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Quais artistas visuais nos museus?: o avanço das artistas mulheres no acervo do MASP
Quais artistas visuais nos museus?: o avanço das artistas mulheres no acervo do MASP
Quais artistas visuais nos museus?: o avanço das artistas mulheres no acervo do MASP
E-book500 páginas5 horas

Quais artistas visuais nos museus?: o avanço das artistas mulheres no acervo do MASP

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Sobre este e-book

Neste livro, Marla Prado nos convida a refletir sobre como a desigualdade de gênero é reproduzida na configuração dos acervos e coleções de arte em museus. Um tema que é pauta de luta das mulheres há décadas na militância feminista, na produção artística e na crítica historiográfica, mas que apenas recentemente tem encontrado ressonância na produção cultural dos museus.

A autora segue a linha gramsciana, e demonstra que nessas décadas de luta se produziu conhecimentos e estratégias de mudanças, como produções orgânicas para criar, junto à sociedade, a consciência correspondente aos interesses da classe que representam. Assim, questionando o cânone artístico e investigando a incorporação de códigos e valores da experiência das mulheres nas artes, com efeitos nas representações artísticas, são forçados os limites de ingresso nesse campo, considerando os museus como agências de legitimação.

Na chave pós estruturalista, Marla Prado apresenta como as mulheres são sujeitos ativos na construção das estruturas sociais, e como elas forçam os limites da História da Arte e dos museus. Deste modo, suas lutas são incorporadas à produção das artistas, aos estudos críticos da arte e à Museologia Crítica, com demandas propositivas por igualdade e justiça social.

O estudo de caso sobre o MASP é situado como parte das mudanças propostas na luta das mulheres, uma parcela da conquista buscada, e que para existir parte dos conhecimentos e estratégias orgânicas, experimentais nos museus, mas que rompem com o tradicional e de fato contribuem para uma mudança estrutural mais ampla.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de jan. de 2024
ISBN9786525263700
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    Quais artistas visuais nos museus? - Marla Prado

    CAPÍTULO 1: A MULHER E O ESPAÇO SOCIAL DA ARTE

    1.1. A MULHER E O ESPAÇO SOCIAL DA ARTE

    É preciso evidenciar distinções sociais nos espaços institucionais da arte. Este é um assunto recente no Brasil, tanto na discussão de gênero quanto no debate étnico-racial e socioeconômico. Tratando-se de artistas mulheres em museus, o evidenciar a distinção de gênero serve à denúncia de uma situação persistente e ao investimento em mudança. Assim, especialmente nos últimos anos, notamos no Brasil o aumento de exposições focadas em artistas mulheres. As instituições olham para si e buscam reunir a pequena parcela que possuem de arte produzida por mulheres, contextualizando as produções com os conteúdos que as reforcem, chancelando suas exposições com palavras como elas, pioneiras, muitas, em seus títulos. Contudo, a disposição para existência de obras de arte de autoria de mulheres nos museus não é dada pela quantidade, ou pela qualidade dessas obras na sociedade, ou em relação às produzidas por homens.

    O espaço social da arte se construiu em parâmetros social e historicamente compartilhados, numa tessitura que legitima o poder ao homem branco e heterossexual, e tão logo, suas representações do Outro e do mundo. Assim, o gênio é historicamente situado na crença de um saber inato, em inspiração etérea, e associado a posturas cuja excepcionalidade só se configura como adjetivo masculino. Crenças naturalizadas por tanto tempo que ainda ressoam com valor de verdade na atualidade.

    Os Museus de arte estão ligados à construção da História da Arte. Neste sentido, para ilustrar nosso ponto, tomamos por benefício um paralelo com uma pesquisa recente⁸ que avaliou a representação de artistas em onze livros⁹ utilizados em cursos de graduação em Artes Visuais no Brasil. Na pesquisa constatou-se que do total de 2.443 artistas citados, 645 (26,3%) são não europeus, e dentre eles, apenas 246 são não-estadunidenses. Do total, apenas 215 (8,8%) são mulheres, e dessas apenas 2 (0,08%) são negras; sendo que, do total, apenas 22 artistas (0,9%) são negras e negros. Em relação às técnicas utilizadas, 1.566 são pintores. Sendo que, entre os 2.443 artistas, mais de 1000 nasceram no século XX e aproximadamente 900 no século XIX. Então, precisamos olhar para a História da Arte como uma disciplina cientifica, mas não como verdade. As ciências também são construções históricas e sociais, a produção de conhecimento não se esgota, e os museus estão particularmente relacionados ao desenvolvimento das ciências modernas.

    A desigualdade de gênero nos espaços institucionais da arte é reflexo do modo não equitativo como, social e historicamente, produzimos e reproduzimos seus efeitos na cultura. Empenham poder neste sistema as instituições ligadas à formação de artistas e à consagração de sua atividade (...), tais como a crítica de arte, a imprensa, o mercado e, finalmente, os espaços expositivos e os museus (SIMIONI, 2011, p. 376). Contudo, os acervos de museus são construções perenes, e ainda que possamos reconhecer neles a matriz androcêntrica que funda a História da Arte, os reflexos de uma mudança de paradigma só se fariam visíveis no longo prazo.

    Mudanças de paradigma no universo dos museus partem de demandas sociais, e estas são organizadas, sistematizadas ou propostas por instâncias de diferentes ordens. Podendo ser endógenas deste universo, revisando as lógicas do sistema que o alimenta, mas também, podem vir da não identificação de grupos sociais que o reivindicam como espaço identitário e de afirmação, ao invés de negação e imposição. É o caso da relação entre os movimentos feministas na arte, que revisam as lógicas da história da arte e encontram nos museus uma agência capaz de mobilizar a legitimidade artística. Portanto, organizamos este texto de modo a apresentar como, a partir de contextos específicos, essas demandas foram formuladas e como foram articuladas em um processo gerador, com efeitos no campo artístico, na vida social e para os museus. Assim, trataremos de feminismo e ativismo político, e falaremos das investigações feministas sobre a história da arte e de como as pesquisas atuais tratam artistas mulheres invisibilizadas. Também, apresentaremos um pouco dos contornos que assume a arte feminista na América Latina. E, por fim, como a Museologia tem se posicionado em relação às artistas.

    1.2. FEMINISMO E ATIVISMO POLÍTICO NAS ARTES

    O debate sobre gênero nos acervos de museus foi propiciado pelas investigações feministas, em que, no longo processo de reconhecimento de pautas e diferenciações nas causas das mulheres, a questão da representação feminina nas esferas de comando foi levantada e, em simultâneo, refutou-se as formas como a mulher estava sendo representada, imagética e simbolicamente, pelo homem.

    Em 1949, Simone de Beauvoir formulou uma pergunta que levaria décadas para ser respondida: Mas é suficiente mudar as leis, as instituições, os costumes, a opinião pública e toda a estrutura social para que mulheres e homens se convertam em semelhantes? (BEAUVOIR,1980, II, p. 511). Um grande sim, e um entretanto..., foram resultados da crescente consciencialização e problematização do desejo de real paridade, ou antes, e afirmativamente, do desejo de respeito às diferenças.

    O feminismo atua numa parcela da luta pelos direitos humanos. Um impulso para esse tipo de reflexão pode ser situado no período culturalmente identificado como pós-modernidade e economicamente como capitalismo tardio, tendo como marco a revolução cultural protagonizada pelos estudantes do Maio de 1968, quando através da reunião de mulheres do mundo acadêmico, especialmente, trabalhou-se em questões latentes e buscou-se o reposicionamento e reconstrução da condição feminina. Mas a experiência deste momento não foi percebida do mesmo modo em todo o globo, mesmo que o feminismo inicialmente busque uma universalização de sua principal pauta: a paridade em relação ao homem e a revisão dos códigos patriarcais (em que, entre outras coisas, a violência sofrida pelas mulheres é naturalizada), em cada contexto sua permeabilidade, força e efeito foram diferentes. No contexto latino-americano, sob regimes ditatoriais de caráter militar, os movimentos sociais eram associados a ameaça comunista, em que a Revolução Cubana, ao guardar semelhanças com os contextos coloniais e forjados pela escravidão vividos nessas terras, parecia um ultimato. Não logicamente, as manifestações por igualdade, como reflexão social da esquerda, eram minadas antes que pudessem surgir. Então, apresentaremos primeiro o desenvolvimento da reflexão sobre a condição feminina onde foi possível haver tal expressão.

    Nos Estados Unidos, o Movimento de Libertação das Mulheres desvelou a invisibilidade e limitações impostas às mulheres. No final dos anos de 1960, o impacto do estruturalismo na França serviu de mote para as norte-americanas, que, embora sob o véu da guerra fria e com a esterilização da tradição marxista, ainda assim podiam experimentalmente desenvolver teorias no meio acadêmico das artes visuais, o que gerou as condições que estabeleceram a reciprocidade crítica com a teoria europeia. Tendo as feministas anglo-saxãs (tanto dos EUA, como da Grã-Bretanha) desenvolvido as formas e fórmulas teóricas mais radicais, o que frequentemente é reduzido ou confundido com o essencialismo de gênero.

    O trabalho feminista que permitiu pensar a representação das mulheres e as formas como são representadas nas artes, partiu também das artistas. Assim, a artista ativista assume papel de testemunha ativa diante dos conflitos gerados pelo sistema e, através das linguagens artísticas, aponta o processo crítico das representações sociais e seus estereótipos. De maneira híbrida, o movimento feminista na arte catalisou impulsos estéticos e sociopolíticos e interveio nas esferas da arte e da organização social, desafiando-se a borrar as fronteiras e hierarquias culturais enquanto estruturas de poder ligadas a tradição. Como ativistas, as artistas quebraram padrões, especialmente na relação obra – público – espaço, incorporando estratégias de mobilização fora dos espaços institucionais consagrados (como os museus), ou com a crítica de tais espaços, experimentando novas linguagens e a aplicação de técnicas não convencionais, e abdicando da individualização do processo artístico, que poderia ser coletivo ou até anônimo. A partir do sistema das artes as artistas feministas concebem suas obras como manifestações políticas, uma desobediência criativa que constrói novas e mais felizes formas visuais de identificação.

    1.3. MOVIMENTO FEMINISTA E HISTÓRIA DA ARTE

    O movimento feminista pode ser entendido em ondas, pois não é contínuo, nem, tão pouco, pode-se dizer que seja progressivo. É diverso e, nesta diversidade, teve os momentos de luta e de arrefecimento, sendo que cada onda é definida por um certo conjunto de pautas comuns. A cada retomada do movimento feminista, novas e antigas pautas aparecem.

    O cerne da primeira onda foi na Europa, no final do século XIX e início do século XX, quando mulheres de diferentes estratos sociais coordenaram estratégias de militância social em ações de grande impacto, que iam da panfletagem e manifestação de rua a incêndios de edifícios e bens públicos. Conforme Joana Maria Pedro:

    O feminismo de ‘primeira onda’ teria se desenvolvido no final do século XIX e centrado na reivindicação dos direitos políticos – como o de votar e ser eleita –, nos direitos sociais e econômicos – como o de trabalho remunerado, estudo, propriedade, herança. (PEDRO, 2005, p. 79).

    O foco estava nos direitos fundamentais, a representação nas esferas da cultura ainda não estava em questão como pauta do movimento coletivo, mesmo que individualmente pudesse preocupar as artistas do período. Ocorria, no entanto, a percepção da arte enquanto traço do poder masculino. Assim, em campanhas pelo direito ao voto na Inglaterra, um grupo de suffragettes¹⁰ empreenderam assaltos iconoclastas¹¹ a museus e galerias de arte como forma de protesto, tendo como alvo pinturas de nu feminino e retratos de personalidades masculinas. Como ataque de 10 de março de 1914, na National Gallery de Londres, quando Mary Richardson¹² feriu a obra de Diego Velázquez a golpes de cutelo (Figs. 1 e 2).

    O pintor espanhol Diego Velázquez foi conhecido e aclamado em vida, apresentar em Londres uma obra do pintor era algo significativo, representava poder. O nu feminino não marcava apenas um gosto masculino, aquela representação era bem aceita por apresentar um corpo idealizado e uma alegoria, hipocritamente, até a Modernidade não se pintava mulheres, pintava-se vênus e deusas, e como reflexo disso, o corpo da mulher era fortemente tangenciado¹³. Então, como nas palavras de Mary Richardson, a justiça e a representação da beleza feminina serviam ao luxo e poder masculinos. Antagonicamente, a representação de poder nas obras em museus e galerias foi percebida pelas sufragistas como uma vulnerabilidade, — elas perceberam a permanência da orientação masculina estampada nos sóbrios retratos e viris bustos esculpidos, no gosto por telas com jovens nuas compondo alegorias em paisagens oníricas.

    Resultado de imagem para venus de velázquez

    Figura 1: Diego Velázquez. La venus del espejo,1647-1651. (obra restaurada)

    https://4.bp.blogspot.com/-T6wmwDZm_gA/WB522z2kx4I/AAAAAAAADKU/JQJOR38xXs8l8m_6yiiv3SPgRFeKpxRLwCLcB/s1600/Richardson-Venus.png

    Figura 2: Detalhe da obra ferida (La venus del espejo, de Diego Velázquez)

    Apesar disso, somente com os direitos fundamentais minimamente constituídos é que poderia se concatenar as lutas por equiparação nas esferas culturais como movimento coletivo. Décadas depois, na segunda onda do movimento feminista, é que a participação da mulher nas artes foi examinada coletivamente, o que abarcou também as construções histórico-culturais de padrões de beleza e comportamento para as mulheres.

    Nas décadas de 1960 e 1970, ampliou-se os horizontes do pluralismo nas práticas artísticas. Naquele contexto, a oposição silenciosa à participação de mulheres e grupos minorizados no universo dessas práticas foi percebida, também, na corrente dos fecundos e ressignificantes movimentos da ordem dos direitos culturais, civis e da melhoria da qualidade de vida, trazendo visibilidade e reflexão sobre questões étnicas, de gênero, da orientação sexual, do meio ambiente e da paz. Então, as discussões feministas desse período, em consonância com a nova esquerda e a revisão dos modelos socioculturais, partilhavam de uma visão da esfera política que (...) priorizava a ação fora dos contextos institucionais estabelecidos (ADELMAN, et alii, 2010, p. 33). Assim, as artistas confrontaram a tradição existente, propondo novos temas e novas linguagens artísticas, impondo críticas institucionais e problematizando quatro lugares distintos, porém fortemente ligados: a ciência, o museu, o espaço doméstico e o corpo.

    Deste modo, a segunda onda do movimento feminista teve início em meados do século XX, principalmente pela repercussão dos trabalhos de teóricas como Simone de Beauvoir, que em 1949 lançou o livro O segundo sexo, um marco e uma referência válida até os dias atuais. Nele a autora dialoga com escritores renomados, como Stendhal e D. H. Lawrence, rebatendo mitos sobre a mulher, criados através da biologia, da psicanálise, e do materialismo histórico, e demonstra como as ciências foram agenciadas na constituição da mulher como o Outro. Beauvoir avalia a questão feminina nos papéis sociais da mulher jovem, idosa, lésbica, mãe, prostituta, etc.; apontando, entre convergências e diferenças, e entre outras coisas, como as noções de privilégio feminino mascaram situações de opressão.

    Tratando-se da crítica institucional realizada pelo movimento feminista na arte, no contexto revolucionário dos anos de 1970, são publicados dois importantes artigos: Por que não houve grandes artistas mulheres?¹⁴ (2016 [1971]), de Linda Nochlin; e A mulher como artista¹⁵ (2018 [1971]), de Judy Chicago. Em ambos é sensível o momento de transição da arte moderna para a contemporânea, mesmo que nenhuma das autoras abordem o tema. Ambas puderam se beneficiar da teoria feminista que já vinha se desenvolvendo desde meados do século XX, e percebiam a não equidade de gênero no sistema das artes, relacionada ao peso da cultura e das instituições vigentes, o peso de valores historicamente construídos e naturalizados que prendem a mulher ao doméstico, ao natural, a posição de Outro. Contudo, cada uma apresenta uma perspectiva diferente sobre o tema.

    Um ponto-chave para o movimento feminista na arte (na construção teórica e, na prática de um ativismo artístico) foi a desmistificação da produção de arte como expressão individual de um gênio, do artista deslocado trabalhando em obras-primas. Para, deste modo, desafiar os (..) valores masculinistas de uma história de arte heróica que transcorreu sendo produzida por homens e tão poderosamente foi transformando a imagem da mulher em posse e consumo (CHADWICK, 1997, p. 8. Livre tradução nossa¹⁶). Então, o perfil do artista genial foi bem estudado pelas pesquisadoras feministas. Verificou-se uma construção de narrativas em torno da biografia desses artistas, nelas aspectos como prodigalidade, individualidade, transgressão e transcendentalidade eram valorizados e associados à virilidade, ao gozo da prerrogativa masculina. Comparativamente, para as mulheres do passado havia várias condicionantes que limitavam o comportamento, considerando especialmente o casamento e a maternidade compulsória, para elas a assistência à família foi uma função de dedicação em tempo integral. Por muitos anos a mulher foi cerceada das atividades profissionais, de muitas das atividades recreativas, da boêmia, e sobretudo da liberdade afetiva e sexual. Os aspectos da liberdade, que caracterizam a personalidade genial, não poderiam ser desfrutados pela mulher sem implicar em prejuízo social e moral. O que não significa que não havia mulheres produzindo obras de arte com qualidade artística, mas que sob os códigos de valor masculinos, tais artistas não seriam grandiosas e suas obras não seriam dignas do vulgo de obras-primas.

    Para Nochlin a questão é cultural, o título de seu texto já é capcioso, e ela reconhece, afinal a pergunta poderia ser interpretada como: se as mulheres são iguais aos homens em capacidade, por que elas não têm produzido arte à altura das obras produzidas por homens?. Uma interpretação tendenciosa que, na verdade, estaria questionando a igualdade biológica entre mulher e homem. Não é este o sentido dado por Nochlin, mesmo ela própria sendo severa e polêmica para o movimento feminista:

    Na realidade, nunca houve grandes mulheres artistas, até onde sabemos, apesar de haver algumas interessantes e muito boas que ainda não foram suficientemente investigadas ou apreciadas, como não houve também nenhum grande pianista de jazz lituano ou um grande tenista esquimó, e não importa o quanto queríamos que tivesse existido. (NOCHLIN, 2016 [1971], pp. 7-8).

    A autora ainda recomenda evitar a armadilha de resgatar as mulheres artistas relegadas da história da arte para mostrar como se igualam aos grandes mestres e não foram suficientemente reconhecidas. E que, muito menos, se deva buscar uma arte ou estilo próprios à mulher artista, o que flertaria com mais uma essencialização do feminino. Para ela o problema reside no juízo do que seja a arte e nas dinâmicas das estruturas institucionais que a mantêm. Nochlin propõe uma revisão crítica da própria noção de cânone, entendendo ser preciso desvelar as relações de poder e dominância que, ao formular os sistemas canônicos, criam a falsa objetividade e os valores que regem a produção artística.

    Já Judy Chicago (2018 [1971]), escreve sobre o romper com amarras culturais partindo de sua própria experiência como artista e situando-se junto às suas contemporâneas. Ela aponta fatores culturais, como o policiamento da agressividade e a supressão de desejos e ambições na mulher, que historicamente sacrifica sua agressividade e ambições em benefício do atendimento aos padrões de comportamento e a satisfação de sua família. A família é forjada como o espaço de realização pessoal da mulher. Além disso, ela exemplifica colocando o fazer de uma mulher artista em relação ao fazer artístico de seu irmão, o homem poderia participar da construção da história da arte (isso nos moldes escolásticos europeus vigentes até então) se posicionando em relação à produção daqueles homens que vieram antes dele. Assim, defende que a mulher artista precisaria criar um estilo de arte e referências para as artistas do futuro, mas isso não seria possível se a artista insistisse em se colocar no devir histórico da arte feita por homens: As mulheres artistas, em sua maioria, são flagradas em algum ponto entre a identidade masculina, entre a adaptação de valores masculinos e a luta para descobrir seus próprios valores. (CHICAGO, 2018 [1971], p. 40).

    Além dessas publicações, consideramos mais duas, dois livros que vieram alguns anos depois. O primeiro: "The Obstacle Race: The Fortunes of Women Painters and Their Work [A Corrida de Obstáculos: A Fortuna das Mulheres Pintoras e Seu Trabalho], é de 1979, e foi escrito pela pesquisadora australiana Germaine Greer. O segundo, e muitíssimo importante: Old mistresses: Women, Artists and Ideology" [Velhas mestras/ Antigas amantes: Mulher, arte e ideologia], de 1981, foi escrito pelas inglesas Griselda Pollock e Rozsika Parker.

    O livro de Germaine Greer é organizado em duas partes, na primeira ela discute sete obstáculos enfrentados pelas mulheres artistas (até o século XIX), e na segunda, ela apresenta algumas formas de superação desses obstáculos. A primeira parte nos é mais interessante, pois notamos a permanência deles, mesmo com as muitas mudanças socioculturais. Assim: 1º - a família, que apoiava o aprendizado das belas-artes, que acrescenta qualidades a formação e ao dote da mulher, mas rechaçava que a atividade fosse desenvolvida profissional ou publicamente; 2º - o amor, pois quando a mulher vence a família, ao se casar encontra um novo obstáculo e lhe é solicitada a dedicação exclusiva ao marido, aos filhos e ao lar, mesmo quando o marido também é artista; 3° - a ilusão de sucesso, quando os elogios de pessoas próximas são suficientes, a mulher agrada à família e vizinhos e se realiza com isso, não busca testar suas obras no meio profissional; 4º - a humilhação pelos pares e pela crítica, isso foi muito comum e muitas artistas que venceram os obstáculos anteriores encontraram esse, foi o caso, por exemplo, de Camíle Claudel, que teve obras criticadas publicamente por críticos homens, e inclusive por Auguste Rodin, o preconceito e a crítica humilhante dificulta a carreira das artistas, afetando até no acesso delas a materiais mais nobres, ou em maior quantidade; 5° - a pequena escala dos trabalhos femininos, sem apoio, frequentemente as mulheres não possuíam espaços de trabalho, produziam no âmbito doméstico e com os materiais mais acessíveis, então, também produziam obras em escalas menores, o que, no século XIX, era determinante; 6° - a associação ao primitivismo, sem formação formal e com acesso limitado a técnicas e materiais, a produção das mulheres é associada ao primitivismo, uma definição preconceituosa, considerada ingênua e próxima à arte popular; e, por fim, o 7º - o desaparecimento das obras após a morte da artista, isso ocorre por vários motivos, como a ausência de críticas, as obras não vão para museus, galerias ou coleções particulares e não são analisadas ou preservadas, sem o apoio das instituições do campo artístico as obras são condenadas ao esquecimento e as artistas são apagadas da memória.

    O livro de Griselda Pollock e Rozsika Parker (2013), duas historiadoras da arte e feministas engajadas, é uma publicação voltada para a historiografia da história da arte, com interesse no modo como a disciplina trata a produção das mulheres artistas. No livro, entre outras coisas, elas demonstram o abandono dessa produção pela historiografia, principalmente, a partir da modernidade. Considerando que é possível encontrar vários textos e documentos sobre mulheres artistas no século XVII, XVIII, ou XIX, mas nas publicações e compêndios modernos não há nenhuma única mulher artista. Portanto, a escrita da história da arte no século XX deixa muito a desejar com relação às mulheres, o que indica que a modernidade produziu o preconceito e a dificuldade de incluir essas artistas em suas narrativas. O próprio título do livro joga como a construção da língua, posto que no inglês "Old mistresses em referência ao homem indica gênio do passado, e em referência à mulher significa prostituta, não existe Old mistresses" como gênio no feminino, e a construção da língua se baseia nos códigos e valores masculinos.

    Vem do movimento feminista a crítica institucional, mas também, a crítica aos modos como as artistas, e quais artistas, ganham visibilidade. A transversalidade e multiplicidade de corpos, histórias e posicionamentos entre as identidades que compõe o movimento feminista pode não ser harmônica, mas é produtiva. Quando as feministas negras denunciam a eleição de artistas predominantemente brancas, de classe média e heterossexuais, como Barbara Kruger, Cindy Sherman, Hannah Wilke, Mary Kelly e Cornelia Parker, isso se mostra um problema para todas, a luta é plural, e precisamos pensá-la desta maneira e encontrar estratégias de mudança. Nesse sentido, June Jordan expõe:

    E não, não creio que seja blasfemo comparar opressões da sexualidade com as opressões da raça e da etnia: a liberdade é indivisível ou não é nada além da repetição de slogans e avanços temporários, míopes e de curta duração para alguns. A liberdade é indivisível, e ou estamos trabalhando em conjunto por ela, ou você está buscando seus próprios interesses e eu estou trabalhando pelos meus. (JORDAN, 1994, p. 190. Livre tradução nossa¹⁷).

    Neste contexto, em 1977, o coletivo Heresias, cujos membros consistiam predominantemente de mulheres brancas, acabava de publicar seu terceiro jornal de arte feminista, intitulado Artes e Artistas Lésbicas, mas não havia apresentado nenhuma mulher negra. Então, o Combahee River Collective (CRC) [Coletivo do Rio Combahee], de Boston, formado por um grupo feminista de afro-americanas lésbicas e de esquerda, que se reuniria em Nova Jersey para seu segundo retiro com o propósito de formular uma carta colaborativa, aproveitou o encontro para elaborar uma resposta. No retiro foi elaborado o manifesto chamado A Black Feminist Statement [Uma Declaração Feminista Negra]¹⁸. O documento não se liga ao ativismo artístico, mas apresentou um quadro abrangente de políticas do feminismo negro e uma resposta ao racismo no movimento feminista:

    Uma questão que nos preocupa muito e que começamos a abordar publicamente é o racismo no movimento das mulheres brancas. Como feministas negras, somos constante e dolorosamente conscientes do pouco esforço que as mulheres brancas têm feito para entender e combater seu racismo, o que requer, entre outras coisas, que elas tenham uma compreensão mais do que superficial de raça, cor e história e cultura negra. Eliminar o racismo no movimento das mulheres brancas é, por definição, trabalho para as mulheres brancas fazerem, mas continuaremos a falar e exigir a responsabilização sobre esta questão. (COMBAHEE-RIVER-COLLECTIVE, 1981, p. 218. Livre tradução nossa¹⁹).

    No documento argumentou-se que, uma perspectiva que considerasse apenas a raça, ou apenas o gênero, teria um avanço parcial e incompleto nas análises da injustiça social, e que, considerando que a opressão de gênero, raça, classe social e sexualidade se cruzam na experiência da mulher negra, para a libertação das mulheres os sistemas de opressão deveriam ser tratados de forma interconectada. A postura assumida naquele documento antecipa o que Angela Davis (2018), e Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (2021) chamam de interseccionalidade, unindo ideias e ações na transversalidade da agenda para a justiça social. Ângela Davis, em A liberdade é uma luta constante elabora uma das explicações mais completas sobre as características distintivas do feminismo negro e da tendência de atuação política em que ela mesma se insere. Segundo a autora,

    (...) o feminismo negro emergiu como um esforço teórico e prático de demonstrar que raça, gênero e classe são inseparáveis nos contextos sociais em que vivemos. Na época de seu surgimento, com frequência pedia-se às mulheres negras que escolhessem o que era mais importante, o movimento negro ou o movimento de mulheres. A resposta era que a questão estava errada. O mais adequado seria como compreender as intersecções e interconexões entre os dois movimentos. Ainda estamos distantes do desafio de apreender as formas complexas como raça, classe, gênero, sexualidade, nacionalidade e capacidades se entrelaçam – e como superamos essas categorias para entender as inter-relações entre ideias e processos que parecem ser isolados e dissociados. Nesse sentido, insistir que há ligações entre as lutas e o racismo nos Estados Unidos e as lutas contra a repressão israelense ao povo palestino é um processo feminista (DAVIS, 2018, p.

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