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O Segredo do Papa
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O Segredo do Papa
E-book399 páginas5 horas

O Segredo do Papa

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Sobre este e-book

PODE A SUCESSÃO DO SUMO PONTÍFICE MUDAR O RUMO DA HISTÓRIA?

O Papa morreu. A sua morte, oficialmente de ataque cardíaco, está envolta em mistério e secretismo. Para Cal Donovan, reputado historiador da Igreja e conhecedor da sua história violenta, bem podem acrescentar o nome de Celestino VI à longa lista de papas assassinados.
Na segunda votação do conclave, o mais breve de sempre, Rodrigo da Silva torna-se o 267.o Papa da Igreja Católica, o segundo nascido em Portugal, e o primeiro papa norte-americano.
O novo Papa decide desafiar séculos de tradição e nomeia uma freira, a Irmã Elisabetta Celestino, para sua secretária de Estado. No entanto, nos gabinetes e nos corredores do Vaticano, conspira-se em surdina pelo facto de a segunda pessoa mais influente do Vaticano ser agora uma mulher.

Entretanto, no Egito, a conservadora do Museu do Cairo faz uma descoberta intrigante. Uma máscara funerária datada do século I d.C., enterrada durante anos nos arquivos, entre centenas de outros artefactos destinados a nunca serem estudados ou expostos, não é feita de linho, como era costume na época, mas de papiro.

Aquilo que está escrito no seu interior vai mudar a história da Igreja, e pessoas muito poderosas pretendem manter essa informação secreta. Apesar dos riscos, Samia Tedros está disposta a proteger a sua descoberta e a revelá-la ao mundo. Afinal, preservar a verdade e impedir que seja enterrada para sempre é algo pelo qual vale a pena morrer.

SETE MILHÕES DE LIVROS VENDIDOS. TRADUZIDO EM MAIS DE 30 PAÍSES
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de fev. de 2024
ISBN9789895702121
O Segredo do Papa
Autor

Glenn Cooper

Glenn Cooper é um escritor de thrillers históricos de sucesso internacional. Os seus livros foram traduzidos para mais de 30 idiomas e venderam acima de 7 milhões de exemplares. Licenciou-se na Universidade de Harvard, Magna Cum Laude, com um bacharelato em Arqueologia. Foi médico de medicina interna e doenças infeciosas em hospitais, clínicas e campos de refugiados em zonas de conflito antes de entrar para a indústria da biotecnologia, onde foi diretor executivo de várias empresas cotadas em bolsa. Atualmente, escreve a tempo inteiro e vive entre a Florida e New Hampshire.

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    O Segredo do Papa - Glenn Cooper

    GLENN COOPER

    O SEGREDO

    DO PAPA

    Tradução de

    Paulo Mendes

    info@almadoslivros.pt

    www.almadoslivros.pt

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    © 2024

    Direitos desta edição reservados

    para Alma dos Livros

    A presente edição foi publicada por acordo

    com Grand Central Publishing, uma divisão

    de Hachette Book Group, Inc., USA.

    Todos os direitos reservados.

    © 2022 by Lascaux Media LLC

    Título: O Segredo do Papa

    Título original: The Lost Pope

    Autor: Glenn Cooper

    Tradução: Paulo Mendes

    Revisão: Neusa Garcia

    Paginação: Gonçalo Sousa

    Ilustração de capa: ©Alejandro Colucci

    Arranjo de capa: Diana Jorge Trigo/Alma dos Livros

    Impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda.

    Depósito legal n.º 526 352/24

    1.ª edição: Fevereiro de 2024

    Todos os direitos reservados.

    Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada

    ou reproduzida em qualquer forma sem permissão

    por escrito do proprietário legal, salvo as exceções

    devidamente previstas na lei.

    1

    Oásis do Norte, Egito, 67 d.C.

    Castanho era a cor da mulher e deste lugar.

    Tinha os olhos castanhos e, apesar de já grisalho, o cabelo ainda ostentava madeixas do seu acobreado original. Na juventude, tivera a pele suficientemente clara para, ao enrubescer de amor, assumir o rosado de um rato recém-nascido, mas o sol queimara-a durante mais de cinquenta anos, deixando-a com a tonalidade de chufa. A velha túnica de linho, a sua segunda pele, exibia a mesma cor castanho-avermelhada, mesmo depois de a mulher lavar e bater o tecido.

    A sua tonalidade combinava com o terreno árido, pois também era castanho para lá da fertilidade verde do oásis. Junto ao oásis, a terra era escura como casca de cedro, mas, afastando-se da nascente, o solo assumia um tom mais claro, passando de cobre a mostarda e ao amarelo-pálido da areia do deserto. O casario com que a mulher se deparou condizia com a terra, erguendo-se organicamente do chão do deserto, com paredes de blocos de pedra calcária, fulvas e rústicas.

    Chegou montada numa mula, quando o sol queimava junto ao horizonte e os ventos de norte fustigavam o ar com areia fina. Um dos companheiros de viagem bateu à porta tosca e afastou-se para lhe dar lugar.

    Surgiu um velho e, em aramaico, inquiriu quem era a mulher.

    Ela respondeu:

    – Sou Maria.

    O homem, Isaías, fitou-a intensamente e declarou:

    – Não oiço muito bem. Disse «Maria»?

    A mulher baixou o capuz, revelando olhos encovados e lábios gretados, e respondeu:

    – Sim, sou Maria. Maria de Magdala. Procuro refúgio.

    Os olhos do velho alargaram-se.

    – De quem é que a senhora está a fugir?

    – De todos – replicou ela. – Os cristãos, os judeus, os romanos, todos me querem ver morta. Disseram-me que é aqui a casa da Lia.

    Isaías encaminhou Maria e os três homens que a acompanhavam à casa maior e pediu-lhes para aguardarem numa sala ampla à meia-luz. O chão era de terra batida. Havia malgas de madeira alinhadas numa longa mesa de jantar. As portadas encontravam-se fechadas para impedir a entrada dos turbilhões de areia, mas os finos grãos amarelos infiltravam-se pelas frestas, revestindo a mesa e os bancos, e as correntes de ar faziam dançar e tremeluzir a chama das velas.

    De um quarto adjacente, acorreu uma mulher apressada. Maria pensou que a mulher devia ter acabado de acordar, pois os seus olhos desfocados percorreram a divisão antes de a visarem. Era mais jovem do que Maria, mais alta, com feições finamente delineadas, distintas. Tinha ar de uma senhora que outrora poderia ter trajado vestes de seda. Aqui e agora, contudo, vestia uma túnica rude que roçava o topo dos pés descalços. Os tempos de vaidade de Maria haviam há muito terminado, mas esta mulher, de rosto sem rugas, atraente, fê-la sentir amargamente o peso dos anos.

    Com uma vénia profunda, a mulher disse:

    – Sou a Lia. É verdade que é a Maria Madalena?

    – Sou.

    – É a Matriarca Bendita! – exclamou Lia, e correram-lhe lágrimas pelo rosto.

    – Vim de muito longe para conhecer a diaconisa Lia – declarou Maria, utilizando o termo honorífico grego diakonos. – É conhecida

    no mundo cristão.

    Lia prostrou-se e beijou-lhe os pés.

    – Bendita senhora, a sua presença na minha casa é uma dádiva do Senhor.

    Maria ergueu-a pelos ombros e contemplou-lhe o rosto com ternura.

    – Diga-me, porque veio a minha casa? – inquiriu Lia.

    – Estou velha, e estou farta de fugir para proteger a minha vida. O Senhor sabe que não me restam muitos dias. Quero contar a minha história antes de morrer, e quero que seja a Lia a divulgá-la.

    Quando souberam dos visitantes, os cerca de vinte membros da comunidade saíram de casa e espreitaram pelas frestas das portadas até Lia os convidar a entrar. Então, um a um, os adultos ajoelharam-se e também eles beijaram os pés de Maria, enquanto os filhos pequenos observavam com os olhos muito abertos de curiosidade. Após alguns preparativos apressados, serviram uma refeição simples aos convidados, pão, vegetais cozidos e vinho diluído, com grandes desculpas pela falta de carne. Maria manifestou gratidão pela hospitalidade, mas Lia mandou um rapaz comprar um cabrito para poderem realizar um banquete no dia seguinte.

    Na mesa comunal, Lia pediu a Maria para abençoar a refeição.

    – A casa é sua – retorquiu Maria. – A bênção devia ser sua.

    Não exigiram muita conversa aos viajantes, uma vez que a sua fome e debilidade eram evidentes. Contudo, fortificado pela comida e bebida, um dos homens de Maria, Quinto, um jovem robusto com longos caracóis doirados, respondeu prontamente a um rapaz de 10 anos que não conseguira conter a curiosidade face à presença da figura musculosa.

    – De onde és? – perguntou o rapaz.

    – Eu? De Roma. Sabes onde fica?

    O menino negou com a cabeça.

    – Esse rapaz nasceu aqui – esclareceu Lia. – Só conhece este sítio.

    – Talvez a vejas um dia, miúdo – declarou Quinto.

    Do outro lado da mesa, um homem, sentado ao lado de Lia, escarneceu:

    – Vejo pelo sotaque que não fala a sua língua materna. Se calhar foi soldado romano – disse, imbuindo o termo «soldado» em veneno.

    – É verdade, irmão – foi a resposta bem-disposta. – Pertencia

    à guarda pretoriana e servia o imperador. Foi há três anos que conheci o Simão Pedro e a Maria. A Maria detestava-me, antes de me adorar, porque fui o carcereiro do Simão Pedro.

    Maria estendeu o braço para tocar levemente na mão de Quinto.

    – Oh, como o adoro agora.

    – Quando ouvi o Simão Pedro falar de Cristo, abriu-me os olhos como nunca me tinha acontecido – acrescentou Quinto. – Batizou-me em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e abandonei o meu posto. Renunciar ao meu passado foi fácil.

    – torceu os lábios num sorriso. – Aprender aramaico foi difícil.

    Lia retribuiu o sorriso.

    – Os nossos filhos nasceram cristãos, mas os restantes membros do grupo são convertidos. Judeus de Jerusalém.

    Maria levantou os olhos da malga e perguntou:

    – Foi Paulo quem a converteu, não foi?

    – Sim, foi ele, há dezassete anos. Acompanhámo-lo durante algum tempo e, quando partiu de Jerusalém para Antioquia, Jacob, o meu marido, fundou a nossa casa cristã. Desde o início, fomos vilmente perseguidos pelas autoridades. Então, uma noite, os romanos levaram o Jacob e executaram-no. A chefia da casa ficou a meu cargo. Convenci os meus irmãos a partirem para o Egito e estabelecemo-nos aqui, neste lugar remoto, para podermos adorar o Senhor em paz. Para nós, começou com Paulo. Não passa um dia em que não pense nele e reze para que esteja bem.

    A tristeza cobriu o rosto de Maria como um véu.

    – Paulo morreu, minha cara. Nero decapitou-o em Roma, três anos depois de crucificar Simão Pedro. Soubemos por um viajante cristão que ficou connosco em Antioquia.

    As suas palavras amargas encheram a sala, e as mulheres começaram a soluçar. Todas menos Lia, que anuiu solenemente com a cabeça e declarou:

    – O Senhor certamente terá recebido Paulo a seu lado no Céu. Perdoamos aos seus carrascos e rezaremos pela sua alma.

    Quando terminaram a refeição, Lia convidou Maria para caminhar a seu lado. Cobertas com xailes, passearam de mão dada por um olival, com o silêncio da noite cortado pelo canto dos grilos e o balir esporádico do cabrito acabado de comprar.

    – É horrível que tenha sido forçada a fugir – comentou Lia.

    – Sinto muito por si.

    A empatia daquela mulher comoveu Maria.

    – Durante grande parte da minha vida, fui tão amada e acarinhada. Foi um choque, tornar-me desprezada.

    Sentiu a mão de Lia estreitar-se sobre a sua.

    – Quem é a que a despreza, minha santa?

    – Primeiro, foram os romanos. Depois de matarem Simão Pedro, tivemos medo de que nos levassem também para o Circo de Nero, para cruel divertimento da populaça. Saímos de Roma e fomos para Antioquia, onde já tínhamos vivido. Voltámos a integrar a comunidade cristã de lá e estabelecemos a nossa casa de oração junto deles, em Kerateion, um bairro judeu.

    É com prazer que digo que convencemos muitos judeus a seguir o caminho de Jesus Cristo, mas havia um problema. Os rabinos estavam zangados, e soubemos que uns malfeitores haviam sido incumbidos da tarefa malévola de nos assassinar. Assim, fugimos novamente para a Galileia, a minha terra natal, onde a guerra entre judeus e romanos havia terminado.

    – Os peregrinos disseram-nos que agora há muitos cristãos em Israel – referiu Lia.

    – É verdade, e entre eles há anciãos que se recordam do tempo em que Jesus caminhou pelo mundo, a ensinar e a realizar milagres. Ah, foi bom estar novamente em casa. Durante quase um ano, fomos felizes ali, e reuniam-se multidões para nos ouvir pregar a palavra do Senhor. Então, num dia negro, chegou até nós um emissário de Roma, e tivemos de fugir novamente.

    – Quem foi que enviou esse emissário?

    – O vil Lino. Chegou-lhe aos ouvidos que o nosso ministério era alvo de muita adulação. A sua mensagem foi terrível. «Cessem a vossa pregação ou serão passados a fio de espada.» Alegados cristãos preparavam-se para levar a cabo as suas ordens. Percebíamos o motivo de romanos e judeus nos quererem ver mortos, mas os nossos irmãos em Cristo? Era insuportável.

    – A inveja deve ter escurecido o coração de Lino – disse Lia. Voltou a apertar a mão de Maria. – Minha pobre senhora. Posso dizer-lhe uma coisa? Foi a minha inspiração. Não foi Simão Pedro. Não foi Paulo. Foi a Maria. Se não fosse a sua vida e os seus feitos, não teria encontrado força para fundar esta casa e liderar esta comunidade. Quando era rapariga, sentia que a minha voz era abafada pelos rabinos e pelos mais velhos. Só queriam que tomássemos conta da casa e tivéssemos bebés. Não podíamos recitar a Torá. Não podíamos venerar com os homens como iguais. Quando me tornei cristã, ouvi falar da sua vida e de como era valiosa para Jesus e o seu ministério. Apesar de nunca nos termos conhecido, foi a senhora que me deu coragem para pregar a palavra do Senhor depois de matarem o meu Jacob.

    Há bastante tempo que Maria não sentia a palpitação da alegria no peito. Esta mão quente sobre a sua era uma carne preciosa. Tinha sido uma viagem árdua desde Jerusalém, através do deserto escaldante, até chegar ao oásis. Muitos haviam querido segui-la, mas Maria insistira que as famílias não deviam ser desenraizadas e enviadas para um destino incerto. Na última refeição com o seu rebanho, abraçara cada membro e chorara com eles. Antes da alvorada do sabat judaico, despedira-se da terra natal. Apenas Quinto e dois outros seguidores vigorosos a acompanharam e, em rigor, não havia nada que Maria pudesse ter dito ou feito para afastar o fiel Quinto do seu lado. Quilómetro penoso após quilómetro penoso, Maria balanceara no lombo da mula e sentira que a sua força vital a ia abandonando, como se tivesse a certeza de que a morte a alcançaria no Egito, a terra ancestral dos faraós de onde Moisés se evadira. No entanto, a melancolia que a afetara na viagem foi de imediato dissipada pela água fresca, pura e sagrada que era esta mulher, Lia.

    – Somos muito parecidas – afirmou Maria, com a voz a recobrar a força. – Ambas perdemos entes queridos devido à malvadez de Roma. Ambas tivemos a força de espírito para assumir o nosso lugar à cabeceira da mesa. Somos verdadeiramente irmãs em Cristo. Não há tempo a perder. Amanhã de manhã, iniciarei o relato da minha vida ao serviço de Jesus de Nazaré.

    Lia respondeu:

    – Vou ouvir com toda a atenção, Matriarca Bendita. Temos papiros e temos tinta. O Isaías será o seu escriba, sabe escrever em grego, a língua franca, porque os cristãos de todo o mundo precisam de ouvir falar de si e dos seus feitos. Em anos vindouros, irão louvar os três pilares da nossa fé: Jesus Cristo, Nosso Senhor e Salvador; Simão Pedro, a pedra em que assentou a nossa Igreja; e Maria de Magdala, a mãe da Igreja. – Largou a mão de Maria e uniu as suas em oração. – Chamaremos à sua história o Evangelho de Maria.

    2

    Presente

    Apesar de a maioria dos passageiros no voo 124 da Delta entre Boston e Roma serem norte-americanos, o português era o idioma dominante naquela noite.

    Cal Donovan calculou que três quartos dos seus companheiros de viagem fossem de ascendência açoriana. Enquanto o avião sobrevoava o Atlântico, de poucos em poucos minutos começavam a entoar canções tradicionais açorianas, criando uma atmosfera que se assemelhava mais a um jogo de futebol do que a um voo internacional. Cal desistira de tentar dormir. Ainda que a classe executiva fosse um pouco menos ruidosa do que a económica, as cortinas que separavam as cabinas em nada abafavam as festividades. Não era que Cal se importasse. Também ele estava com vontade de festejar. Afinal, não era todos os dias que uma pessoa se dirigia à cerimónia de entronização de um dos seus melhores amigos para se tornar o próximo papa.

    As assistentes de bordo descobriram que Cal falava italiano fluentemente, e uma delas debruçou-se e disse-lhe, com um rouco sotaque milanês:

    – Parece que há um problema com o seu copo.

    – E que problema é esse?

    – Está vazio. Mais do mesmo?

    Cal respondeu com um sorriso.

    A assistente voltou com mais um Grey Goose com gelo e declarou que o problema estava resolvido.

    – Temporariamente – respondeu ele.

    – Teve um acidente? – perguntou ela, apontando para a bota imobilizadora de tornozelo que lhe saía da perna das calças.

    – Na verdade, andei à luta. Devia ter visto como ficou o outro tipo.

    A assistente encarou o comentário como uma brincadeira e foi à sua vida. Não era. O outro tipo estava morto.

    A maioria das pessoas com uma perna partida ganha peso devido à inatividade. Cal perdera alguns quilos e, pela primeira vez desde que estivera no exército e fora um rapaz magro, tinha as faces encovadas. Não era do tipo de remoer as emoções ou culpar o stresse pela falta de apetite. Apertava o cinto mais um furo e seguia em frente.

    Quando muito, um Cal mais leve era ainda mais atraente do que a sua fotografia recente na capa da revista The Improper Bostonian sobre os solteiros mais cobiçados de Boston. As linhas do maxilar estavam mais definidas, e os olhos escuros e encovados ainda mais penetrantes. Parecia ter uma certa aura noturna.

    As casas de banho na classe executiva estavam ocupadas, pelo que se dirigiu à parte traseira, sem notar que um padre havia abandonado o lugar a meio da cabina para o seguir. Quando terminou e destrancou a porta, o padre, um tipo forte de meia-idade com um sorriso que mostrava os dentes, estava à sua espera no corredor.

    – Professor Donovan – disse.

    Cal não conseguia lembrar-se de onde o conhecia.

    – Sim, olá, como está? – respondeu, na esperança de que o outro se identificasse.

    – Não se deve lembrar de mim. Sou o padre Manny Cardoza. Conhecemo-nos há uns anos, quando fez uma apresentação em New Bedford sobre a Inquisição portuguesa. Estava lá com o cardeal Silva... Meu Deus, ainda é tudo tão recente. Refiro-me ao Santo Padre.

    O melhor que Cal conseguiu foi uma vaga memória de um mar de freiras e padres dentro de um centro comunitário demasiado aquecido.

    – Ah, sim, padre Cardoza, prazer em revê-lo. Ainda está tudo muito fresco, não está?

    Só haviam decorrido cinco dias desde que o cardeal protodiácono havia surgido na Varanda das Bênçãos da Basílica de São Pedro, debruçara-se sobre um microfone e anunciara à enorme multidão reunida na Praça de São Pedro:

    – Anuncio-vos uma grande alegria! Temos papa! Sua Eminência Reverendíssima, Senhor Rodrigo da Silva, Cardeal da Santa Igreja Romana, que escolheu o nome João XXIV.

    Na segunda votação do conclave, o mais breve de sempre, o amigo de Cal, Rodrigo da Silva, tornara-se o 267.º papa da Igreja Católica, o segundo nascido em Portugal, e o primeiro norte-americano.

    – Está a coxear. Lesionou-se?

    – Caí na biblioteca. Ossos do ofício.

    – Em Harvard?

    – Não. Estava em Inglaterra. Estava em casa há pouco tempo, quando o conclave terminou. Há poucas coisas que me fariam voltar a apanhar um avião. Esta era uma delas.

    – Estamos tão entusiasmados – declarou o padre. – Muitos dos meus paroquianos quase não dormiram. Eu quase não dormi. Um filho dos Açores é papa!

    – Parece que trouxe consigo grande parte dos habitantes de New Bedford para a festa.

    – E de todas as outras comunidades portuguesas. Estamos contentíssimos.

    Cal olhou para o chão e murmurou:

    – Sim, é maravilhoso.

    Apercebendo-se do seu erro, o padre referiu em tom apologético:

    – Peço desculpa, professor. Sei que também era próximo do Papa Celestino. A sua morte... que tragédia.

    – Foi mesmo.

    Quando o padre regressou ao seu lugar, o companheiro de viagem, um vigário da sua paróquia, perguntou-lhe:

    – Quem era?

    – Chama-se Calvin Donovan. É um famoso professor de religião da Harvard Divinity School. Também vai à entronização.

    – Como é que o conhece?

    – Tínhamo-nos encontrado uma vez. Ele lembrou-se de mim. Fiquei muito contente.

    – Ele conhece o Santo Padre? – inquiriu o jovem padre.

    – Mais do que isso. São amigos, amigos íntimos, desde que Rodrigo da Silva era bispo. O Donovan também era amigo do Papa Celestino. Acho que é bom os nossos clérigos superiores terem pessoas de confiança fora da Igreja. Tira-os da bolha do Vaticano.

    – Então, é confidente dos papas.

    – Gosto disso – declarou o padre Cardoza. – Cal Donovan, confidente dos papas.

    Cal recostou-se no assento e agarrou no copo gelado. Assim que fechou os olhos, passaram-lhe memórias desagradáveis pela cabeça, as mesmas imagens que o haviam perseguido nos últimos dias. Um assassino que o persegue pelos corredores escuros de uma velha casa senhorial inglesa. O corpo do assassino tombado ao seu lado no chão da biblioteca. O corpo céreo do Papa Celestino em câmara-ardente no Palácio Apostólico do Vaticano. As mãos de Elisabetta totalmente cobertas de ligaduras.

    Apagou a sucessão de imagens macabras erguendo as pálpebras e o copo de vodca, o seu anestésico preferido.

    Culpava-se pela morte do papa. Celestino tinha sido avisado de um plano de assassínio. Um documento perdido continha a chave da conspiração. Celestino havia pedido a Cal para o encontrar, e este fora bem-sucedido mesmo antes de o tempo se esgotar. O seu aviso no último instante impediu a morte de Celestino na bola de fogo que queimou as mãos de Elisabetta, mas não conseguiu deter o ataque cardíaco que o vitimou.

    O ato ficaria na história como uma tentativa de assassínio, mas era uma minudência. Foi a eliminação violenta do líder de mais de mil milhões de católicos. Cal era um estudioso da Igreja e conhecia bem a sua história violenta. Para ele, podiam acrescentar o nome de Celestino VI à longa lista de papas assassinados e que morreram como mártires.

    Enquanto o avião se dirigia para o nascer do sol, as canções tradicionais não paravam, e Cal continuou a beber.

    #

    O hotel preferido de Cal em Roma era o Grand Hotel de la Minerve. Adorava o terraço no telhado com vista para o Panteão, a elegância da arquitetura do século XVII, bem como a sua longa história de local de reunião para artistas e intelectuais em visita. Além disso, não lhe passara despercebido que o hotel tinha uma ligação particularmente relevante no presente. Tinha sido construído como mansão para a família Fonseca, aristocratas romanos de origem portuguesa.

    Na praça em frente à sua janela, os turistas tiravam fotografias da estátua de Bernini com o elefante e o obelisco. Cal correu as cortinas, tomou um duche e estirou-se numa cama de ditosa macieza.

    O telefone do hotel apanhou-o a meio de um sonho. O relógio iluminado surpreendeu-o. Dormira várias horas.

    Pronto – disse.

    Ouviu uma expiração, como se a mulher tivesse estado a suster o fôlego.

    – Cal – respondeu ela.

    – Elisabetta. Olá.

    – Espero não te ter acordado. Vi que o teu voo chegou a horas.

    – Não, estou acordado. É bom falar contigo. Como é que estás? Como estão essas mãos?

    – Melhor. Os enxertos de pele correram bem. Só tenho de usar umas luvinhas. Como está a tua perna?

    – Está boa. Só tenho de usar uma botinha.

    O riso de Elisabetta titilava-lhe no ouvido.

    – O Emilio e eu queríamos saber se estarias livre para jantar hoje. Pensámos no Tonnarello, onde fomos da outra vez.

    #

    Roma era magnífica numa noite de fim de verão como esta

    – o pôr do sol inundava a paisagem urbana de uma luz âmbar, doce.

    O cirurgião ortopedista de Cal aconselhara-o a ir com calma, mas, que diabo, tinha uma bota imobilizadora, não estava inválido. Estava desejoso de voltar às corridas junto ao rio Charles pela manhã e aos treinos de boxe no Harvard Boxing Club – há anos que ali era conselheiro académico. Cal aprendera boxe no exército, durante os anos em que andou transviado, entre o liceu e ceder à vontade do pai e matricular-se na Universidade de Harvard, onde Hiram Donovan era professor de Arqueologia Bíblica.

    O boxe sempre lhe permitira descarregar a tensão, e neste momento precisava desesperadamente de dar uns murros.

    A luz suave e oblíqua conseguia fazer com que até o Tibre lodoso reluzisse um pouco. Cal atravessou a ponte Garibaldi, ignorando as dores na canela. Quanto mais depressa caminhasse, mais depressa a voltaria a ver.

    Tivera inúmeros relacionamentos intermitentes ao longo dos seus 48 anos. Nunca estivera sozinho – a sua aparência, charme e carreira académica brilhante haviam-no garantido. No entanto, havia uma mulher inalcançável, que o cativara a primeira vez que a vira e, anos depois, ainda fervia de desejo por ela. Não era o primeiro homem a perguntar-se como é que Elisabetta se tornara freira. Não era apenas a sua beleza rara – considerava o seu intelecto igualmente estimulante. Durante grande parte do tempo desde que a conhecera, estivera num relacionamento. Recentemente, todavia, a namorada fartara-se da sua falta de empenho e mostrara o seu descontentamento deixando-o. Sem entraves, Cal deu por si a apaixonar-se perdidamente por Elisabetta, mas amá-la era como correr contra uma parede de tijolo, o que o deixara magoado e sensível. A última vez que a vira tinha sido na missa do funeral do Papa Celestino e, desde então, não lhe saía da cabeça. Quando surgiu a notícia do conclave, andava à procura de um pretexto para voltar a Roma e, quiçá, ganhar coragem para lhe demonstrar o seu afeto.

    Deteve-se um instante para repousar a perna latejante e viu o seu reflexo numa montra. Que idiota, pensou. Que raio se passa contigo? Não podes estar apaixonado por uma freira.

    Elisabetta crescera na margem ocidental do Tibre, e o restaurante antigo Tonnarello, no centro do bairro de Trastevere, era o preferido da família. Quando Cal chegou, encontrou-a sozinha numa mesa ao canto.

    O hábito informe de uma freira chama a atenção para o rosto, e o de Elisabetta era deslumbrante. Quando o Papa Celestino quebrou uma tradição secular ao nomeá-la a primeira mulher secretária particular do sumo pontífice, a imprensa italiana descobrira que o seu rosto fazia voar os jornais e as revistas dos escaparates.

    La Bella Suor, chamavam-lhe, a «freira bela». Usava o hábito negro e branco da sua ordem, as Irmãs Agostinianas Servas de Jesus e Maria. O traje era algo menos restritivo do que o das outras ordens. Não usava o véu completo tradicional das freiras, pelo que tinha o rosto e o pescoço descobertos, e Cal viu-os ruborescer quando lhe tocou ao de leve na mão enluvada. O véu negro e a touca branca de algodão estavam mais para trás do que o costume, revelando uma madeixa de cabelo negro sedoso. Até então, nunca lhe vira o cabelo, apesar de imaginar como seria, solto sobre os ombros nus.

    Elisabetta falou em italiano.

    – Cal, que bom ver-te.

    – Também é bom ver-te, Eli.

    O dia em que ela finalmente acedeu a tratá-lo pelo primeiro nome foi, em certa medida, um avanço, ou, pelo menos, assim imaginava Cal.

    – Gostas das minhas luvinhas? – perguntou-lhe, mexendo os dedinhos brancos. – Parecem as minhas luvas da primeira comunhão, quando era pequena.

    – Gosto muito delas. O que achas da minha botinha?

    – replicou ele, puxando a perna das calças para cima.

    – Fica-te bem – riu-se.

    Elisabetta era tratada como realeza ali, e o dono do restaurante veio ter com eles com uma garrafa de vinho.

    – Oferta da casa, irmã. Bramito Antinori, da Úmbria. É muito

    bom. Posso servi-la e ao seu convidado?

    – Obrigada, Aldo.

    – Como está o novo Santo Padre?

    – Eu diria que está tranquilo.

    – Vamos ter saudades dele. Vinha cá muitas vezes.

    – Os cardeais podem comer fora – retorquiu ela. – Os papas nem tanto.

    – Vou fazer os seus pratos preferidos para os levar ao Vaticano esta noite.

    Cal propôs um brinde.

    – Aos novos inícios – declarou, e bateram os copos.

    – O Emilio pede desculpa por não vir – afirmou Elisabetta. – Teve de encontrar-se com o chefe da Polizia di Stato para coordenar alguns aspetos do dispositivo de segurança para a missa. São reuniões umas atrás das outras. Depois do que aconteceu, bem, não queremos perder outro papa.

    O irmão de Elisabetta, Emilio Celestino, era inspetor-geral dos Carabinieri do Vaticano, e tinha sido guarda-costas pessoal do último papa. Cal conhecera-o durante alguns dias tensos na Sicília e considerava-o um homem correto, honrado.

    – Não queremos mesmo – concordou.

    – Mas ele quer ver-te enquanto aqui estiveres. Fala muito de ti. Vai-te ligar.

    – O papel do Emilio já foi esclarecido?

    – O Santo Padre quer que mantenha as suas funções.

    – Acho que é uma boa decisão.

    – Eu também, apesar de não ser isenta.

    Cal aproveitou o prazer inesperado de estar a sós com ela para iniciar o jogo de xadrez do coração com um lance que andava a considerar.

    – Ele já decidiu o teu caso?

    – Tomei a decisão sozinha. Ele precisa de escolher o seu próprio secretário particular. Tenho andado a ajudá-lo durante a transição, mas ainda não falámos nisso. Tenciono pedir de volta o meu antigo cargo na Comissão Pontifícia de Arqueologia Sacra. Se isso acontecer, regresso de bom grado ao ensino. Já te mostrei a minha velha escola primária na Piazza Mastai da última vez que aqui estiveste.

    Cal humedeceu a boca com vinho, engoliu e debruçou-se.

    – Ou... – sugeriu.

    – Ou o quê?

    – Podias experimentar algo diferente.

    Elisabetta deu uma gargalhada.

    – Isso parece misterioso.

    – Em vez de ensinares crianças, porque não ensinares numa universidade?

    – As universidades italianas não estão lá muito interessadas em ter uma freira docente.

    – Não é assim tão raro nos Estados Unidos – argumentou Cal.

    – E o que é que eu ia ensinar?

    Cal percebeu pela ligeireza do seu tom que não o estava a levar a sério.

    – Formaste-te em Arqueologia Romana. És perita em catacumbas. Fizeste parte do processo em que Celestino cedeu obras de arte do Vaticano à sua instituição de caridade. Ninguém conhece melhor o Vaticano do que tu. Quebraste o «telhado de vidro». Consigo pensar numa dúzia de licenciaturas e seminários de pós-graduação em que podias ensinar.

    – Está bem, esta noite faço um currículo e envio-o para as universidades americanas – declarou ela em tom de troça.

    – Não precisas de fazer isso. Posso

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