estará sujeito às medidas de proteção previstas no artigo 101 da Lei nº 8069/90, se menor de 12 (doze) anos e às medidas socioeducativas, estabelecidas no artigo 112 do mesmo diploma normativo, se maiores de 12 (doze) anos e menores de 18 (dezoito) anos; e b) o biopsicológico – inexistência de transtorno mental que impeça ou reduza a capacidade de compreender a ilicitude de seu comportamento e de orientar em conformidade com a norma jurídico penal.

    Quanto ao critério biopsicológico, Queiroz alerta para a impropriedade desta nomenclatura, esclarecendo que:

    [...] em realidade nem o estado é biológico – se em alguns casos o fato está biologicamente fundamentado – nem a capacidade é psicológica – mas uma construção normativa, de sorte que se trata, mais exatamente, de um método psíquico-normativo ou psicológico-normativo: o psicológico se refere aos estados psíquicos capazes de comprometer a capacidade de compreensão, enquanto o normativo diz respeito à capacidade, que não é um estado psíquico, mas uma atribuição. (QUEIROZ, 2008, p. 293).

    Assim, a contrario sensu, o agente será considerado inimputável se for maior de 18 (dezoito) anos e, em razão de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado for, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento¹⁰. Nesta circunstância, o agente será isento de pena, estando sujeito a uma medida de segurança que visa, além de evitar novas infrações penais, tratar o transtorno mental.

    Para a identificação dessa inimputabilidade têm-se duas referências: a higidez mental e o desenvolvimento mental e elas significam [...] o atingimento ou não da capacidade racional-prática de converter razões em ações, no universo valorativo e simbólico social-jurídico (COSTA, 2021, p. 404-405).

    Entre o imputável e o inimputável, em uma categoria intermediária, existe ainda a previsão legal do semi-imputável (artigo 26, parágrafo único do CP), que é aquele que, no momento em que realiza o injusto penal, não era totalmente capaz de compreender a ilicitude do fato ou de se autogovernar conforme esse entendimento, em razão de perturbação de saúde mental, ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado¹¹.

    Essa escolha política-criminal, que resultou nessa classificação dos infratores e foi posteriormente legitimada pela dogmática penal, foi uma opção de dividir o sistema de responsabilidade criminal com dois fundamentos diferentes – a culpabilidade e a periculosidade (CARVALHO; WEIGERT, 2013, p. 57).

    Deste modo, a resposta do Estado a condutas descritas em lei como infração penal aos maiores de 18 (dezoito) anos será realizada por meio da imposição de uma pena, se o agente possuir capacidade para compreender as consequências de sua conduta e, com base nela, escolher livremente o cometimento do ilícito. Em contrapartida, se inimputável, por ser essa uma causa de exclusão da culpabilidade¹², porque ele não tem capacidade de autodeterminar-se ou de compreender o caráter ilícito do fato, em razão de transtorno mental, não poderá ser aplicada a pena, devendo ser aplicada a medida de segurança.

    Conforme já abordado, o fundamento da medida de segurança é a periculosidade, que é um conceito que surgiu no final do século XIX na Escola Positivista do Direito Penal (MECLER, 2010, p. 75)¹³. Ele deve ser compreendido como a probabilidade de a pessoa com transtorno mental voltar a cometer novos injustos penais, já que seria movida por certos apetites e impulsos (FERRARI, 2011, p. 157).

    Esse juízo de prognose de que o estado psíquico do agente revela uma provável causa de cometimento de novos crimes leva à conclusão de que ele representa um risco para si e para a sociedade, por ser [...] a periculosidade entendida no discurso jurídico como um estado ou um atributo natural do sujeito – o indivíduo carrega consigo uma potência delitiva que a qualquer momento pode se concretizar num ato lesivo contra si ou contra terceiros (CARVALHO; WEIGERT, 2013, p. 58-59). Segundo Foucault:

    A grande noção da criminologia e da penalidade em fins do século XIX foi a escandalosa noção, em termos de teoria penal, de periculosidade. A noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam. (FOUCAULT, 2005, p. 85).

    Verifica-se assim que a pessoa com deficiência mental ou intelectual que praticou um ilícito penal não é tratada pelo Estado como aquela que, em razão de seu transtorno mental, é um doente a quem deve ser dispensado um tratamento, mas como uma pessoa perigosa. E não é perigosa pela conduta praticada, ao deixar de observar as normas jurídicas, violando o pacto social, mas é perigosa pelo que seu comportamento revela: a sua essência e a sua forma de ser.

    Acerca da constatação dessa periculosidade, Valença et al. pontuam que:

    [...] a avaliação desses aspectos envolve o estudo cuidadoso dos autos do processo, de antecedentes pessoais, familiares e psicossociais do periciando, além do exame psicopatalógico. Este último implica o conhecimento da psicopatologia e exploração minuciosa de todas as funções psíquicas do indivíduo durante a entrevista psiquiátrica, como consciência, juízo da realidade, sensório-percepção, inteligência, afetividade e vontade. (VALENÇA et al., 2005, p. 252).

    Logo, o fundamento da periculosidade não está relacionado ao ilícito penal cometido, mas resulta da análise das condições psíquicas inerentes ao sujeito que o praticou, sendo o comportamento delituoso um sintoma de uma personalidade perigosa que deve ser corrigida. Essa sistemática consagra um Direito Penal do autor, que consiste na punição da pessoa pelo ato praticado enquanto manifestação de quem ela é e não o comportamento em si como um resultado lesivo acarretado, o que é incompatível com o Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, destacam Batista et al.:

    [...] o discurso do direito penal de autor propõe aos operadores jurídicos a negação de sua própria condição de pessoas. Em um caso, propõe-se-lhes sua autopercepção como procuradores de uma onipotência que intervém nas decisões existenciais das pessoas; em outro, como pequena peça destinada a eliminar falhas perigosas de um mecanismo maior. [...] Em sua total coerência, o direito penal de autor parece o produto de um crítico desequilíbrio deteriorante da dignidade humana daqueles que o sofrem e o praticam. (BATISTA et al., 2003, p. 131-133).

    Essa periculosidade é presumida pela lei quando se trata de agente inimputável, já que determina a obrigatoriedade de aplicação da medida de segurança, pressupondo que ele seja dotado de potencialidade criminosa, por não ter condições de entender o caráter ilícito do fato ou de se posicionar conforme esse entendimento, por estar, no momento da ação, acometido por um transtorno mental. No entanto, se o agente for considerado semi-imputável, a periculosidade deverá ser investigada pelo juiz, porque é por meio da análise do caso concreto, ao proferir a sentença, é que ele optará pela pena ou pela substituição desta por medida de segurança.

    O mecanismo que a legislação estabeleceu para avaliar a imputabilidade do infrator, quando houver dúvidas acerca do seu estado de saúde mental e, por conseguinte, adotar um sistema de responsabilização dentre os estabelecidos pelo Código Penal, é o incidente de insanidade mental, que está previsto nos artigos 149 e seguintes do Código de Processo Penal – CPP.

    Por meio dele, o juiz determinará que o infrator seja submetido a um exame médico legal, que é uma perícia psiquiátrica, partindo do pressuposto de que apenas o psiquiatra detém o conhecimento técnico-científico para avaliar a imputabilidade do indivíduo.

    Após a realização do referido exame, caberá ao psiquiatra emitir um laudo pericial, que deverá apontar a existência e o tipo de patologia, o grau de periculosidade, bem como concluir acerca da capacidade psíquica do sujeito de entender a antijuridicidade de sua conduta e de adequá-la à sua compreensão, no momento da prática do fato definido como crime, indicando a resposta estatal mais adequada (BRAVO, 2007, p. 34).

    Weigert destaca que, quando a psiquiatria se apropria do conceito jurídico de

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1